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E Se o Céu Fosse Azul?

E se o céu fosse azul?
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“É complicado explicar nossos sentimentos quando todos estão focados demais em seguir suas vidas dentro de um padrão. Assim como os ocidentais não conseguem entender a relação conjugal muçulmana, a massa populacional generaliza todo e qualquer bem-querer para suas simplistas e humildes categorias afetivas, simplesmente não conseguindo compreender a verdadeira beleza do amor.

Não, não especificamente o amor de namorado e namorada. Não que alguém possa ser julgado por pensar dentro desses limites, visto que desde os antigos gregos as relações já eram categorizadas em apenas três tipos: o amor familiar, o amor de amigo e o amor erótico. Oh, mas pergunto eu, agora, nesta mais dramática e horrenda fase da vida, em meus castos dezesseis anos: será que nunca ninguém parou para pensar que coisas assim abstratas não devem e não podem ser categorizadas?

Digo por experiência própria; sou perfeccionista e muito organizado. Etiqueto todos meus livros, e meus lápis-de-cor estão por ordem de marca e então de tonalidade, passo as noites classificando minhas ações diárias em boas ou más — que me desculpem os mimados filósofos, eu tenho uma crença dualista —, por que não iria tentar categorizar, decifrar e entender as causas de meus sentimentos? Graças a isso, percebi que o auto-sadismo é uma utopia tão grande quanto o comunismo. Dominar a nós mesmos? Ora, nem sequer conhecemos a esse “nós mesmos” para termos a nós em nossas próprias mãos!

Talvez seja por ter tido meu chão arrancado de sob meus pés ao descobrir que não há limites na vida que eu perdoe a todos. Talvez seja apenas minha péssima memória, mas eu não guardo rancor de daqueles que nunca entenderam e que eu sei que nunca entenderão, pois se nem mesmo eu entendo, o que podem os outros?”

Fecho o diário e o jogo contra a parede. Por Deus, como ando dramático esses dias. Os hormônios, dizem, a escola, a pressão jovial, a sociedade, o capitalismo, as estrelas, as ervilhas que você não comeu aos sete anos, Ad, eu avisei você que devia ter comido (vamos, mãe, depois a senhora não compreende por que não temos laços estreitos), há cada desculpa dita que as vezes penso em deixar de tomar a homeopatia para ver se minha imunidade baixa de vez e eu arranje uma pneumonia fatal.

Mas não devo, porque poder, eu posso. Nem tenho real motivo, na verdade sou orgulhoso demais para admitir minha morte. Suicida, eu? Por favor, tenho um diploma de doutorado me esperando num futuro bem distante desse Ensino Médio medíocre que de bom grado curso, ainda tenho muito que apanhar neste mundo.

E não só isso: seja, ou não, as ervilhas... Eu tenho aqueles que amo. Considere-se um deus, sabe para que negativos números de pessoas que eu conto a respeito de minhas relações? Exato! Simplesmente não entendo aquelas garotinhas de internet que espalham sua vida a todos e depois reclamam de falsidade, fofoca e essas coisas entediantes. Pelas divindades que esses seres humanos creem, quem deu saúde a vocês? Não que eu esteja condenando o estilo de vida “sou um livro aberto”, só apenas aquelas pessoas que não ligam a Física à vida em “Toda ação tem uma reação”, não associando seus atos com suas recompensas.

Se bem que não mereço minhas recompensas. E lá vou eu novamente recolher meu diário da cesta de basquete em minha parede para cair novamente em uma crise de autodepreciarão e baixa confiança em minha capacidade.  Mas de fato, como eu gostaria de ter mais problemas em minha vida para justificar minha sede por atenção, a mesma atenção que eu rejeito da penca de pessoas que arduamente oferecem-na para mim.

Eu sou um monstro. Mas um monstro com sentimentos. Um bem cruel, talvez, daquele que tem sua própria política de lidar com as pessoas, mas isso não convém aqui, não agora, não nesta parte da narração.

Levanto da cama, a tal bem arrumada que eu odeio que sentem para não amassar a colcha. Calço os simples tênis sem cadarço, ponho um casaco fino, mais por ganhar um upgrade de bolsos do que pela estação, recolho a chave e o celular da escrivaninha e saio para uma caminhada reflexiva. Nesses dias que, perdoem-me as garotas, são piores que o mensal feminino, ficar trancado em casa com ar de melancolia apenas piora as coisas.

Meus pais não estão em casa, não que isso signifique que eles estão sempre trabalhando e não podem dar atenção para mim, pois são um exemplar casal que visa a melhora da estrutura e padrão de vida familiar. A última parte até é verdade, mas eu passo um bom tempo com eles, mesmo que os ignorando. Ignorando apenas para depois reclamar da falta de atenção deles para comigo. Abaixo a cabeça e sigo em direção da porta me sentindo um lixo.

Sentir o ar de outono me deixa melhor. Amo meias-estações por suas temperaturas agradáveis, moderadas e neutras, por sua impotência de atividades pré-definidas que deixa a maioria das pessoas zangadas. Seja por ser um jovem rebelde com minhas calças largas e zíper aberto, ou não, eu adoro isso.

Na rua, sei para onde estou indo. Costumo desligar totalmente enquanto caminho, por isso estou sempre mais perdido que as pessoas que eventualmente me pedem informações. Mas neste bairro sei onde fica os lugares que vou, que tenho e que gosto de ir. Especialmente esse que me dirijo agora, o único lugar que sei que, independente de todos os defeitos que amo definir e categorizar, serei aceito e ganharei atenção, mesmo com toda manha de criança mimada que faço o tempo todo, como neste exato momento!

Se estar doente faz qualquer um ganhar atenção, então ser doente não cumpriria minhas expectativas de vida? Houve um tempo em que achei que o simples contato social era o suficiente de atenção que eu precisaria conquistar, mesmo que me negasse a ganhar até mesmo isso. Porém, me superei, ultrapassei as barreiras de mim mesmo e fiz laços. Mas agora percebo que... preciso de mais. Eu preciso de muito mais do que apenas umas boas horas de conversa e de riso, eu preciso de contato físico.

Sim, julguem-me, seus infelizes, admito ser mortal.

É por esse imperador dos meus defeitos que acelero meus passos até começar a correr pela calçada, sentindo o vento refrescante me ajudando a ganhar velocidade, agitando meus cabelos e quase espantando meu choro. Chego à sua casa e aperto o interfone, cruzando os dedos para ele estar sozinho em casa também. Por mais que eu tenha veia artística para encantar a todos quem queira, com uma especialização em pais de amigos e colegas, não é um bom momento para tal coisa. Quando a habilidade e o mau momento se confrontam, minha reação quase sempre termina numa mistura de nazista com ogro canibal em frente de um ser da minha espécie, mas de etnia diferente.

Al atende a porta com um olhar meio inocente de curiosidade e abre um sorriso ao me ver. Desce as escadas com a chave do portão, calmamente, do jeito que sabe que fico doido quando age tão vagarosamente. Minhas pernas estão balançando de forma violenta, flexionando os joelhos e os jogando para a posição normal novamente como se eu quisesse quebrá-los. Faço isso quando estou nervoso ou com excesso de energia. Ele testa chave por chave, como se não soubesse qual é a certa mesmo morando nesta casa por toda sua vida.

— Anda logo, seu filho da mãe, eu quero entrar. — Coço o nariz com a manga do casaco e percebo que não consigo deixar meus braços parados também. Parece que necessito fazer milhões de coisas ao mesmo tempo para obter milhões de sensações ao mesmo tempo, exatamente a motivação que leva alguém às drogas psicoativas, como a cafeína. E olha que hoje eu nem cheguei perto da cafeteira.

Al finalmente abre o portão fazendo um pequeno suspense e sorri para mim novamente. Parece que não percebe que estou — tão visivelmente — distante de uma recepção sorridente, mas na verdade sei que ele sabe. Sei que ele não entende, mas respeita e aceita essa limitação, o que faz dele a pessoa que mais amo nesse mundo.

— Só não incendeie minha casa novamente que vai ficar tudo bem. — Ele me puxa pelo ombro, envolvendo-me num abraço. Sabe que sou orgulhoso demais para iniciar a ação, não importa o quão necessitado estou, sabe que sou um idiota. Sou um idiota maior ainda por nos meus bons dias ignorar e ter nojo da afetividade de Al, por isso me esquivo de seus abraços sempre que estou bem. Sim, sou mais fresco que um vegetariano num churrasco, ignorando até mesmo os formais abraços de despedidas, especialmente os de Al. Mas não agora, porque é por eles que agora estou aqui.

Seus braços são fortes, apesar de não parecer, ou simplesmente os sinto melhor quando estou fraco. Eles me envolvem de forma tão paternal e aconchegante que é quase hipnótico, assim como seu perfume. Ah, o cretino parece fazer de propósito em usar o mesmo perfume forte que meu irmão mais velho, que divide o mesmo péssimo gosto de Al. Meu irmão não mora comigo, mas sempre que vem me traz um presente. Eu sempre quis abraçar meu irmão desta maneira, como ele me abraçava na infância, mas quando passei dos dez anos comecei a refutar o afeto. Por que sou tão patético?

Estou com os dedos enterrados nas costas de sua blusa, absorvendo todo seu calor, tudo o que tem para me dar. Ele já passou por situações parecidas nesses anos em que começou a me chamar de amigo, essas minhas crises não são raras. Seu corpo é proporcional ao meu, mas neste momento parece muito maior, abrangendo não apenas meus ombros e costas, mas todo meu ser. Um nível muito mais abstrato e metafísico de abraço.

— Adrian, seriamente, você está mesmo muito carente. Ache logo uma namorada. — Alberto se afasta, mas ainda mantém suas mãos pesadas sobre meus ombros. — E, eu não queria falar nada, mas você é muito mais legal quando está quase chorando.

É tão verdade que ao invés de responder algo a altura apenas suspiro sonoramente para impor um limite de abuso verbal sobre a situação e me enrolo novamente num abraço, esfregando meu rosto na sua blusa para absorver melhor o perfume. E Al não se importa. Apenas dá uma risadinha afetuosa e me leva para dentro depois de trancar o portão comigo pendurado ao seu tronco como uma criança, que talvez, no fim, é mesmo o que eu queira ser neste momento. Voltar as coisas simples e objetivas de antigamente, onde o céu é azul e tem estrelas, e não uma confusa teoria de universo expandido e incerto.

