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Estrelas

Arminda não se sente bem. Está sozinha em casa, a taquicardia volta-lhe ao peito num ataque e se instala por toda a tarde. Preocupada, projeta a cabeça para a única janela com visão para o horizonte. De lá enxerga a noite empurrando o dia para o fim, já despencam um par de estrelas, as últimas nuvens embaçam um céu fugidio. Dali a pouco acabou-se, é fim de dia, poderia ser o último.

Acostumada a vida inteira à solidão, Arminda da Mata, alcunha da vida, não de cartório, não conhece o mundo. É velha, mas tem os olhos claros e alegres. Já transbordou dos setenta anos, imigrou do extremo rural português aos vinte para a caótica urbanização brasileira e conviveu, desde então, com a “pontada”, como chama a angústia que lhe ocorre todos os dias. Esta dor eu não conheço, diz hoje para si mesma, tentando buscar dentro do seu pequeno ninho de palavras práticas, as únicas que conhece, aquelas que melhor traduziriam o seu embrulho. Tenho areia nos pulmões e dói-me muito, decide-se enfim por este decreto, é o que dirá ao farmacêutico, e assim será.  

Gosta da noite, não pela quietude, menos pela brisa morna, mas pelas lembranças de um mundo já esgotado porém nunca esquecido. Sua antiga juventude é trancada, nunca a quis compartilhar com marido e filhos por entender que, como não a viveram, não a compreenderiam. As noites em sua aldeia atravessaram sua mocidade como um grande mistério: o breu noturnal sobre as copas das árvores, os guinchados de um besta desconhecida que faziam seu corpo tremer num paradoxal contentamento apavorado, e as estrelas. Hoje, da sua janela, acompanha o brilho das mesmas estrelas e não entende.

O funcionário já conhece Dona Arminda, é velha diferente das demais que sempre ralham-lhe porque os remédios ainda não chegaram à farmácia. Consegue compreender seus motivos, as anciãs sabem que a morte já avizinha e querem prolongar a vida com os fármacos que juram sustentar os corpos em pé ou, se nem isto for possível, ao menos acesos e quentes. Hoje Arminda traz um semblante pesado, senta-se ao lado da balança e deixa os ombros caírem, sequência gestual acompanhada com toda a atenção pelo funcionário. A senhora está bem? Se eu puder ajudá-la é só pedir, Não me sinto nada bem, O que houve consigo, Meus filhos foram embora de casa e eu sinto que vou morrer.

Da televisão dependurada na parede ressoa a frase que Arminda da Mata, nos derradeiros três anos de vida que ainda lhe restam até findar-se, jamais esquecerá. Um tipo excêntrico, talvez um astronauta, responde a uma jovem que lembra sua filha, Há mais estrelas no universo do que grãos de areia na Terra.
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Atualizado em: Qui 9 Fev 2017

Comentários  

#2 Tertuliano 12-02-2017 23:17
Miriade, fico lisonjeado por meu texto ter chegado tão perto de você, a ponto de se identificar com a personagem.

Obrigado pelo comentário, me fez muito feliz.
#1 Miriade 12-02-2017 10:44
Talvez eu venha a ser como D. Arminda. Rs.
Senti uma afinidade com essa pessoa.
Estranho né? Eu me afeiçoar a sua personagem.

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