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Os Bastardinhos

‘Estou atrasado, mas serei deputado.’

Miro

 

‘ A festa de Natal vai ser na minha casa, minha filha. Você leva peru?’

O verdadeiro Elvis

 

 

1- Once upon a time

 

_ Miro, que diabos aquele velho fica gritando logo cedo ali na esquina da Rua Direita com a 15 de Novembro enquanto entrega panfletos? Não há nenhum dia em que eu passe lá pela manhã e não o veja e ouça! Não há meios de eu entender o que ele diz e isso me perturba! Nunca parei pra pegar o panfleto porque sou cismado de que aquilo é alguma piada com os transeuntes. –- Elvis disse ao entrar no apartamento de Miro.

 

Elvis tinha a chave do apartamento, e como de costume, trazia duas caixas de leite longa vida e três jornais diferentes daquele dia, roubados da porta de outros moradores do prédio.

Miro:

_ Ele supostamente trabalha para uma ótica, e o que ele grita é “O-TI-CÁ!!! O-TI-CÁ!!!”. Eu também demorei um tempo pra entender o que ele gritava, até que um dia passei mais perto e peguei um panfleto. Também achava que poderia ser piada, ou que haveria algo escrito em greco-etrusco naquele papel, mas era apenas propaganda de ótica mesmo. Já vi coisas engraçadas e estranhas acontecerem enquanto eu andava nas ruas aqui no Centro, como na ocasião em que eu ganhei um belo canivete suíço pra responder a uma pesquisa de perfumes. Sim, ganhei uma arma branca em troca da minha opinião sobre o cheiro que um paquito vai gostar mais de sentir em si mesmo quando estiver saindo cedo de casa pra trabalhar, ou pra fazer a vida valer um pouco mais a pena numa sexta-feira. Isso rolou ali na Rua São Bento. Nessa ocasião uma garota me chamou discretamente quando eu passei por uma porta sem nenhuma placa, num prédio que parecia a princípio ser residencial. Minha dúvida com relação à eficiência desse tipo de apelo, tendo a publicidade como fim, às vezes me faz pensar que isso é de fato uma piada, ou uma conspiração, uma coisa do governo, para prejudicar a saúde mental do povo e torná-lo mais passivo, acentuando sua condição de rebanho manso. O proletariado passa ali todos os dias, já desgastado pelo transporte precário, e então finalmente consegue chegar ao centro. Ali essas pessoas ouvem e vêem aquele sujeito, que é supostamente um semelhante da espécie humana. Acham estranho e aos poucos vão desenvolvendo um terrível medo da loucura, ainda que não sintam-se realmente preocupados enquanto passam ali apressados para chegarem ao trabalho. Não dá tempo de sentir isso naquela hora. Temos hoje em dia a tendência de achar que tudo que é estranho é conspiratório, mas convenhamos... O velho fica bem perto daquele grande relógio digital que informa horário e temperatura. Nessas manhãs nevoentas de meio de semana as pessoas passam por ali e sempre se vêem esmagadas pelo relógio, pelo tempo que elas não tem para chegar ao trabalho. Vêem, portanto, sua própria pressa naquele relógio e ao lado vêem aquele homem, que parece representar um futuro nada improvável para esses transeuntes. Um velho homem destruído pela vida. Mas isso é um acontecimento cotidiano, todas as manhãs são sempre iguais e essas pessoas vão acumulando o medo, ainda que inconsciente, de terminarem daquela forma, destruídas pela vida, sem qualquer tipo de perspectiva e enlouquecidos, numa idade em que poderiam estar aposentados, mas ainda saudáveis e sentindo o prazer do ócio contemplativo para o resto da vida. Penso que o velhinho rouco pode ser um ator, e seu patrão pode não ser o dono da ótica. É alguém sabotando ainda mais a sociedade, e aproveitando para rir dela. É importante para quem está no comando dar um nó na cabeça do povo. E desse povo ribeirinho eu não tenho dó. É um grande rebanho humano. A única coisa que aprendem a fazer sozinhos e ainda jovens é a transar e se reproduzirem. Merecem enlouquecer mais e mais. Merecem ter suas almas corroídas e finalmente eliminadas por completo, assim como o nervo de um dente seriamente cariado é eliminado pelo dentista. Gosto de ver isso tudo ruir gradativamente, mas queria estar sempre inacessível à maioria das pessoas. Se eu descer pela escada para chegar à rua serei importunado. Se eu for pelo elevador é ainda pior. São coisas da vida, mas já estou cansado. Minha condição de ser humano me constrange. Preciso escrever um livro rentável, e viver dos direitos autorais dele num sítio no interior, onde poderei viver com o isolamento necessário para que eu sinta o verdadeiro sabor da vida, além de poder ter tranqüilidade e inspiração para escrever mais e mais e aumentar minha coleção de discos. Viria pra São Paulo só pra comprar discos. Faria uma parede de amplificadores, todos valvulados. Depois que se toca usando amplificadores valvulados, o resto é lixo. Compraria uma guitarra decente, gringa, provavelmente uma Gibson SG.