                Al me larga no sofá da sala para pegar o controle remoto da televisão. Não aparenta estar preocupado, zangado, aborrecido, não está tenso como qualquer um estaria quando um amigo apenas de más horas aparece na porta. Não me enxota, muito menos tenta me ajudar com perguntinhas de motivo, causa, intensidade; Al simplesmente me ajuda sendo Al nas horas certas. E é esse o problema.

Logo que senta ao meu lado não consigo evitar de segurar sua mão, entrelaçando firmemente nossos dedos, não importando o que isso possa parecer. Meu nariz escorre as lágrimas que eu não posso nem vou derramar, e minha garganta sofre com meus sentimentos arranhando as grades da prisão.

— O que quer assistir? Está passando a reprodução dos babuínos do canal animal. — Ele me olha com seus olhos brilhantes que não são descritíveis. Nenhum olhar é descritível no momento em que se olha nos olhos, pois você se obriga a retribuir, e todo olhar profundo vai além de globos oculares e seu reflexo de luminosidade, passa a ser uma conexão de almas. Todos sabem que almas não são plausíveis de serem postas em palavras.

— Você está se alienando com essa televisão — respondi entre fungadelas.

— Oh, desculpe, sou um burguês indigno?

Seu tom de falsa preocupação acompanhada da risadinha estranha e pausada que faz com que seus ombros e peito mexam mais que o normal me abre um corte interior. Sua mão está quente e age como sal nessa ferida, porque sei que há mais um mundo inteiro de pessoas que acham “fofo” isso em Al. Ele não é fofo, é estranho, mas carismático o suficiente para ser adorado por todos aqueles que o conhecem, e admirado por aqueles que o acompanham mais de perto. Al é um exemplo de estudante, de colega, de amigo, o maldito de um garoto popular com compaixão por todos. Quantos não devem ter exposto, e oferecido, e empurrado seus sentimentos a ele, assim como estou fazendo? E quantos Al já não ajudou exatamente como está fazendo agora? Não sou único, não sou especial. Ele também me ama, assim como a todos.

Mas eu infelizmente preciso dele, como muita gente. Às vezes sinto por ele, naqueles dias em que estou pensando e formulando uma visão mais concreta e administrável de Al, sinto realmente pena. Ele cuida de todos, mas essa massa não é suficiente para dar conta de seus sofrimentos. Aqueles que deveriam fazer isso simplesmente estão num nível superior de egoísmo, ocupados demais para lembrar dele. Mas não me importo, não é meu dever cuidar do meu amigo, não quando eu não tenho a mesma exclusividade que dedico a ele.

 Ele nunca será feliz, por isso deverá continuar contentando-se em cuidar de pessoas como eu. E estou contente com isso, afinal, sempre soube que nossa relação perduraria enquanto não existisse bons momentos entre nós, a tristeza e o sofrimento são o que nos mantêm unidos.

— Você é uma família tão família que chega a ser mais que a minha família. — Al avança para cima de mim fazendo um ruído de coisas meigas e passa seus braços sobre mim, balançando nossos corpos de um lado para o outro no sofá. Seu rosto também é quente, o que me enoja um pouco. Tão gay.

— Eu também te amo, Adrian, querido. — ele sempre teve uma adoração ridícula por colocar sotaque nas palavras para retribuir o afeto verbal ou físico das pessoas, especialmente daquelas que geralmente não fazem isso. Vai ver que é sua herança europeia dominadora cantando mais uma vitória.

— Pare de ser gay.

— Não sou gay.

— Mas está gay.

— Amiga, não brinque com isso.

— Cale a boca que você ajuda mais.

Ele riu mais uma vez. Sentir seu peito também quente quase febril colado ao meu ouvido quase me questiona que tipo de desejo sinto por Al. Mas já discuti tal assunto internamente milhões de vezes, já abordei em meu diário essa dúvida por pelo menos meses, somando todos os relatos, e foi assim que cheguei à conclusão que o amor não pode ser categorizado. Amo do fundo de todo meu ser esse cara, mas nunca poderei explicar como. Nunca conseguirei definir minha relação com ele a não ser superficialmente.

E superficialmente, posso dizer que nunca o terei para mim, o que talvez seja o único motivo pelo qual eu ainda estime seu abraço tanto assim. Não sou conhecido por ter os relacionamentos mais duradouros, meu espírito neocolonialista me recorre a lógica do dominar, explorar e abandonar. Sou um monstro, um monstro nos braços da única pessoa que provavelmente iria para o paraíso no caso de apocalipse, por não se importar com esse meu jeito de considerar os outros.

Não consigo mais me conter e minhas lágrimas escapam em pares ridículos. Al acaricia meus cabelos, compreensivo, e sinto raiva por ele já saber o que fazer. Odeio estar nessa frágil desvantagem. Odeio precisar parecer estar mal para conseguir atenção de meu amigo. Odeio ter que ver outros fazendo o mesmo, e odeio mais ainda aqueles que recebem sua atenção, necessitadas, mas se mantém firme em todos os momentos. Esses últimos são os piores falsos atores metidos a heróis que já vi, todos sabem que os melhores personagens são os vilões.

Meu celular vibra, sei que é minha mãe. Está começando a escurecer mais cedo e ela se preocupa muito comigo, sei que sim. Mas não quero de modo algum voltar para minha realidade, mesmo que não consiga parar de pensar nela. Em minha mente, pensamentos são verdadeiros, mas são apenas pensamentos. Alberto é tão horrível por me mimar deste jeito...

Ele me convida para passar a noite na sua casa, dizendo que podemos jantar sua macarronada especial e encontrar a melhor fórmula de enganar a professora de Matemática por não termos feito o dever de casa, mas rejeito o convite. Sei que é de coração, mas não posso aceitar.

Levanto-me e respondo minha mãe por mensagem, limpando minhas lágrimas. Al pede então se quero companhia até em casa, e isso eu aceito. Guardo o celular o no bolso e seguro sua cintura delineada, que apenas consegue fazer com que sua afirmação masculinidade seja queimada e assoprada para longe do plausível.

Ele passa o braço sobre meus ombros e já estou melhor. Eu sempre estou melhor depois de receber uma boa dose do meu amor físico e compreensivamente espiritual. Deste meu afeto que não posso classificar e deceparia um membro daquele que o tentasse fazer.

— Vamos logo, eu ainda não fiz os deveres.

O mundo é uma maldita competição, onde não há como sofrer por amor, mas só por sua falta. O que todos buscam é bastante abstrato e de certa forma coletivo. Há como separar e monopolizar, mas... Não se corta um membro para esse sobreviver, isso é certo.

O caminho de volta sempre é doloroso porque já fico pensando na falta de carinho de Al que terei por aquela noite, na negligência de meu sonho de sonhar enrolado nessa bolha de afago que ganho dele. Por isso, passo o trajeto até minha casa apenas aproveitando a sensação de falsa exclusividade que Al me passa.

Por que alguns abraços são melhores que outros? Será psicológico? Será um sensor da alma que diga “esse é bom, esse não, fique longe”, será a vontade e compreensão da outra pessoa para nós, necessitados? Será que varia da personalidade e despojo do outro, do medo de demonstrar proximidade em público? Não sei, mas parece não exatamente depender dos outros, é muito mais minha vontade e julgamento que contam.

Chegamos e Al para, olha para mim e suspira. Suas sobrancelhas estão levemente franzidas e seus lábios contraídos nas extremidades, uso muito da minha percepção de desenhista para analisá-lo. Ele sabe que minha mãe não gosta que faça isso, mas mesmo assim beija minha testa e me manda entrar.

— Está frio, vá para dentro logo. — Talvez minha mãe não goste de Al porque não compreenda verdadeiramente nossa relação. Se compreendesse, também não gostaria por julgá-la impura e prejudicial, como faz agora, mas levando esses adjetivos em outro sentido, o verdadeiro.

— E você fique mais uns minutos aqui que talvez consiga faltar aula amanhã — respondo encontrando as chaves e abrindo o portão. Já está bem escuro, e minha irmã mais nova nos observa da janela. Sei que vou levar uma bronca por ter chegado tarde, não ter avisado que sairia, nem para onde, nem com quem, e ainda mais por voltar com um garoto para casa. Mas isso só acontece porque as pessoas categorizam os sentimentos.

Um acesso de raiva toma conta de mim, sei que odeio todos dentro dessa casa, sei que não poderei conversar adequadamente com nenhum deles. Sei que vou tentar me controlar, mas vou acabar fugindo de todos e me trancar no quarto, vou pegar meu diário, falarei mal deles, desenharei Al e rasgarei a folha.

Aceno uma última vez para meu amigo antes de entrar em casa. Pela luminosidade dos postes de luz sei que ele sorriu para mim antes de dar meia volta e ir para casa. Amanhã agirei como se nada tivesse acontecido e estarei todo sorrisos. Ignorarei Al e refutarei todo e qualquer sentimento negativo que tente chegar perto de mim. É um ciclo vicioso e desgastante, mas que semana que vem poderei recuperar minhas forças novamente. Antes de fechar a porta e encarar a realidade, murmuro para a solidão da rua:

— Até semana que vem, Al.

  Como pode me odiar tanto assim?
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                — Agora, alunos — malas, lesados, ignorantes, pirralhos, pesos de porta —, caros alunos — morram, morram, morram e — por favor — MORRAM! — encontrem um colega que tenha a mesma cor de meia que vocês.

                Foi assim que saí do inferno para trabalhar como burocrata do demônio. Menos sofrido, mas bem mais desagradavelmente complicado. Foi assim também que o coordenador escolar estava visivelmente se sentindo naquela linda manhã, aparentemente muito propícia para uma atividade de integração social de uma turma nova. Seus olhos corriam de um aluno para o outro gritando insultos enquanto por fora só vomitava palavras programadas, tipo quando um programa é censurado e na tela aparece aquela mensagem automática com um narrador estilo áudio do Google Tradutor.

                Olhei ao redor. Olhei bem ao redor. Meu redor eram duas paredes de canto o qual eu me escondia das baratas humanas. De todos os insultos que o coordenador queria despejar na minha nova turma. Da atividade que ninguém queria realizar mas estavam sendo obrigados, porque, é claro, quem nunca achou sua alma gêmea ao esbarrar os dedos romanticamente no mesmo par de meias do mostruário? Quem nunca fez uma amizade de décadas por perceber que seu colega de academia sarado e peludo usa a mesma soquete branca suada que você?

