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Quem Foi e Quem Não Conseguiu Ficar
Acordar já não era fácil para Raimundo, nunca foi. Homem trabalhador, ele criou suas duas filhas até onde e quando pôde. Não era fácil cuidar de duas meninas sozinho, mas é muito mais difícil não poder criá-las.
Levantar da cama, tomar seus remédios, colocar os óculos, tomar banho, escovar os dentes, comer...
Raimundo Oliveira dos Santos não quer, não precisa, poderia morrer aqui e agora, mas vai levantar da cama, tomar seus remédios, colocar seus velhos óculos, tomar banho, escovar os dentes e “comer”. Hoje, ele pede para estar vivo, só hoje, precisa estar vivo para acompanhar o homem que transformou sua vida.
Pensa em ligar o rádio para ouvir as notícias, mas lembra de que não tem mais a antiga radiola e nem tem dinheiro para um novo aparelho. Mora, de favor, em um apartamento sujo de um velho amigo do seu falecido irmão. Tudo que há no apartamento é sujeira com uma solidão imensa encostada ao lado da porta, além do seu colchão imundo e o resto de comida dentro de sacolas plásticas.
A audiência começa em uma hora, ele precisa sair de casa, não pode perder a chegada do homem, não pode perder a chance de olhar nos olhos dele mais uma vez.
Saindo de casa, vê seu ônibus passar. Será mais meia hora só a esperar o próximo. Parado ao lado da placa que diz “ônibus” com o dia ainda amanhecendo, pessoas indo para o trabalho, pessoas paradas ao lado de Raimundo e pessoas olhando para Raimundo. As pessoas olham, debocham e trocam palavras por sussurros interrompidos de pequenas risadas.
“Só mais quinze minutos”, pensa e torce Raimundo sem se incomodar com os risos, sem se incomodar com nada. A única coisa que o incomoda é estar vivo. Chega o ônibus, sobe, Raimundo senta, mas logo no ponto seguinte, uma moça grávida entra, com semblante reluzente e ele a oferece o lugar.
—Muito obrigada, senhor, se eu não estivesse com as pernas tão doloridas não deixaria que um idoso me desse o lugar — Diz a grávida.
—Não se preocupe, não, minha filha, quando minha mulher estava esperando nossa primeira menina, ela também sentia muita dor nas pernas — Responde ele.
—Que coincidência! Também estou esperando uma menina, o nome é Raíssa, qual o nome da sua filha? — Pergunta a mulher.
Embora o barulho do trânsito seja alto e o coletivo pareça gritar desordenadamente com suas partes soltas e seus desajustes sobre a pista, aquela pergunta ensurdeceu Raimundo que, em sua mente, se perdera do mundo real e vaga agora pelo passado de suas memórias.
— Senhor? Tá tudo bem? — Pergunta a moça
Raimundinho estava longe, lá em seu bairro com suas duas meninas, montando o quebra-cabeça que Airton, seu irmão, havia dado a elas. Ele lembra como elas tinham facilidade para montar, como pensavam, aprendiam e cresciam rápido até aquele dia.
—Senhor? —A moça pergunta e cutuca-o
—Oi? Desculpe, minha filha, eu estava perdido aqui pensando, mas qual o seu nome mesmo? — Fala ele ao despertar
—Sofia, mas qual o nome da sua filha?
—Vou descer depois da praça — Avisa Raimundo ao motorista.
—O senhor ainda não me respondeu — Retruca Sofia
Assim como o ônibus parou ao encontrar o engarrafamento, Raimundinho parou ao se debater com suas velhas memórias e falou:
—Jocasta era o nome dela, mas minha filha mais velha morreu.
—Desculpa, me desculpe, não deveria ter insistido, o senhor me desculpe.
—Tá tudo bem, filha, você não teria como saber.
—Mas ela era a mais velha, onde estão seus outros filhos e sua mulher?
—Só tive mais uma menina.
—Como é o nome dela?
—Ela se chamava Esperança, mas morreu pouco tempo depois da irmã.
Ele parou e tentou recompor as palavras para falar também da mulher e disse:
—E... A minha mulher morreu ao dar a luz à Esperança. — Completou Raimundinho.
O silêncio se traduzia nos olhos de Raimundinho como dor, mas ele não mais se importava em sofrer, estava anestesiado de tanta solidão.
—Eu não sei mais o que dizer, o senhor me desculpe! Não era minha intenção, de coração, peço que me perdoe — Exclamou Sofia.
—Não se preocupe, criança, a minha vida triste não é sua culpa e está longe de ser.
—Eu sinceramente peço que me perdoe, se tiver algo que eu possa fazer.
—Tá tudo bem, meu ponto está chegando — Disse ele.
—O senhor não quer passar lá em casa para jantar qualquer dia desses? Vou te dar meu endereço — Falou Sofia
Ela anotou e o entregou dizendo:
—O senhor pode aparecer, só moramos eu e meu marido, a casa é humilde, mas tem espaço para mais um — fala Sofia ao passo que o ônibus vai parando.
Enquanto ele descia, um estouro foi ouvido na frente do tribunal, um alvoroço ia se formando e quando Raimundo chegou no meio da multidão, ele viu e não podia acreditar. Ele não queria acreditar que o fim seria tão fácil assim para aquele homem, não era justo.