 

 

_ Você pertence a uma outra linhagem humana. Eu creio piamente que você é um agente infiltrado nisso aqui e perdeu contato com a matriz. Pode ser também uma espécie de espião satélite, e que por interesses da matriz, transita aqui sem saber que não pertence a essa merda toda, mas ainda assim capta informações para eles. Você está no meio de uma monstruosa metrópole do terceiro mundo, onde diferentes etnias e sotaques se encontram, e a nata da brasilidade brota em todas as esquinas e é exalada por quase todos os transeuntes. – disse Elvis.

 

_ Tentar escapar disso morando em São Paulo é loucura, você vai entrar em parafuso se tentar. Pense que há um supermercado 24 horas aqui na nossa rua, proporcionando alguma qualidade de vida, e que a cidade pode ser boa com você de vez em quando. É preciso tentar abstrair-se dos problemas da alta densidade demográfica. Eu espero ansiosamente pelo dia em que todas as pessoas percam suas senhas... Todas as senhas necessárias para que suas vidas funcionem e essa porra toda entre em colapso.–-- disse Miro.

 

_ Antes de ver aquele velho da ótica gritando na rua, eu atravesso aquela ponte próxima ao Fórum João Mendes e à Praça da Sé... – disse Elvis.

_ Viaduto Dona Paulina... – disse Miro.

_ Sim... E dezenas de pombas ficam me atormentando, voando baixo de um lado para o outro, numa distância de poucos centímetros da minha cabeça, infestadas de doenças, muitas delas talvez ainda desconhecidas, porque aqueles hippies desgraçados dão comida a elas. Desgraçados... Pedem cigarros também, todos os dias. Sé há alguma situação em que tenho vontade de morrer é quando um hippie pensa que eu também sou hippie e me aborda, principalmente se for pra pedir cigarro. Tenho vontade de matar o hippie e de morrer por ter feito algo que o fizesse pensar que sou como ele.—disse Elvis.

 

O verdadeiro Elvis não é Elvis Presley e nem Elvis Costello. O verdadeiro Elvis flanava pelo centro e ao chegar pela manhã ao prédio de Miro, subia de elevador até o último andar, o décimo nono, para depois descer de escada até o oitavo, e entrar no apartamento 808. Fazia isso pela manhã, e no caminho roubava as tais caixas de leite longa-vida e jornais da porta dos vizinhos para beber e ler com Miro. A despeito de ter características européias, como ser ruivo, bastante branco e com olhos azuis, era possível ver naquele sujeito um brasileiro típico, principalmente por causa da ginga ao andar e das gírias. Tinha aproximadamente um metro e oitenta de altura e pesava algo em torno de 70 quilos. Relativamente alto e magro, apesar de ter a cara redonda, o que fazia com que seus amigos dissessem que sua face parecia uma moeda de um real. Tinha cabelos alaranjados, grossos e enrolados.