                Mas não. Ele não podia ser normal. Ele tinha que ser um grande cretino. Ele tinha que sorrir, ele tinha que ter um sorriso tão bonito, tão grande, tão monstruosamente grande que parecia que me faria vampiro igual a ele com aqueles caninos enormes. Era o único agitado, animado, pilhado como só alguém banhado em cafeína poderia estar, mas não, era apenas seu jeitinho natural. A cada novo desafio da atividade de integração se escolhia um novo par, o qual eram dados quinze minutos para conversar e se conhecer melhor, para no fim cada dupla apresentar à classe os interesses em comum que tinham achado. Ah, ele amava tudo e todos, sempre achava um lote inteiro coincidências para contar à turma no final. Todos saíam sorridentes depois de apenas quinze minutos de sua maldita ladainha.

                Eram quinze atividades para fazer os estudantes bateram um papinho desconfortável entre si e quebrarem as panelinhas, e naquela sétima atividade eu tive a infelicidade de ter meias azuis-marinhas. Tinha pelo menos outros dez com meias azuis, mas ele veio até mim porque, no mínimo, eu devia estar poluindo a imagem mágica e purpurinada de turma feliz e unida que ele estava visando com meu mau humor de ódio à socialização. Ele precisava tirar o lixo do quadro colorido dele.

— Ei, olha, que coincidência! — A ousadia em forma de uma mão cheia de dedos agarrou a borda da minha calça e levantou, mesmo que ela já estivesse curta e já fosse possível ver minhas meias. — Azul-marinho! — Estendeu sua mão com dignidade e quando não teve resposta agarrou a minha com firmeza. Machucou, e naquela hora eu prometi que me vingaria daquela indelicadeza.

Com o outro pé posto sobre a borda, desci a calça até minhas meias sumirem de vista e minha cueca dar um oizinho ao pessoal. Até que o coordenador não pedisse para encontrar alguém com uma roupa de baixo da mesma cor estava tudo bem para mim.

— Meu nome é Alberto, tenho catorze anos. Estudo na escola desde... Tipo, sempre. — ele riu alto. Eu encolhi meu pescoço. — Você é novo, né? Pode ficar comigo no intervalo.

— Hum, Adrian. — Eu era meio tímido. — Obrigado.

— Bem, então, Adrian, eu pensei.... — ele passou uma mão sobre meu ombro e foi me desgrudando do canto da sala, me guiando para o centro como se fosse um arquiteto indicando ao cliente onde ficariam as maravilhosas pinturas chinesas que ele havia enquadrado no meu projeto.

Há uma quantidade quase obscena de garotos esquisitões que passam boa parte de sua vida encerrados no quarto gastando seu ciclo celular cerebral com algum RPG, e sendo sensato agora, dois por cento deles conseguirão seguir carreira nesse ramo porque estavam jogando em vez de estudar para trabalhar com tecnologia. Havia uma quantidade significativa de garotos esquisitões na minha antiga classe, eu era um deles. Mas naquele momento, no momento que Al me escolheu, fui diferente. Deixei tudo que me fazia ser eu de lado por um instante e posso explicar isso sem parecer delírio de uma obsessão.

O que leva uma pessoa a ser solitária? Depende, é claro. Um trauma. Personalidade. Depressão. Chamar atenção, oh, sim, carência, esse é um fator bem interessante. Quem nunca teve uma fase emo-gótica-depressiva em sua miserável vida pode não acreditar nisso, mas se isolar do mundo pode significar apenas querer comprovar que é especial o suficiente para o mundo vir atrás de si quando der por sua falta. Imagine uma garota que desconfia que seu namorado, o Sr. Relações Sociais, esteja traindo ela. A mocinha briga com o namorado e o ignora determinadamente, não importa o que ele faça ou fale, não importa o quanto suplique ou peça para voltar, porque a única coisa que ela quer é sentir o prazer de tê-lo se importando consigo, uma massagem no ego e na autoestima.

Claro que certas garotas mundo afora permanecem nessa tática por tanto tempo que Sr. Relações Sociais se cansa e vai embora, deixando-as realmente sozinhas dentro de uma depressão tão profunda que na certa enche a mente delas de “Eu não presto.”, “Ninguém me ama.” e “Sou uma forma a base de carbono desperdiçada nesse universo e não mereço essa miserável vida.” E aí se matam.

Mas agora imagine com toda a fertilidade que tem sua mente: o que acontece quando todos esses caras esquisitos e solitários por causa de uma fase da vida meio violentamente conturbada pela mente fraca para mudanças e pseudo-depressivos por carência recebem atenção? Eles passam a depender das pequenas atenções como se fosse crack e fazem qualquer coisa para consegui-la, tornando-se quase arrogantes e bastante mimados.

Foi assim comigo. Naquele momento em que Al passou seu braço sobre meus ombros eu entendi que nenhuma outra atenção seria como a que eu estava recebendo naquele momento, que aquilo era melhor que a comida da minha avó. Eu soube que precisaria conseguir mais doses daquela morfina relaxante para o resto de minha vida. Mas isso tudo correu pelo meu subconsciente por mísero um segundo, sem chegar em meu conhecimento explicitamente, porque na hora eu resisti até o último segundo para ceder conversar com Alberto, fui bem rude, um verdadeiro ogro.

Sei que ele usou dessa habilidade com os outros também. Com os outros esquisitões, com os outros colegas sociais, com professores, todos, todos mesmo. Essa era a linda cadeia de vítimas da manipulação que Al tecia como uma grande aranha pernuda, peluda, nojenta e de traseiro grande. Era tão viciante, tão doentio, que a cada vez que Alberto falava comigo eu sentia que precisava de mais e mais, mas só para mim... Tinha dias que eu me sentia único; todas as brincadeiras eram a meu respeito, ele estava sempre perto da minha classe, sorrindo, sorrindo com aquelas presas enormes de quem me engoliria algum dia. Tinha vezes que nem bom dia eu recebia, que eu me sentia uma usina de tratamento de esgoto entupida e inútil e me perguntava constantemente o que havia de errado comigo, o que eu havia feito. Hoje sei que fazia tudo parte da teia, da manipulação; solte a linha, deixe ele nadar e então puxe de volta com força que terá o peixe em suas mãos.

Sei que não fui só eu que caí nesse truque, sei que não fui só que eu que me obriguei a socializar mais com a turma, com muitas pessoas para conseguir ficar mais perto da Alberto, que entrei para seu fã clube, que me tornei seu cachorrinho, seu servo para carregá-lo numa liteira a espera de migalhas de sua atenção. Não foi ruim, por mais que eu tenha feito parecer com minhas próprias palavras, teria sido bem pior ter me suicidado por não ter ganhado atenção suficiente, teria sido bem pior não ter começado a me socializar, a estudar, a pensar na vida e no futuro. Al foi um ditador que cortou minha liberdade, mas me evoluiu de uma forma tão linda que seria o melhor treinador de pokemons que a humanidade já teria visto.

Alberto me deu um futuro. E então comecei a pensar demais, em todos os segundos que estava longe dele eu preenchia minha mente com pensamentos sobre ele. Não posso afirmar como foi para os outros, mas depois que criar mil situações hipotéticas sobre o que poderia acontecer ou ter acontecido, me ocorreu, ineditamente, tentar entender o porquê de eu gostar tanto dele. Não, por que de eu depender tanto dele. Eu sequer gostava dele? Quem era ele?

Todos sabem que o pior inimigo de qualquer governo é um povo culto e sabido.

Ideias podres e nojentas vieram seguidas de reflexões e conclusões sobre a natureza, pela primeira vez no meu ponto de vista, negra e sombria de Al. Não perdi meu interesse por ele, pelo contrário, fiquei apenas mais obcecado em tentar entendê-lo e desvendá-lo como se fosse um cubo mágico de rosto anguloso e cintura fina. Mas tudo isso apenas me levou a um nojo terrível de Al e um asco perverso de mim, da minha infantilidade em cair nos braços de estranhos com tanta facilidade. Tudo isso fez com me eu me afastasse de Alberto numa — desta vez verdadeira — depressão reflexiva a respeito de sentimentos. Mas eu já estava ciente de que minhas relações eram necessárias e importantes e não as cortei, continuei um bom garoto social e ativo na escola, pelo menos uma fachada para garantir meus interesses.

E Alberto surtou.

Ele surtou. Não, na verdade apenas gosto de pensar que ele tenha passado noites em claro por minha causa, gosto de imaginar que ele tenha dedicado muito tempo de sua vida me odiando em segredo por ser o primeiro rebelde do sistema escravista que ele montara em sua vida, que ele me desenhara muitas vezes apenas para queimar a folha, que ele chorou em meu nome, apenas porque, no fundo, nunca deixei de ser um esquisitão carente. Tudo porque não o olhava do mesmo jeito, não abaixava mais a cabeça perante ele e o julgava mais severamente.

Passei tempos de jejum de afeto para reflexão, questionei o sistema socialista de divisão igualitária de atenção e carinho em que viviam todos aqueles porcos. Mas não adiantou. Eu não ganhei a exclusividade que como objetivo toda a esquisitice carente me movera a agir.

Alberto veio atrás de mim com toda sua boa vontade e altruísmo, questionou o que havia de errado comigo, como podia ajudar. Quase tive uma recaída ao pensar que ele se preocupava comigo, mas então lembrei que ele de fato se preocupava, mas isso não bastava para mim porque ele se preocupava com todos os outros também. Quando não me abri com meu amigo, senti seus olhos penetrantes e cristalinos nos meus e percebi que fui lido como uma mercadoria passada num leitor de código de barras: ele me compreendeu. Mas isso não fez diferença para o abraço do dia, o primeiro em muito tempo que eu rejeitei. Me tornei então a mercadoria defeituosa que voltou-se contra seu criador, mesmo que não importe o quanto eu tente me sentir um grande revolucionário vitorioso, sempre terei a culpa. Afinal, o culpado de ser um humano ingrato e insatisfeito não é ninguém mais do que minha própria falta de vontade de controlar minha natureza humana, e consigo sentir isso muito bem quando ainda me apoio nesse mesmo garoto em meus momentos de crise. Ainda que não me entenda por completo, me respeita e aceita essa limitação porque mesmo que eu o tenha deixado, ele não me deixou, não é?