Os flashes pipocavam, pessoas corriam, uma mulher chorava e Raimundinho não conseguia aceitar, ele chorou e falou consigo mesmo:
—Por que a balança da justiça sempre pesa mais para o lado injusto da tristeza?
Levantar da cama, tomar seus remédios, colocar os óculos, tomar banho, escovar os dentes, comer...
Raimundo Oliveira dos Santos não quer, não precisa, poderia morrer aqui e agora, mas vai levantar da cama, tomar seus remédios, colocar seus velhos óculos, tomar banho, escovar os dentes e “comer”. Hoje, ele pede para estar vivo, só hoje, precisa estar vivo para acompanhar o homem que transformou sua vida.
Pensa em ligar o rádio para ouvir as notícias, mas lembra de que não tem mais a antiga radiola e nem tem dinheiro para um novo aparelho. Mora, de favor, em um apartamento sujo de um velho amigo do seu falecido irmão. Tudo que há no apartamento é sujeira com uma solidão imensa encostada ao lado da porta, além do seu colchão imundo e o resto de comida dentro de sacolas plásticas.
A audiência começa em uma hora, ele precisa sair de casa, não pode perder a chegada do homem, não pode perder a chance de olhar nos olhos dele mais uma vez.
Saindo de casa, vê seu ônibus passar. Será mais meia hora só a esperar o próximo. Parado ao lado da placa que diz “ônibus” com o dia ainda amanhecendo, pessoas indo para o trabalho, pessoas paradas ao lado de Raimundo e pessoas olhando para Raimundo. As pessoas olham, debocham e trocam palavras por sussurros interrompidos de pequenas risadas.
“Só mais quinze minutos”, pensa e torce Raimundo sem se incomodar com os risos, sem se incomodar com nada. A única coisa que o incomoda é estar vivo. Chega o ônibus, sobe, Raimundo senta, mas logo no ponto seguinte, uma moça grávida entra, com semblante reluzente e ele a oferece o lugar.
—Muito obrigada, senhor, se eu não estivesse com as pernas tão doloridas não deixaria que um idoso me desse o lugar — Diz a grávida.
—Não se preocupe, não, minha filha, quando minha mulher estava esperando nossa primeira menina, ela também sentia muita dor nas pernas — Responde ele.
—Que coincidência! Também estou esperando uma menina, o nome é Raíssa, qual o nome da sua filha? — Pergunta a mulher.
Embora o barulho do trânsito seja alto e o coletivo pareça gritar desordenadamente com suas partes soltas e seus desajustes sobre a pista, aquela pergunta ensurdeceu Raimundo que, em sua mente, se perdera do mundo real e vaga agora pelo passado de suas memórias.
— Senhor? Tá tudo bem? — Pergunta a moça
Raimundinho estava longe, lá em seu bairro com suas duas meninas, montando o quebra-cabeça que Airton, seu irmão, havia dado a elas. Ele lembra como elas tinham facilidade para montar, como pensavam, aprendiam e cresciam rápido até aquele dia.
—Senhor? —A moça pergunta e cutuca-o
—Oi? Desculpe, minha filha, eu estava perdido aqui pensando, mas qual o seu nome mesmo? — Fala ele ao despertar
—Sofia, mas qual o nome da sua filha?
—Vou descer depois da praça — Avisa Raimundo ao motorista.
—O senhor ainda não me respondeu — Retruca Sofia
Assim como o ônibus parou ao encontrar o engarrafamento, Raimundinho parou ao se debater com suas velhas memórias e falou:
—Jocasta era o nome dela, mas minha filha mais velha morreu.
—Desculpa, me desculpe, não deveria ter insistido, o senhor me desculpe.
—Tá tudo bem, filha, você não teria como saber.
—Mas ela era a mais velha, onde estão seus outros filhos e sua mulher?
—Só tive mais uma menina.
—Como é o nome dela?
—Ela se chamava Esperança, mas morreu pouco tempo depois da irmã.
Ele parou e tentou recompor as palavras para falar também da mulher e disse:
—E... A minha mulher morreu ao dar a luz à Esperança. — Completou Raimundinho.
O silêncio se traduzia nos olhos de Raimundinho como dor, mas ele não mais se importava em sofrer, estava anestesiado de tanta solidão.
—Eu não sei mais o que dizer, o senhor me desculpe! Não era minha intenção, de coração, peço que me perdoe — Exclamou Sofia.
—Não se preocupe, criança, a minha vida triste não é sua culpa e está longe de ser.
—Eu sinceramente peço que me perdoe, se tiver algo que eu possa fazer.
—Tá tudo bem, meu ponto está chegando — Disse ele.
—O senhor não quer passar lá em casa para jantar qualquer dia desses? Vou te dar meu endereço — Falou Sofia
Ela anotou e o entregou dizendo:
—O senhor pode aparecer, só moramos eu e meu marido, a casa é humilde, mas tem espaço para mais um — fala Sofia ao passo que o ônibus vai parando.
Enquanto ele descia, um estouro foi ouvido na frente do tribunal, um alvoroço ia se formando e quando Raimundo chegou no meio da multidão, ele viu e não podia acreditar. Ele não queria acreditar que o fim seria tão fácil assim para aquele homem, não era justo.
Os flashes pipocavam, pessoas corriam, uma mulher chorava e Raimundinho não conseguia aceitar, ele chorou e falou consigo mesmo:
—Por que a balança da justiça sempre pesa mais para o lado injusto da tristeza?
Atualizado em: Ter 7 Fev 2017