Trapaceiro e vigarista sempre que achasse necessário, a cada ação que praticava levava à risca sua convicção de que os fins justificam os meios.

Corria então o mês de Fevereiro de 2008, e naquele período o prédio de seu amigo Miro ainda não possuía tantas câmeras por todos os lados. Apenas o interior dos elevadores e a garagem eram filmados. ‘Temos sorte em não termos câmeras em todos os corredores e becos do prédio. Há prédios em que elas são muitas e registram implacavelmente todas as ações íntimas ou corruptas. Chega a ser incrível a maneira como Orwell adiantou em mais de 50 anos o conceito de TELE-TELA. Todo mundo hoje é vigiado pelas pessoas mais esdrúxulas, que ficam vendo o que as câmeras filmam. É bizarro’- costumava dizer.

Em troca do jornal e do leite, Miro um dia o ensinaria a escrever textos literários de maneira convincente, dentro da norma culta, mas com linguagem acessível. Era um acordo unilateral, já que Miro, que sempre pensou que um escritor já nasce feito, nunca prometeu que ensinaria o amigo a escrever os tais textos, mas Elvis supunha que o amigo o faria por agradecimento. Elvis trabalhava ajudando famílias em mudança que chegavam ao Centro da cidade, mais especificamente no quadrilátero entre as Avenidas São João, Ipiranga, Rio Branco e Duque de Caxias, área de grande rotatividade de moradores. Era onde Miro vivia. Também comprava e revendia livros e discos de vinil nas redondezas. Miro, um ávido colecionador, era um de seus clientes e também o acompanhava em andanças pelo centro atrás de preciosidades culturais.

Pelo que chamava de ‘razões filosóficas’, Elvis detestava mulheres grávidas e podia ver em seu cotidiano a densidade demográfica da região central da cidade crescer quase diariamente, tamanho era o número de jovens grávidas que via todos os dias sem nem ao menos ter que sair do prédio.

Para o verdadeiro Elvis, Roy Orbison era muito melhor que Elvis Presley. Miro evitava falar sobre isso, porque no Olimpo do Rock não deveria haver essa rigidez hierárquica. Há muito tempo considerava inútil discutir se o melhor baterista era Keith Moon ou John Bonham, ou se Alvin Lee era melhor guitarrista que Pete Townshend. Os que estavam classificados para a condição de imortais não precisavam disputar mais nada entre si. Isso valia para todas as áreas da arte.

A base da alimentação do verdadeiro Elvis era o leite roubado pela manhã e o número de tabletes de caldo knorr que estivessem disponíveis ao longo do dia. Gostava também de comer puro o conteúdo daqueles pacotinhos de tempero de miojo. Miro lhe alertava sobre os graves problemas de saúde que aquilo inevitavelmente lhe causaria, mas o verdadeiro Elvis não respeitava o status quo. Costumava dizer que “ se é gostoso, faz bem ”.

Miro via em Elvis um complemento de sua personalidade. Conhecer aquele sujeito e tê-lo por perto era como uma vingança pela culpa que sentia por ser bonzinho e compreensivo demais, até mesmo com quem sentia desprezo. Elvis o achava parecido fisicamente com Phil Anselmo, na época em que esse era jovem e cabeludo. Miro tinha mais ou menos um metro e setenta e cinco de altura e cerca de 75 quilos, cabelos castanhos compridos e lisos até um pouco abaixo do ombro.

Miro e Elvis conheceram-se no estádio da Rua Javari, pois ambos eram torcedores do Juventus, da Mooca. Foi num jogo do time contra o Ituano, numa tarde de sexta-feira, pelo Campeonato Paulista de 2003. O Juventus venceu por dois a um. Ambos iam a todos os jogos com a camiseta do time, mas nessa ocasião em que se conheceram, Miro usava uma do Talking Heads, pois a do Juventus tinha sido colocada para lavar. Elvis o viu no intervalo do jogo e pensou: “Diabos, um juventino que gosta do Talking Heads só pode ser gente boa!”. Pediu-lhe um cigarro e falaram de Rock.