Especulo para meu próprio prazer que é apenas pose ele me tratar muito bem. Quando meu prazer é estar com ele, porém, logo minha fé nesse deus volta e tudo que sei desaparece novamente. Talvez eu só me mantenha são nos momentos de delírio porque a verdade de que ele nunca será feliz morrerá comigo, nem ele precisa saber disso.

Este sou eu são. Este sou eu fora de uma crise. Este sou eu cuspindo na cara de Alberto num dia normal de aula quando ele tenta me cumprimentar com um abraço na frente de todos. Este sou eu no dia seguinte de ter humilhantemente derramado lágrimas no pescoço desse garoto, e de ter deixado a marca das minhas unhas na superfície daquela mão bem hidratada com creme de pitanga, de ter esfregado meu nariz naquela camiseta cheirosa e morna, de ter estado em paz e por sentir-me único para ele enquanto sentia o amor emanar daquele peito ronronante. Este sou eu, dono de mim mesmo, sentindo-me muito independente e confiante em meu conhecimento e sanidade mental de hoje. Por que eu guardo um preciso segredo que nenhum outro idiota nesta sala possui, uma propina em atenção que recebo quando estamos sozinhos para me manter calado em relação a verdade suprema que envolve todas as amizades de Alberto.

— Pss, Ad. Ei, ei, Ad, olhe para cá. — Teve barulhos de alguém sem muita paciência se revolvendo na cadeira onde estava sentado, três classes atrás de mim e uma para a direita. — Ad!

Hoje eu estava fiel à minha política de ignorar. Tão fiel que em pouco tempo teria que começar a pagar o dízimo para ela. Já disse que não me arrisco ficar perto demais de Al em público, nunca sei se estou agindo naturalmente ou não. E se parecer que estou feliz demais ao lado desse homem sem nem um mísero pelo na cara?

— Ad, ei, Adrian, olha para cá! Aqui, eu, eu aqui! — Não. A aula parecia muito mais interessante.

Remexi entre meus materiais, um bolo de papéis sujos, riscados e amassados misturados junto com lápis de três centímetros e canetas quebradas, tudo jogado dentro de um estojo velho com meu nome riscado com canetinha em grandes letras de forma, e achei um estilete cuja lâmina estava caindo da proteção de plástico. Qualquer um que me conhecesse apenas há três anos atrás poderia imaginar que eu estava prestes a deixar minha carta de despedida para o mundo antes de enterrar o metal frio e pontiagudo nos meus branquelos pulsos. Mas hoje não. Hoje tomo sol e meus pulsos tem cor de um brasileiro estereotipado bem-nutrido. Até porque, como já disse antes, só não deixo esse mundo por orgulho, mas nada me impede de brincar com a criatividade e a imaginação.

Peguei dois tocos de lápis gastos e risquei com o estilete na madeira seguindo uma ordem: 17:30, lá, fazendo menção ao banco meio remoto de uma praça com parquinho infantil perto da escola. Pedi para a menina de rabo de cavalo cheio de fios soltos atrás de mim passar esses lápis coloridos, nada suspeitos de portarem uma mensagem de tão deprimentemente sujos que estavam. Quem não entenderia um bilhete sem nem mesmo olhar seu conteúdo? Materiais escolares que normalmente se troca e empresta com colegas são bem mais seguros.

Al recebeu a mensagem em suas mãos, olhou para mim, para os lápis, para mim e sorrindo se pôs a revirar a madeira velha em busca de minhas palavras. Alinhou as duas partes do convite na palma de sua mão depois de ter achado as ranhuras malfeitas e leu com visível cuidado, movendo os lábios ridiculamente. Se fosse para os outros verem, meu querido Alberto, não acha que eu teria escrito na lousa ao invés de malditos lápis? Mas a frase travou no limite de meu cérebro enquanto suspirava o ar do arrependimento de ter feito aquilo. Às vezes não chego apenas a achar, mas ter mais certeza que Al se faz de idiota retardado do que garanto minha existência quando penso em, por exemplo, pudim de leite. Nosso amor ocorre melhor quando sou eu a criança da relação, porque não importa o quanto eu critique, ainda há uma dose maior do que eu gostaria de sentimentos entre nós.

Em resposta, Al rabiscou em uma borracha tijolão de duas cores e a pôs em um voo curto e baixo até minhas costas. Juntei, fechando o látex fervido e condensado em minhas mãos, quase com medo de olhar a resposta. Meu lindo amigo aguardava minha reação com olhos maliciosos e queixo apoiado nas costas das mãos, sobre a mesa.  

“Antes”. Fiquei sinceramente meio irritado com uma resposta dessas. Quem não ficaria? Faço de tudo para alinhar, com muita dificuldade, minha vida social, escolar e familiar com Al, como um grande homem de negócios, e Alberto parece ignorar isso nos momentos mais complicados para mim. Final de tarde, o dia todo nessa escola, prometi cuidar da Nanda para meus pais, um monte de trabalho de aula atrasado que procrastinei e precisava terminar... Não estava para as gracinhas dele.

“Não”. Breve e muito autoexplicativo. Mandei a borracha de volta, agora com os dois lados riscados, ele recebeu e ficou olhando a borracha com uma cara estranha de sobrancelhas frisadas que só consigo encontrar em Al, o lábio inferior preso entre os caninos, esfregando a mão na lateral do pescoço como se tivesse com torcicolo. Deu-me uma outra olhadela indignada e mexeu a boca num pedido mudo para mim pelo menos esperá-lo no fim da aula. Assenti de mau gosto.

O último período escorreu lentamente pelos meus olhos e tudo que consegui ouvir eram ruídos dos pés de Alberto batendo ritmicamente na lateral da classe, cada batida parecendo contar os segundos para o fim daquela tortura. Quando fomos dispensados joguei meu bem conservado estojo e os cadernos militantes das trincheiras russas na Primeira Guerra Mundial dentro do saco de mochileiro que arrasto diariamente por aí e fui saindo em direção à porta na frente de todos. Meus passos não eram rápidos, os outros que cismam em demorar mais que o normal para ficarem tricotando com os vizinhos de classe em vez de seguirem suas miseráveis vidas e irem para casa.

Estava cruzando pela frente da sala, logo atrás do professor que entendia meus sentimentos de liberdade, mochila pendendo de um ombro, mãos nos bolos das calças de corte reto, olhando Al jogar suas trouxas nas costas, rápido, muito rápido para me alcançar com seu olhar de recriminação por eu não estar esperando como um bom amigo.

Vamos, Al, eu não sou um bom amigo. Não sei de onde tirou essa ideia, de um desenho da Disney talvez, parece provável. Talvez esse mesmo desenho tenha te ensinado a caridade, perseverança, humildade, bondade e todos esses valores puritanos que fazem de você nunca largar ou se cansar de mim. Nunca olhar feio para mim. Nunca retribuir meu tratamento. Obrigado Walt.

Mas fui calado, literalmente, antes de qualquer oportunidade de comentar a respeito disso. Al sempre fora estranho, em muitos e deturpados sentidos, mas naquele dia eu sentia que havia muito mais coisas erradas do que o normal. O meu normal. Nosso normal. O normal para nossa relação doentiamente não natural. Desde que o vi aquela manhã, soube que precisava evitá-lo o máximo que podia, e não apenas pela minha política de proteção à minha integridade moral (também conhecida como “o dia seguinte à minha crise”), havia algo mais que meu muito tempo de observação paranoica estava me avisando para ter cuidado. Infelizmente, só consegui confirmar meio tarde demais que aquele era o último momento para mim estar de frescura perto dele e isso alertou meus mirabolantes miolos para uma possível situação que eu ainda não programara e esquematizara, não tinha catalogada nem sob controle.

Al estava tão... desafiante, sim, meio valentão como um galante corcel resfolegante num vasto campo verde, mesmo que faltasse muita massa muscular naqueles quartos traseiros para ser agradável de montar. Senti-me violentado por aquela atitude, parecia que minha confiança havia sido prensada contra armários de escolas americanas e sacudida até dar o dinheiro do almoço para aquele cara. Um Al rebelde. Não sabia ainda que tipo de sensação isso causava em minha pessoa. Rebelde. Repeti a palavra algumas vezes mentalmente até ele me alcançar na porta para ver como soava e comecei a ficar animado para cobrir o pouco de preocupação com a súbita e desconhecida mudança de humor de meu querido amigo.

E se ele finalmente tivesse se irritado comigo? E se eu tivesse passado dos limites no dia anterior, colocado pressão e peso demais em suas costas? Talvez ele tivesse feito suas contas mentais e calculado que não valia mais a pena me sustentar, continuar vivendo em com minha chantagem, talvez aquele fosse o dia em que ele fosse finalmente, e pela primeira vez desde que o conheço, ser rude comigo. Quem sabe ele cortasse por inteiro nossa relação! Tinha consciência que deveria começar a ficar assustado e amedrontado, mas minha animação só crescia, ao passo que ele, ao meu lado, continuava anormalmente calado, me olhando quase sem piscar.

Ah, e se todos vissem Al, o Grande Alberto, meu, seu, nosso, nosso querido Alberto perdendo o ritmo de Madre Tereza, acabando sem paciência com um dos muitos que ele acolheu e ensinou a ser civilizado, que hipocrisia! Talvez aquela fosse a tão aguardada chance de rolar aquele ditador escada abaixo, aquela que ele nos escravizara para subir tão arduamente apenas para mendigar sua presença. Ah, talvez eu até deixasse ele me socar, dar-me uma surra tão grande com aqueles braços ridiculamente sem definição beirando pernas de galinha alimentada com transgênicos.

Sim! Era isso que eu faria. Apanharia como um bom garoto e a culpa seria dele, não deixaria que Al ficasse com as recompensas se caso fosse acabar de me aturar de vez; não, se era para ser o final de tudo, teria que ser o mais épico de todos os tempos, teria que fazer jus à grandeza que admito que meu oponente tem, teria que honrar toda a preparação que ele estava fazendo naquele momento, ao meu lado, me olhando ansioso, assim como ele teria que respeitar meu rápido aprendizado com ninguém menos do que ele próprio. Assista sua própria criação, meu querido.