 

2 - The elderlies are like children

 

Uma velha senhora japonesa fazia com que Miro não tivesse pena de quase ninguém no prédio em que vivia. Fora do prédio também. Dona Masumi vivia no apartamento 708, exatamente embaixo do apartamento de Miro, que era o 808, de onde se podia sentir diariamente o cheiro de sua comida, à base de arroz e legumes, entrando pela sua janela pouco antes do meio dia.

Tudo a irritava, mas ao mesmo tempo tinha muita carência de convívio humano. Miro também era um sujeito irritadiço, mas evitava ao máximo o contato com os vizinhos, que muitas vezes eram a causa do mau humor. O prédio em que vivia tinha dez apartamentos por andar, e era difícil sair de casa sem que houvesse alguém no corredor. Estimava-se que o prédio tivesse 600 moradores no total.

A velha Masumi desdobrava-se para ter alguma atenção por parte das pessoas. Com problemas respiratórios crônicos e vivendo na fumaça do centro da cidade, falava com dificuldade, mas incessantemente, cuspindo fogo e pestilência, houvesse alguém por perto ou não. Quase sempre havia gente por ali, por causa da grande população do edifício e do tamanho dos apartamentos, muito pequenos, o que fazia com que as pessoas deixassem suas portas abertas, principalmente as que tinham crianças. No sétimo andar viviam cerca de 30 pessoas. Só havia quitinetes naquele prédio, e o fato de a velha morar sozinha fazia com que a média de habitantes nos outros cubículos fosse maior do que três em cada unidade. Haviam famílias inteiras entuxadas nas quitinetes. Pai, mãe, duas ou três crianças, sogra, todos dividindo 40 metros quadrados e um só banheiro.

As crianças mamelucas, brancas, negras, bolivianas e de outras etnias, resultados de miscigenações bem mais complexas, brincavam pelos corredores, derrubando por conta própria a proibição dessa prática. Jogavam bola, gritavam, e vez ou outra brigavam ou machucavam-se ao cair nas escadas. Havia muita energia infantil e juvenil concentrada naqueles cubículos, e potencializada por uma alimentação rica em açúcar e carboidratos de baixa qualidade. Os pais não permitiam de maneira nenhuma que essas crianças saíssem do prédio, pois o contato com a Cracolândia seria imediato.

Aqueles apartamentos comportariam bem apenas um adulto solteiro que não tivesse tanto apego ao padrão burguês de residência. As mães faziam a comida com as portas abertas, comunicavam-se em voz alta com outros adultos que passavam pelo corredor e o forró com letras grosseiras e machistas comia solto.

Miro certa vez ajudou Masumi a colocar umas sacolas de compras para dentro do apartamento dela, quando ainda não a conhecia bem porque era novo no prédio. Desde então tornou-se quase um refém das crises de mau humor da velha japonesa. Uma lamentável confusão por parte dela perturbava Miro, confusão essa muito comum entre as pessoas idosas, sozinhas, carentes, desesperadas, enlouquecidas e sem qualquer perspectiva. Ela distorcia completamente o que deve se entender por respeito aos mais velhos. Por imposição da velha, Miro tornou-se uma espécie de confidente sem que jamais se declarasse disposto a isso. Ouvia passivamente suas lamentações sobre como as vizinhas não sabem viver suas vidas e sobre como o povo brasileiro é grosseiro e sem classe. Enquanto ela falava, ele acumulava rancor e tentava desvencilhar-se. E ela o intimava para saber de sua vida pessoal.

 

_ Miro, qual é seu nome de verdade?- a velha perguntava a ele regularmente.

_ É Miro mesmo.- era o que sempre respondia o nosso protagonista Miro.

_ Miro não é nome, rapaz!! Miro é apelido!!! Qual é seu nome? E esse cabelo? Tem que cortar pra virar um homenzinho. Quantos anos você tem? Você trabalha em quê? – rebatia a velha.

Elvis ficava indignado com a petulância da velha Masumi, e não cansava de repetir a Miro sermões como este, semanalmente:

_ Você quer dar uma de compreensivo e fica se torturando. Tem que dar logo um apavoro nessa velha filha da puta ao invés de ficar se desdobrando em gentilezas. Comigo ela nunca mexe. Eu queria muito que mexesse. Passo por ali e olho pra ela e fico esperando que ela se dirija a mim, e nada. Tem muitos velhos que são bem piores do que essas crianças venenosas de hoje em dia. Não é preciso sequer sair do prédio pra constatar isso. Alguma vez você teve algum problema com as crianças daqui? Elas geralmente são ruins apenas entre elas mesmas. Essas crianças ficam espiando com muita curiosidade o interior do seu apartamento a cada vez que um de nós vai colocar o lixo pra fora. São como uma espécie de cobrinhas diabólicas, que se contentam quando algum adulto joga uns camundongos dentro de suas estufas, e depois disso passam instintivamente a agir de maneira política com estes humanos adultos, para que nunca faltem ratinhos por perto. Elas podem causar certos transtornos, mas geralmente daquele tipo que o adulto minimamente coerente sabe como resolver sem burocracia. Claro, devemos nos lembrar que os transtornos são causados principalmente aos pais, que não podem ser considerados coerentes, uma vez que, caso quisessem viver sem problemas, não teriam filhos. A vantagem de lidar com crianças é o fato de que a elas qualquer coisa pode ser dita. Qualquer coisa. Tudo. Elas só não gostam de ser enganadas deliberadamente, o que convenhamos, é justo. No entanto, não me parece ser nada inteligente tentar criar filhos aqui no Centro. Mas o fato é que há velhos que são piores do que essas crianças. Eu já me peguei tramando a morte dessa velha desgraçada uma série de vezes, só pela maneira como eu a vejo agir com os vizinhos. Muitos deles merecem mesmo ter esse lixo humano como encosto, mas ela não tem o discernimento pra escolher quem vai importunar. Você é um sujeito que não merece passar por isso e eu cansei de ouvir daqui de cima ela perguntando seu nome. É uma pessoa tão rasteira que deve ficar com um nó no cérebro a cada vez que se questiona se seu nome é Claudiomiro, ou Valdomiro, ou Altamiro. Usa a velhice como subterfúgio para agir toscamente. Ela só não sobe aqui pra te aloprar porque sabe que se fizer isso eu vou fritá-la. Talvez também não tenha nem condições físicas de subir um lance de escada. Isso porque nós não estamos falando também daquela bicha velha que mora no 804, que fica te vigiando porque gosta de você ou no mínimo tem curiosidade sobre o que você é e faz. Aquela bicha que parece o vocalista do Pet Shop Boys!!! Você é vigiado por uma bicha velha, caralho!!! E atormentado por uma japonesa velha!!! É preciso se rebelar antes que a coisa toda saia completamente do controle! Essas patrulhas comportamentais precisam ser combatidas a qualquer custo.

Miro tentava defender-se da acusação de ser bonzinho demais, imagem que Elvis frequentemente lhe atribuía, alegando o seguinte:

_ Eu geralmente a deixo no lugar que ela merece, que é longe de mim. Eu sinto como se cada segundo que eu passo longe dela fosse a minha vingança. Eu não sei se é uma pena ou uma dádiva o fato de que quando estou longe dela nunca lembro de sua existência, o que faz com que isso seja um ponto para ela, já que não desfruto desse benefício como poderia. Caso eu lembrasse, poderia ser algo que me livraria de uma eventual crise de mau humor. Lembro de sua existência tosca só quando estou descendo a escada e vou passar pelo sétimo andar e sei que serei abordado. O que eu sinto por ela não tem um nome. Não é só ódio, nem só desprezo. É uma mistura dessas coisas com outros sentimentos que desenvolvemos nas nossas relações humanas nessa cidade doente e claustrofóbica. Tenho muitos sentimentos complexos, que ainda não tem nome, e que de um modo geral são negativos. Tento manter minha cabeça e ordem, me abstrair disso tudo, mas não é tão fácil. É nessas horas que vemos como a linguagem humana é limitada. Tenho que explicar o que sinto dizendo que é uma grande mistura. Isso vai me matar mais cedo, vou entrar em parafuso. Mas quando isso acontecer, deixarei um dano grande em quem estiver por perto me aloprando.

Realmente era preciso ter uma certa índole para lidar com esse tipo de situação. Era como um investimento a longo prazo e sem garantias de retorno que precisa ser feito quase diariamente. Caso explodisse num único dia, as consequências imediatas e a médio e longo prazo poderiam ser piores. A velha poderia morrer de um choque emocional súbito, por sentir-se abandonada pela última pessoa que lhe dava algum tipo de atenção. Miro era dessa índole. É verdade que se a velha soubesse o que ele sente por ela, sua morte também poderia ser antecipada.

Essa velha mulher vivia no Brasil há mais de 50 anos. Definitivamente nunca conseguiu se adaptar ao jeito brasileiro de viver nem tampouco aprendeu a se comportar diante das dificuldades tupiniquins. Portava-se sempre de maneira bisonha. O tipo de brasilidade com a qual Masumi teve que lidar depois que sua família se deteriorou era a oposição extrema aos valores que ela trouxe do Japão e ao modo como tentou criar sua filha e relacionar-se com o marido. A filha logo rebelou-se contra a rígida educação à qual foi submetida desde criança, e o marido adaptou-se à brasilidade rapidamente, naquilo que ela tem de pior, tornando-se um bom cachaceiro, mas sem deixar de trabalhar duro para o sustento de sua casa, com medo de que sua filha se tornasse uma rapariga como outras que conhecia em Cotia. A tentativa de conciliar família, trabalho, alcoolismo e putaria, coisas totalmente inconciliáveis, somada a uma saúde frágil, o levou à morte prematura. Tinha 52 anos quando um mal súbito o matou sem que jamais tivesse deitado no leito de um hospital e sem que jamais tivesse pego um resfriado sério.

A velha Masumi cozinhava enquanto ouvia a programação da TV aberta e praguejava horrores, sozinha, muitas vezes em japonês, e outras vezes numa mistura entre português e japonês. Delírios furiosos e incompreensíveis.

Numa época em que suas crises respiratórias estavam mais fortes e freqüentes por conta de um longo período sem chuvas em São Paulo, uma garota boliviana a ajudava nas tarefas diárias. Mais tarde essa garota ficou conhecida no prédio e nas redondezas como a Irmã Nóia. Morava na Rua Aurora com a mãe, que sofreu de Alzheimer por quase 10 anos. A morte de sua mãe e o envolvimento com o jovem Pida, que fez parte do Trio Calafrio (sobre o qual falaremos muito em breve), a levaram à derrocada.

Para aplacar a dor da perda da mãe e sua vida conturbada de imigrante jovem, pobre e sozinha no Centro, afundou-se no consumo de crack, que era fornecido por Pida, numa época em que ela ainda conseguia trabalhar e ajudava Pida a manter sua vida de viciado. Irmã Nóia tinha problemas de relacionamento com a velha Masumi, que a tratava como a mais repugnante das ratazanas do esgoto do Centro, e esse fator somado à droga, a derrubaram rapidamente do patamar de jovem tímida e trabalhadora para as valas e calçadas imundas da Boca do Lixo. A ruína definitiva chegou mesmo quando Pida começou a espancá-la para roubar suas pedras quando viviam inadimplentes no quarto em que Irmã Nóia viveu com a mãe antes dela morrer.