Se fosse para nunca mais poder me apoiar em Alberto, se fosse para nunca mais ganhar seu carinho... Então que pelo menos eu pagasse todo o mal que já fizera àquela pobre e infeliz criatura com não apenas uma dor interna. Talvez eu quisesse mesmo arrebentar o nariz para apenas me sentir melhor por todo o estrego que já havia causado, levar minha primeira briga a fundo, deixar marcas as quais sempre que olhasse lembrasse de meu querido Al. Meu precioso Al que agora se rebelava contra mim, mais que com razão. Uma vingança.

Estava animado, uma animação superficial, uma animação nervosa, acabaria tudo, era a hora, aquela hora que, no fundo, sabia que aconteceria, mas nunca admitia porque sabia que sairia de meu controle. Mas no momento eu tinha tudo sub controle. Já sabia o que fazer, acabara de me convencer disso, já sabia o que Alberto faria, já calculara tudo. Não é só você que entende de cálculos psicológicos, ah, não.

Estávamos ainda lado a lado, mais próximo do que eu permitiria num “dia seguinte”, atrasando os passos, sentindo os pensamentos um do outro tencionando nossos movimentos, os estudantes começando a nos ultrapassar e no meio daquela multidão era o local perfeito, nós dois entendíamos isso. Muitos vieram se despedir de Al, alguns poucos menos de mim, mas nossa concentração estava focada apenas em nossa despedida e em nada mais, cada um apostando na própria capacidade social de se virar no ato.

E lá vinha. Senti meu pulso sendo agarrado, as mãos suadas e indelicadas escorregando contra minha pele, mas com força suficiente para me fazer girar no lugar e parado o encarar de frente. Parecíamos pedras impedindo o fluxo de um rio poluído que esbarrava em nossas costas, parando lentamente e desinteressadamente para ver o que fazíamos pregados ao chão.

Percebi bem logo que aquela era sua primeira briga também, ele não tinha a posição que se espera de alguém que vai lutar. Seus olhos, brilhantes, isso nunca mudaria, eu sentiria falta, sentiria. Seu maxilar firme, os dentes trincados, garganta presa, era um novato, sua beleza social que abdicava hoje sempre o poupara dessa experiência... Ergueu sua outra mão em minha direção e apertei meus olhos a espera da dor lasciva que deixaria minha expressão odiável do avesso. Não, não poderia esperar isso de alguém tão inexperiente. A posição de seus membros, notei entre espiadelas, a proximidade que o impedia de pegar velocidade para um golpe forte, seu peito que encontrava o meu, sua mão que subia deslizando pelo meu braço desproporcional até meu pescoço a encontrar com aquela outra, me segurando mais próximo, seus lábios sobre os meus.

E todos prenderam sonoramente a desnecessária respiração que fazem para sobreviver junto comigo quando se deram conta do que estava acontecendo. Seus malditos lábios prendendo os meus como doces garotinhas ruivas e hidratadas com manteiga de cacau humilhando as maltrapilhas bolsistas que com certeza reprovariam de ano por ter pegado a matéria pela metade. Era como me sentia, como se tivesse pego um assunto no fim, meio muito perdido no centro de uma cidade desconhecida, criticando um filme por não ter assistido seu começo.

Uma atmosfera ilusória e instável de sonho engoliu tudo como fazia Alberto ao me encostar contra a parede, espalhando estudantes como um cardume assustado. Meus músculos tão rígidos que tinha medo que quebrassem caso tentasse fazer movimentos bruscos, os membros tão paralisados, mas que não podiam sentir menos do que antes, ao contrário, cada toque era percebido com cada detalhe e recebido com tanto pânico por meu cérebro que trabalhava para entender como e porque, onde foi que havia errado, que vírgula ou expoente colocara de fora da conta... Era tudo tão fantástico que poderia não ser real. Um sonho. Um daqueles em que eu esquecera de vestir-me e todos falavam da cor de minha cueca, um cheio de vozes perseguidoras de fundo, de gritos e gritinhos, tudo disforme, um pesadelo onde o suave toque dos dedos adolescentes de Al entre meus cabelos machucava, onde todos seus movimentos eram errados, onde eu era errado. E eu odeio estar errado.

Não havia motivo. Não havia razão. Não havia explicação plausível para mim estar me engasgando com uma saliva que pela primeira vez estava duvidando ser minha, para mim estar recebendo um ar usado por outra narina, por outro pulmão, estar aspirando o gás carbônico que as células de sabe-se lá de que parte do corpo dele descartaram. Não havia motivo para ele ter se rebaixado tanto assim. Não podia ser verdade, de maneira alguma.

Não sou uma pessoa criativa, longe disso, sou apenas um garoto comum com um pensamento e sonhos iguais ao de tantos outros. Mas sou imaginativo com uma mente curiosa dada a explorar partes desnecessárias dos meus desejos, descobri isso a pouco tempo. Descobri também que o maior defeito de uma mente ampla (não de conhecimento) assim é a exposição radioativa a situações absurdas, inimagináveis, que explodiria como um balão de aniversário as mentes comuns, mas que na minha nem mais cócegas fazem de tão habituada a idiotices e loucuras de pensamento que está. Talvez o maior defeito de meu cérebro seja aceitar e banalizar esses desejos inoportunos, seja acolher a todos essas pobres e necessitadas ideias tratando-as de igual para igual, sendo que se elas se concretizassem, eu morreria. Morto por ideia absurda materializada. Assassinado por um elefante rosa em minha sala, pelo choque de não saber lidar com a situação. Enfartado de preocupação por ter criado asas de demônio em minhas costas por não saber como escondê-las. Sufocado por Alberto por não saber como explicar às outras pessoas o que está acontecendo. Longe de minha mente, não sou ninguém perto da realidade.

Mas a realidade estava ali. Os olhos de Al estavam fechados como se não quisessem me ver, os meus arregalados, encarando aquela pele lisa, perfeita. Aquele momento que parecia não acabar nunca mais, parecia infinito. Havia uma parcela adorável nisso, uma conquista interior de talvez ter o momento único de atenção do meu melhor amigo, do meu mais que melhor amigo, um peso que me aliviou em finalmente não precisar mais esconder minha necessidade afetiva da sociedade, de me livrar finalmente de toda a burocracia social que se tem que passar ao admitir que ama alguém, um certo ar de leoa de quadril largo gabando-se para as outras fêmeas que conseguiu ser a principal do chefe do bando. Mas isso era pressionado para um cantinho minúsculo do dedão da mão esquerda que era o único que pervertidamente continuava a empurrar Alberto contra mim.

Só faltava o motivo. Isso me frustrava, isso me frustra até agora. Ele não seria idiota suficiente para se apunhalar junto comigo sendo que podia apenas me chutar com suas galochas coloridas. Talvez ele soubesse que isso iria doer mais, talvez ele soubesse que esse era seu único plano maquiavélico que eu ainda não havia cogitado. Ah, como ele era inteligente! Mais do que eu podia esperar, uma vingança bem elaborada, quem sabe, uma humilhação pública que levaria tudo que eu tinha, tudo que ele me dera, tudo que me ensinara a conquistar, tiraria de mim meu Al, exatamente, rapidamente e sem barreiras como ele fez com a bala que estava na minha boca momentos antes. 

Com toda certeza subestimei o tamanho do ódio de Alberto por mim. E ainda que existisse uma excitação enorme em saber que pelo menos esse posto eu ocupava unicamente o primeiro lugar, também era um pouco deprimente. O que eu fizera? Como as coisas haviam chegado tão longe? Derrubar socialmente Alberto não parece tão divertido agora. Mas eu consegui e não posso mais me arrepender.

Ele se afastou lentamente de mim, abrindo os olhos apenas quando pode garantir que conseguiria me olhar sem parecer um ciclope. Eu tremia e estava prestes a chorar, mas ele apenas sorriu e foi-se separando de mim aos poucos, ameaçando chegar para perto novamente se eu representasse perigo em alguma maneira. Desceu as unhas bem aparadas pela superfície frontal da minha camiseta até ela acabar numa barra feita à mão.

— Não era isso que você queria? — Maior e de muito mais efeito que qualquer surto psicótico que poderia ter.

Nisso, virou a cabeça como que envergonhado e foi embora ignorando todos que tentavam pará-lo para fazer perguntas, mas não, isso era o prêmio bônus que ele deixaria para mim. Ah, se eu soubesse o que tive que encarar logo depois sua partida, sua fuga, nunca teria desejado que ele saísse da minha frente. Se eu soubesse que aquele cretino tinha deixado um chiclete sem gosto no canto interno da minha bochecha, eu talvez teria criado um pouco mais de coragem para ir atrás dele tirar satisfação. Mas não, eu, como guerreiro vencido, deveria aceitar minha humilhante derrota, aceitar e reconhecer o seu esforço, respeitar todas as feridas e cicatrizes que ele adquiriu para acabar comigo e por isso enfrentar de cabeça erguida toda aquela multidão de adolescentes que acabavam de ganhar o assunto do mês, que já pegavam seus celulares para espalhar a desgraça, que já começavam a avançar para cima de mim. Infelizmente, eu nunca cheguei a respeitar Alberto, caso contrário isso não teria acontecido.

Uma garota, muitíssima apegada a Al, chegou em mim para dizer:

— Eu super apoio vocês, está bem? — ela enganchou seu braço no meu, fazendo-se de simpática, me levando para longe das outras garotas que também tentavam falar comigo — Vocês podem ficar juntos, eu vou ajudar vocês a superarem os outros, está bem? Eu entendo perfeitamente vocês, sei a dificuldade que estão passando, precisam ser fortes, está bem?

Ah, sim.

Somos muito fortes.

Acabamos de sair de uma luta, não está vendo? Não está vendo minhas lágrimas héteras?

Uma pequena confusão no início. Uma ignorância sem tato na lida conosco, uma burrice cega perto de nós, como se dormissem durante uma explicação de matéria de prova e agora, na hora da avaliação viessem pedir a nós a resposta por meio de perguntas desesperadas e objetivas.

Mas assim como dois e dois são quatro não resolvem nossos problemas, posso dizer que sua razão não tem lugar em nossa consideração.

E mais. Buscam respostas, mas sequer sabem a questão. A única que não me permite viver — ou deixar de — por me atormentar, por ser tão tentadora que nenhuma especulação minha foi digna de ser considerada: por que, Alberto? Por que se vingou de mim, de você, de nós tão brutalmente, meu querido?

Terça à tarde
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É Terça à tarde. Meu Deus, já é Terça à tarde. Se eu resmungar por uma terceira noite seguida à minha mãe que estou doente demais, febril, que juro que se tivesse um termômetro em casa ela veria como estava com pelo menos trinta e oito graus e meio, como estava fraco, com dor de cabeça e olhos pesados, ela não vai acreditar. Na primeira noite, ela nem entrou em meu quarto, me deu boa noite da porta e ofereceu um chá, dizendo que era melhor eu faltar aula no dia seguinte. Eu faltei. Passei a Segunda como tinha passado o resto de Sexta, Sábado e Domingo, deitado na cama com o olhar vago, sentado à escrivaninha com os pensamentos perdidos, jantando com a cara voltada para o prato e alheio ao que estava acontecendo ao meu redor. A cena se repetia e se repetia, de novo e de novo, sugava minha concentração como um acrobata nu no meio de um movimento particularmente difícil diante de uma plateia delirante, e esse era eu, eu estava delirando.

Segunda à noite minha mãe veio sentar ao meu lado para pedir se estava tudo bem. Obviamente ela notou que havia algo de errado em eu passar três dias sem brigar com Nanda, sem discutir com o pai, muito menos sem questionar nada. Talvez ela tenha notado o pedaço de mim que foi arrancado da realidade e designado especialmente para reviver constantemente o que havia acontecido no fim da aula Sexta-feira, para manter Alberto em minha mente. Respondi que apenas estava indisposto, um resfriado, quem sabe, que tinha muita dor de cabeça, uma fraqueza de corpo terrível. Ela fez um olhar de reprovação e me deixou faltar aula novamente. Agora já é Terça à tarde e se eu ainda estiver de frescura ela me levará ao médico e ele fará perguntas, e de perguntas para responder eu não preciso de mais nenhuma além da que está me jogando na cama com o peso do mundo contra meu peito: por quê?

Eu ainda não acredito. Não quero acreditar e é por isso que não fui à escola todos esses dias, porque tenho medo de passar a crer depois de ver Alberto na minha frente depois do... do seja lá o que ele fez comigo. Pegar no sono tem sido difícil, desacelerar meu coração, conseguir relaxar meus músculos para fechar os olhos, é tão difícil que tenho medo de tentar. Esse é mais um dos porquês vindo do porquê maior e mais avassalador, o porquê de toda vez que apoio a cabeça no travesseiro, tiro lentamente a tensão dos músculos e respiro fundo deitando as pálpebras, uma dor venenosa e aguda toma conta do meu peito, me trazendo todo o pânico que eu deveria ter sentido naquele momento... E mesmo quando, depois de muito me revirar na cama entre sucessivas injeções de angústia lasciva, consigo pegar no sono, Aberto me persegue.

De olheiras feitas e cansaço para dois dias, faço bem meu papel de doente. Infelizmente descobri que passar dias vegetando não me levaria a conclusão alguma sobre o motivo que levou Alberto se destruir socialmente, na frente tanta gente que garanto que nunca mais olhará em sua cara por isso, apenas para me dar um tapa tão bem dado. Lógico, é tão encantadoramente inteligente que sabia que me dar um tapa de verdade não seria tão eficiente quanto... quanto... eu ainda não acredito. Alberto me beijou.

Não acredito que ele me odeie tanto assim. Tenho vontade de jogar pela janela tudo que aparece pela minha frente, inclusive eu mesmo, só de pensar que o rancor que ele sentia por eu ter que ficar impondo regras tolas ao nosso relacionamento, por se arrepender de me mimar tanto, tudo de ruim que eu trouxe a sua vida embolado cuidadosamente para ser pago de uma maneira tão violenta e bem planejada.

E apesar de estar muito provavelmente sozinho e incompreendido alheiamente, com um arrependimento maior que Alberto está sentindo agora, se é que está, e uma tristeza infinita por finalmente ter sido largado, eu me sinto bastante orgulhoso dele. Ele atuou muito bem. Uma forma descomunal de convencer a todos a seu redor, menos a mim, claro, pois ele precisava me fazer sentir mal. Estou orgulhoso do empenho dele, estou orgulhoso de mim por ter conseguido fazer ele se empenhar tanto em uma única pessoa, por ter pelo menos feito ele dar uma parte verdadeiramente única dele apenas para mim. Mesmo que para isso eu tenha aberto mão do pouco, mas frequente Al que tinha até então.

Mesmo com todas essas considerações e conclusões, permanece: por que ele se rebaixou junto comigo? Se fechar os olhos e tocar a ponta dos dedos em meus lábios, consigo sentir a boca macia de Alberto ainda na minha, como se ainda estivesse aí para me dar um calafrio pela espinha e arrepiar os pelos do meu braço. Fiz questão de manter bem viva essa sensação como forma de não esquecer o sacrifício dele.

Estou sozinho agora. Matei o único que me entendia.

Matei em mim, claro, pois o real deve estar agora em sua casa, mais que satisfeito por ter me feito ficar e depressão por sua causa, por ter me rebaixado a nada novamente. Acho até que pode ter feito as coisas exatamente desse jeito para me deixar afogado nessas incertezas da causa que o moveu a fazer coisas dessa maneira, ele é mais manipulador que eu sequer posso imaginar.

Nanda sai pela porta de frente e saltita até mim na sarjeta na frente de casa.

— Que te aconteceu?

Nanda tem oito anos e uma compreensão de mim que se limita às coisas que ela rouba do meu quarto. Às vezes tenho vontade de sufocá-la a noite para que ela não precise crescer nem sofrer com as amarguras que a vida vai aos poucos largando para cima de nós. Ela senta ao meu lado, bem viva.

— Nem vem com essa história de que está doente, só a mãe que cai nessas. — Oito anos de pura inteligência, que orgulho.

Paro para pensar um pouco no que responder. Não é uma questão de confiar ou não em Fernanda, é que ela não compreende o fato, não conhece a história toda. Mas sendo apenas uma criança, não se interessa sobre a história dramática do seu irmão adolescente, não me questiona sobre algo desinteressante. E é isso que eu preciso, diminuir as perguntas que até hoje só foderam com minha vida.

— Briguei com um amigo. — Afasto os cabelos que me caíam sobre o rosto. Estou sentado no meio-fio, queixo apoiado nos joelhos unidos ao peito. Mato formigas que passam com um graveto.

— Alberto? Brigou com Alberto, sério?

Olho com o canto dos olhos para ela. Ela me encara incrédula.

— Adrian, você é muito bobo, viu? — Ela agita uma mão me repreendendo infantilmente. — Ele é seu melhor amigo, não pode deixar que uma briguinha estrague a amizade de vocês.

Solto um riso seco, olhando para o céu, desta vez. Viu? Para início de conversa, nunca tivemos uma amizade, depois, não foi apenas uma briguinha. Foi uma batalha final que eu induzi e perdi de modo humilhante.

— Eu sei que você gosta muito dele. Ele gosta um monte de você também, eu sei disso, sabia?

— Nanda, eu não.... Olha, eu e Alberto.... Não.... —Não há como explicar isso para uma terceira pessoa.

— Você acha que só porque eu tenho oito anos você entende mais das coisas do que eu, né? — Ela se encosta em mim, passando a me abraçar. — Mas eu te vejo melhor que você.

Isso, por algum motivo, crava mais fundo a agulha que estava presa às minhas costelas esses últimos dias. Puxo ela contra mim notando como estou confuso e andando sobre afirmações sem bases. Um toque de desespero motivador começa a agitar meu sangue.

— Minha professora disse que quando temos problemas temos que compartilhar porque é por isso que vivemos com a família e vamos à escola com um monte de amigos. Quando temos dúvidas temos que perguntar para quem sabe e quando ninguém sabe a gente mesmo imagina a resposta. Mas nem sempre uma resposta inventada é certa, sabia?

Ouço meu coração martelando em minha cabeça. Eu nunca deixarei a sensação quente e aconchegante do abraço de Al para trás, nunca conseguirei esquecer como ele me olhava de modo carinhoso, como colocava meus cabelos para trás quando caíam sobre minha face. Nunca tirarei isso de minha mente e carne se ainda tiver motivos para lembrar de tudo. E enquanto eu mantiver essa dúvida cruel, esse porquê, nunca afastarei Al de mim. Não posso desfazer o ato que o levou a acabar com tudo, nem me arrependo de reivindicar exclusividade, mas posso pelo menos tirar o gostinho doce do espírito daquele porco arrancando dele os motivos. Ainda não perdi a luta por completo, não vou deixar que ele continue me manipulando mesmo depois do fim do nosso relacionamento. Acabará não só para ele; vou tirar o resto de mim também.

— Entende? É por isso que eu zerei minha última avaliação de matemática. Eu inventei as respostas e não estava certo. Aí a Gabriela brigou comigo porque ela não queria amiga burra, mas então a gente fez as pazes porque a professora mandou.

Sinto uma brisa morna passando entre nós e entendo que mesmo que eu e Nanda não estamos falando da mesma coisa, ela ainda sabe mais do que eu sobre mim mesmo.

— Tem razão, mana. Vou falar com ele. Agora mesmo.

Mando ela entrar para casa e avisar nossa mãe caso ela chegar em casa antes de mim que estou na casa de Alberto. Corro mesmo me sentindo fraco e assustado, um covarde completo, e sinto também uma animação crescer dentro de mim. Afasto a euforia que seria encontrar Al, tento lembrar a mim mesmo que não vou lá para nada mais que fazer uma pergunta. Deus, como meu coração fica pesado a cada passo que dou, como é difícil convencer a mim mesmo que Alberto me odeia e que eu devo odiá-lo também para não sentir-me uma barata.

A casa grande, de cerca cinza, lá está ela. Penso em tocar o interfone, mas nas Terças-feiras sua mãe tem folga e não quero que ela ouça nossa conversa. Pego meu celular e com dedos trêmulos digito seu número, eu o excluí, mas nada adianta quando se sabe os dígitos de cor. Penso em chamá-lo para fora e então conversarmos aqui mesmo na rua, terreno neutro. Sinto que não conseguiria me manter firme num ambiente perfumado com o cheiro hipnotizante de Alberto. Ponho o celular contra a orelha, ansioso, não sei por que, mas ansioso demais. O medo toma conta das minhas pernas.

Ouço o toque dele da janela do segundo andar, onde é o seu quarto. Logo para e a ligação é encerrada.  Afasto o celular do rosto e como nada acontece, ligo novamente, o medo subindo para meu tronco. O toque vem novamente daquela janela, dura dessa vez um pouco mais, aquela música modinha que só Alberto mesmo para pôr de toque do celular, mas logo cessa e mais uma vez a chamada é finalizada.

Engulo a saliva de maneira arranhada, talvez meu resfriado não seja de todo mentira, e ajeito meus cabelos para trás com as mãos começando a suar. Decido então tocar o interfone. Ele tinha que me ouvir, não podia ser tão cruel a ponto de me ignorar por completo.... Não ainda.

A mãe dele abre a porta da sala e colocando a mão sobre a testa vem até mim. Desenchaveia a porta, tem rugas em sua testa e ela parece preocupada, o que me deixa preocupado, mais ainda, o medo sobe sobre meu estômago e sinto um enjoo que me faz engolir a saliva que não tenho.

— Meu Deus, Adrian, que bom que veio. Ele ligou para você?

Faço que não com a cabeça, não entendo o que essa senhora quer dizer.

— Passou a tarde de ontem e hoje todinha trancado no quarto, não sei o que fazer com aquele menino, está me assustando tanto! Nunca ficou assim antes.

Ela me puxa pelo braço para dentro me guiando pela sala, corredor e escadas, parando lá em cima. Eu sei o resto do caminho.

— Ele não quer me contar o que ouve, mas você deve saber. — Um gelo percorre meu corpo, ele está subindo, o medo, está começando a me machucar. — Mas não me interessa se ele não quer me contar. A sua companhia deve melhorar o ânimo dele, vá lá. — Ela dá meia volta torcendo as mãos na blusa fina, soltando o ar preocupadamente. Desce as escadas e eu fico sozinho encarando a porta do quarto dele no fim do corredor.

Vou até lá, estou decidido. Paro em frente ao cômodo, sinto-me desconfortável, há algo de errado nisso tudo. Retomo a mim mesmo o motivo de estar ali para afastar mais dúvidas além das que eu trouxe e endurecendo a postura bato na porta. Um “entra, mãe” veio de lá de dentro e eu abri a porta depois de um momento de hesitação.

Al está encolhido em sua cama, com as cortinas fechadas, o lugar está escuro. Tem metade dos livros de sua estante jogados pelo chão e suas cobertas estão emboladas em um canto do quarto. Ele está de costas para mim e quando me aproximo vejo que seu peito sobre e desce de maneira irregular. Alberto está chorando.

O medo chegou até meu peito e por alguns momentos de horror esqueço de como respirar. Estou em desordem, já estava, agora é um pandemônio interno que me estapeia com a ideia de Al chorando, me estrangulando então por vê-lo frágil daquele jeito.

— Alberto... — sussurro indo em sua direção com passos vacilantes. Doía andar até ele.

Ele se vira para mim, assustado com minha presença e se encolhe contra a parede desta vez. Segura suas pernas esguias entre os braços, mãos que rapidamente varrem os olhos e bochechas para limpar as lágrimas. Parece que se prepara para dizer algo, mas nada sai de sua boca, de seus lábios, foco neles e Sexta-feira volta, estou diante de Alberto, Senhor, como posso tentar retribuir o ódio de uma criatura dessas?

Respiro fundo, paro diante da cama dele. Não posso me deixar levar. Não consigo encará-lo também, então foco nos desenhos do Mickey Mouse que saltitam por seu lençol.

— Alberto, por que você....

— Me desculpe. — Ele interrompe. Sua voz está falha e se vê claramente que luta para não cair no choro soluçante novamente. — Eu não devia ter feito aquilo. Fui longe demais.

Isso me confunde e embaralha as palavras do discurso já pronto que tinha em minha mente, me fazendo ficar com os lábios entreabertos por alguns segundos, sem sair som algum, esperando ele continuar, esperando que algo lógico venha à minha cabeça para dizer. Aspiro o ar do ambiente fechado pensando em oxigenar o cérebro num grande suspiro, mas inalo junto o cheiro tão agradável de Al que está presente por todas suas coisas, por todo seu quarto e isso não me ajuda a refletir. É único. Algo forte, de garoto e desodorante, mas também algo carinhoso e aconchegante. Tem aroma de árvores de folhas finas, de uma floresta de pinheiros ao sol, só que frio e misterioso. Talvez como abraço e outono ou um abraço no outono. Talvez tenha apenas o infinito contido em sua essência e eu esteja captando pequenas partes de um todo mais complexo.

— É sério, eu... eu não sei o que pensei naquela hora. Foi além do meu controle, quando vi, fiz. — Esfrega a palma na face, terminando levando os dedos até os cabelos, enterrando eles no meio dessa cabeleira lisa e clara, espetada de tão desarrumada e despenteada. — Me desculpe.

Balanço a cabeça sem entender. Ele não devia estar reagindo assim.

— Não, Alberto. — Coço a nuca, respiro, sou invadido pela essência de Al, Al está em todo lugar. — Não se desculpe. Só me responda. — Olho em volta, capturo aqueles grandes olhos azuis claros e úmidos, ah, Deus, estão me encarando tão profundamente, com tanta expectativa, com tanta fervura, ele só pode querer me ver dessa maneira, pressionado, desconfortável, sem palavras. — Por que fez isso?

Ele deixa cair o braço que antes apoiava sobre a cabeça, largando-o sobre o colo, flexionando os dedos. Parece treinar estrangular alguém. Fica uns instantes quieto, apenas me encarando fixamente, analisando cada milímetro de mim, físico e metafísico.

— Como é que vou saber? — Diz por fim, irritado com minha pergunta talvez inconivente, desviando os olhos. Levanta da cama com dificuldade e eu tenho o impulso de ajudá-lo, parece que nem forças para se levantar sozinho tem. Começa a recolher os livros que estão jogados pelo carpete. — Como caralhos eu vou saber, Adrian?

Suspira sonoramente, parecendo uma velha. Nunca me senti mais ignorante em toda minha vida. Um completo inútil, ainda por cima, nem consigo entender a pessoa que mais me importa. Para diminuir essa sensação começo a ajudar na coleta dos livros. Fico uns instantes em silêncio, mas minha vontade é tagarelar infinitamente sobre o motivo do porquê vim aqui e fazer isso ser entendido, coisa que... parece que não estou conseguindo muito. Talvez meu Al apenas esteja jogando comigo novamente. Meu não. Al não é mais meu. Nunca foi, na verdade.

— Adrian — começa, mas logo para. Está hesitante, parece confuso, ainda meio irritado. Do jeito que franze as sobrancelhas, o conheço bem, parece mesmo irritado. Mas Al nunca fica irritado de verdade. Ou pelo menos nunca demonstra. — Olha só, não sei bem se entendi por que você está aqui.

Prendo a respiração. Determinação, determinação.

Ponho os livros empilhados na borda da prateleira onde ficam normalmente, eu sei, eu conheço a ordem por assunto que ele criou, sei listá-las na ordem em que ficam postas, livros da escola, livros de idiomas, livros de leitura obrigatória, livros da infância, livros de heróis, modinhas infanto-juvenis, depressivos, de autoajuda, crônicas, nonsense, sagas medievais gigantescas, clássicos pequenos e monstruosos e sua modesta coleção de mangás.

— Ou talvez — continua, vendo que me entreti com os livros e deixei sua pergunta sem resposta. —, simplesmente tenha sido você que não entendeu alguma coisa aqui ainda.

Rio. Me viro para ele, desta vez sim sabendo que tinha resposta. Oh, e como eu sabia.

— Eu entendi bem o que aconteceu, bem até demais, Alberto. Entendi que você me salvou, lá naquele dia que nos conhecemos, na oitava série, na atividade de integração, eu me lembro. Entendi que nunca em toda minha vida encontraria uma pessoa como você, e entendi também que você sempre foi tão incrível que nunca ninguém encontraria alguém como você e por isso todos gostam de ti.

— Do que você está falando, seu idiota? — Sua voz começa a ficar embaraçada novamente, seus olhos úmidos me afetam, mas não posso mais parar.

— Então entendi que por você ser a pessoa mais bondosa e carinhosa de todas, nunca rejeitaria o afeto de ninguém que salvou também, nenhum dos seus amigos, ninguém mesmo. Entendi que queria cuidar de todos de uma vez só como fazia comigo. Entendi que não era o único que dependia de você. Não era o único que te queria, nem o único que você queria.

— Você por algum acaso está me chamando de puta? ­— Sim, ele está começando a chorar de verdade, chorando e gritando, ele está mesmo zangado agora, pela primeira vez na vida, mas agora não consigo mais parar.

— Entendi que sua crueldade era boa e sua bondade era cruel e que isso era viciante. Entendi que você ia atrás de mim para me fazer depender de você, então quando eu me voltava a ti, você me dava as costas apenas para me ver indo atrás. Entendi que tudo isso não passava de um joguinho para você. Um joguinho social.

— Adrian, meu Deus, do que você está falando, pare com isso... — Seu choro me corta, ele me abre, o medo já passou, ou simplesmente tomou conta de todo meu ser a ponto de eu não mais discerni-lo do resto do meu corpo. E agora tudo que eu quero é responder minha pergunta e ir para casa chorar tanto e com tanta vontade como Al está fazendo por minha causa agora.

— Entendi tudo isso de você e ainda sim continuei necessitando de ti, porque você se tornou tudo para mim. Mas também entendi que apenas sua atenção, a mesma que você dava para todo mundo não era suficiente para mim, e sei, eu realmente sei, como fui cruel contigo. Porque minha raiva de mim mesmo por te querer era do tamanho da repulsa que tive por ti. — Nesse momento, Al se apoia na parede, como se ouvir o próprio sistema sendo posto em palavras, desmascarado por seu principal alvo, fosse demais para suportar. — Entendi que isso talvez tenha ido longe demais, que eu tenha ultrapassado os limites da sua paciência infinita, talvez fosse isso mesmo que eu queria. E entendi, por último, que, depois de tanto tempo sofrendo pela minha rebeldia você quis me largar de vez, pois eu era uma ameaça a você. Mas fez isso de uma maneira que podia se vingar de mim também, para que saísse vitorioso no fim. — Al me encara com olhos arregalados e vermelhos, me acusando, chorando com a face desfigurada, que beirava ora o furioso, ora o confuso, ora o atônito. Eu? Não sinto mais nada, nem se vivo ou se já morri para ser a assombração que agora atormenta Al em seu quarto. Talvez seja por isso que me olha assim. — A única coisa que não entendi, meu querido Alberto, é o motivo de eu estar aqui. Porque eu preciso seguir em frente, por favor, apenas me dê esse favor, porque eu respeito demais a ti, eu me orgulho da sua inteligência para todas essas estratégias que você bola, para toda essa organização e manipulação. E eu que pensava que estava a par de todas as suas ideias! — Rio sem achar graça de verdade. — Só me diga por que para acabar comigo em frente a todo mundo você teve que se afundar junto comigo? Se rebaixar a tanto?

Quando acabo de falar, fica um silêncio desconfortável. De fala, claro, porque meu coração martela em meus ouvidos e tento recuperar o fôlego (por falar tanto) da maneira menos ruidosa possível, sem muito sucesso. Além dos grunhidos secos de choro sendo reprimidos por Al, que está me olhando mais pendendo para o desorientado agora. Me encara demais, ele, e começo a me sentir meio idiota por ter feito todo esse discurso para talvez sair daqui sem uma resposta.

Espero Al se acalmar na expectativa dessa resposta. Preciso da resposta. Ele respira fundo, engole o choro e, Deus, ele estende a mão para a Dona Ira, essa vagabunda, que está ao seu lado.

— SEU. IDIOTA. — Ele pega o primeiro livro que consegue alcançar e atira em mim, era O Pequeno Príncipe. — Como é que pôde pensar numa coisa dessas? — Os Treze Porquês. — Você é louco? Você é retardado? Tem problemas? — Memórias do Subsolo. Engraçado que na versão da L&PM foi traduzido como Notas do Subsolo. — Dos grandes, né? ­— Quando roça a mão na Dança dos Dragões, ao lado da versão integral dos Irmãos Karamazóv de capa dura, sei que não vou desviar e vai doer, vai doer mais que perder meu Al, mas não mais que sair sem saber o que vim saber.

Pulo meio abaixado para frente e agarro seu pulso antes que consiga atirar o monstro literário em mim. Al se debate como uma bonequinha de pano, enquanto grita para mim soltá-lo, mas aqueles pulsos branquelos são gravetinhos em minhas mãos, me sinto rude e agressivo, mas não diminuo a pressão. Estou tocando Al, meu Al, mas não importa agora, eu só quero que ele fale para mim ir embora para sempre de sua vida.

Ele só para de me xingar quando a força que faço, sem perceber direito, em seu pulso se torna tamanha que precisa me dar um soco para se soltar. Ele também não mede forças, aquele grande filho da puta, minha cabeça voa para trás e bate na porta. Finalmente solto seu pulso, está vermelho e não consigo me importar. Só quero que me diga. Não me importo com essa dor lasciva que arrebenta meu crânio e fica se chocando contra meu cérebro, fazendo um grande milk-shake cor-de-rosa. Só preciso saber.

— Escute aqui, Adrian, — Ele massageia o pulso, face corada pelo choro e raiva, me encara profundamente, os olhos cristalinos e ensolarados agora tempestuosos, apesar de limpos, sempre limpos. Meu Deus, o que estou fazendo. — Você quer tanto saber essa merda de pergunta, tudo bem, eu lhe respondo. — Dá uma grande puxada de ar, e solta. — Porque eu te amo, imbecil. Eu gosto de você, você sempre foi meu amigo mais especial, mas eu não te vejo só como amigo, está bem?

Não, não faz sentido.

— Mas... — Hesito, esse poderia ser mais um de seus truques. — Sexta-feira passada você fez aquilo porque queria me destruir, foi nossa batalha final...

— Batalha final, garoto? Você está doido? — Joga as mãos para cima, pasmo comigo. Não entendo o que ele diz, começo a me sentir confuso, perdido, nada comparado a antes. Minhas certezas que tinha certeza que eram certas começam a oscilar e só quero saber minha resposta, a resposta final para tudo acabar, não gosto quando contrariam minha versão das coisas, minhas verdades são sempre verdadeiras. — Eu te beijei simplesmente porque eu queria, porque eu desejo você. As pessoas se beijam quando amam, sabia?

Minha cabeça dói da pancada agora, ainda por cima, estou começando a sentir dor cada vez mais forte e não gosto disso, e nada, nadinha faz sentido. Começo também a me sentir idiota, o sangue sobe minha face e queima, sobe a culpa, sobe o medo, sobe o arrependimento e não sei o que fazer. Embasbacado paro olhando Al declarar-se para mim em nossa despedida final.

— Mas contigo foi sempre assim, não é? — Ele passa a mão no rosto, esmagando o nariz, ainda está zangado, mas parece se conter. Lágrimas começam a descer novamente por sua face. — Sempre foi difícil. Você não parece aceitar as coisas como elas são, simples, práticas, sem explicações, você sempre tem que problematizar toda a sua vida, e, adivinha? Você me puxou junto para esse buraco negro que você criou.

— Mas você....

— Sim, Ad, sim — Al me corta. — Eu tenho amigos, eu trato eles bem porque sou uma pessoa normal tentando ser simpático. Mas você... Puts, eu me apaixonei por ti. E você parece uma criança fantasiando mil e uma estratégias para negar isso não importando o quando eu deixe claro para ti. — Põe as mãos nos meus ombros, ele está quente, quente como um dia de verão, com o aroma de outono, me sinto em março, mas estamos em outubro e isso não ajuda a organizar as coisas. — Eu sabia desde o início que talvez você não sentisse o mesmo por mim, mas você sempre me tratou tão... com tanta...  Eu não sei, Meu Deus, você me deixa confuso, ora me abraça e sinto que gosta de mim, ora vira as costas e me sinto um lixo.

Ele faz uma pausa, analisando cada centímetro do meu ser. Era mentira. Al não sabe tudo sobre mim e eu não sei nada sobre ele. E ao que parece agora, também não sei nada sobre mim. Ou da realidade.

— Sei que esse tipo de relacionamento não é fácil. Pensei que era por isso que não queria ficar comigo na frente dos outros. Mas poxa, Adrian, você sabia que eu era gay! E você não falava nada, não dizia nem sim, nem não, apenas ignorava completamente e isso me deixava louco.

Oh, meu Deus, Alberto é gay. Eu não sabia disso, mas de um jeito sabendo, creio. Minha cabeça dói tanto e eu sou tão idiota.

— Então, se quer que eu seja mais específico, depois de tanto esperar, e esperar e esperar por ti, apenas sendo ignorado, Sexta eu resolvi deixar o mais claro que achei que conseguiria. Na frente de todos porque se não você iria me ignorar do mesmo jeito!

Cai em soluços, esforçando-se para falar. Ele está tão perto, tão frágil, tão outra pessoa do que me lembro. Sequer consigo me lembrar direito do que me lembro, dói tanto....

— Não sei, Adrian, juro que não sei. Parece que você tem uma memória seletiva, deleta tudo que não presta para seu joguinho doentio de criar historinhas. Quando vi que você não veio para a aula Segunda pensei estava passando um tempinho para tentar se esquecer disso também. Sério. Eu te amo. Mas você é uma máquina de sofrimento alheio, meu Pai. Eu não posso continuar com isso. Não dá mais. Não tem como. Não tem como se vivemos em realidades, em universos tão diferentes apesar do mesmo mundo.

Então... Nossa relação não era complicada? E.... eu sou especial para Al?

Assinto lentamente, percebo que lágrimas estão escorregando por minhas bochechas, mas não entendo o motivo. Não, hoje não há comparações, elas me fugiram e eu também não entendo. Alberto tira suas mãos de meus ombros, há uma expressão de dor em seu rosto. Deve estar doendo para ele também. Al me parece uma pessoa tão comum agora, não entendo o que aconteceu.

— Então... se você puder ir agora, por favor, seria bom. Me desculpe por tentar amar você, cara. Agora por favor, eu preciso chorar amargamente.

Me inclino para frente, seguro seu queixo entre o polegar e o indicador e ponho meus lábios sobre os dele, Alberto nada faz para me impedir. Afasto meu rosto um pouco, o suficiente para conseguir vê-lo. Al está horrível, choroso, e eu estou confuso. E nem pude sentir sua saliva. Me aproximo e experimento seus lábios novamente, dessa vez entreabrindo-os, e não encontro nenhuma resistência. Ele não escovou os dentes esta tarde.

— Eu não sei, Al. Eu só... não sei.

— Eu sei. Por isso estamos aqui, Adrian. — Ele me afasta delicadamente, parecendo se dilacerar por isso. Al, no fim das contas, ainda continua muito gentil, mesmo depois de me atirar parte de sua pequena biblioteca. — Este é o grande problema.

— Mas eu queria saber.

— Você sabe. Demais e muito, mas aquilo que não é necessário saber. Você pensa demais. — Dá um beijo em minha bochecha e como isso seca minhas lágrimas não sei dizer. — Agora vá embora, e tente explicar para minha mãe no caminho o que foi essa gritaria aqui dentro que ela deve estar, além de preocupadíssima, arrancando os cabelos de curiosidade.

Hesito. Minha pergunta já foi respondida. Prometi que depois disso iria para casa e então tudo teria acabado.

— Você ainda é meu amigo, Al?

Ele sacode a cabeça e se vira de costas, juntando novamente os livros voadores.

— Vá para casa, Ad. Não me machuque mais.

— Mas você me ama ainda?

— Muito. Agora vá embora antes que eu faça Crime e Castigo entrar fisicamente em seu cérebro.

Sorrio, e dando meia volta vou embora. Tinha razão. Esse foi o fim de tudo, tudo acabou, terminou. Nossa relação complicada acabou e tudo deve mudar agora.

Sinto-me ansioso para ver o que começa de agora em diante. O tudo que acabou, mas tem que começar de novo, apesar de diferente. O tudo mudou porque eu mudei, instantaneamente, e noto isso agora. Ai, Alberto, depois de tudo que faço por ti você ainda tem coragem de reclamar? Tsc, vou viver para cair nesses seus joguinhos, seu manipulador. Mas esse, agora, eu não vou perder.

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Atualizado em: Seg 29 Abr 2019

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