Pida passou um período de um ano na reabilitação, depois de ser preso numa batida policial surpresa, típica dos períodos de eleições para o governo do estado. Ali pôde alimentar-se, exercitar-se com trabalhos braçais e estudar, alfabetizando-se. Conseguiu se recompor fisicamente de uma maneira razoável. Recuperou alguns quilos e se desintoxicou do crack, mas teve sérias crises de abstinência. Ensinou os companheiros de reclusão a se rebelarem contra as ordens dos funcionários da instituição e saiu dali quando foi dado como irrecuperável e acima de tudo como má influência, mesmo tendo ficado afastado do crack no período em que esteve internado. Quando voltou para as ruas do Centro, soube que Quimba e Beiça, os outros integrantes do chamado Trio Calafrio, haviam sucumbido a overdoses fulminantes de pedra.

Era então o único componente vivo do Trio Calafrio, e sendo assim, seguiu em carreira solo determinado a continuar com sua missão na Terra, que era azedar a vida de quem estivesse por perto. Na época da volta de Pida às ruas, a Cracolândia havia mudado apenas em alguns poucos aspectos, ao contrário do que diziam as autoridades e sobre o que o próprio Pida ouvia quando estava recluso. Ele ainda conhecia bastante gente ali, mas sobretudo era conhecido e reconhecido por muita gente. Moradores, policiais e comerciantes da região geralmente o conheciam ou tinham presenciado suas ações noturnas.

Aqui se faz necessário explicar que a velha Masumi tinha em Pida o mais vil e tenebroso encosto que se pode querer conceber. Do ponto de vista de Miro e Elvis, ela tinha exatamente o que merecia, não só pelo rancor e ódio da velha que acumulavam diariamente, mas pelo mito do Trio Calafrio, que poderia servir de fonte de inspiração para livros que viessem a escrever sobre o Centro, e pelo fato de Pida ter sido sempre o tipo mais alucinado que se pode imaginar, mesmo para os padrões de Elvis, e mesmo se fosse comparado a seus companheiros do Trio. Na Cracolândia todos apostavam que Pida seria o primeiro dos três a morrer. Falemos então mais um pouco sobre a velha Masumi e sobre o Trio Calafrio.

Masumi teve uma família que se encaixava nos moldes que ela considerava padrão. Viveu em Cotia com o marido e uma filha, plantando tomates que ele vendia na feira. O cara morreu de desgosto com a brasilidade. Sua filha que cresceu numa época em que os japoneses eram alvos de brincadeiras maldosas na escola, quando não existiam esses grupos mais rebeldes de orientais que andam sempre juntos, ouvindo música pop ocidental de baixa qualidade, fumando cigarros e sendo hostis. Em casa era submetida à rígida tradição nipônica. Estudava em uma escola particular, o que não lhe poupava do que havia de pior na brasilidade. Era boa aluna e sua maneira de se rebelar foi mandar a família às favas quando já morava em São Paulo para fazer faculdade e tinha um emprego de bancária. Quando o patriarca morreu, a moça instalou a velha Masumi na quitinete do Centro, enquanto vivia na zona oeste da cidade. A mágoa era mútua entre as duas.

A filha de Masumi prestava mensalmente alguma assistência financeira para que a velha pagasse o condomínio, aluguel, luz e comida. Seu apartamento era voltado para a Rua Aurora, e antes da chegada de Miro ao condomínio, Dona Masumi teve problemas com os três moleques, um deles com 11 anos na época, e os outros dois com 12 cada um. O mais jovem era Pida, e os outros dois eram Beiça e Quimba. Quando ficavam totalmente transtornados depois de horas fumando crack, faziam muita arruaça nas madrugadas da Boca do Lixo, chutando latas, roubando, agredindo transeuntes e mendigos e vez ou outra sendo detidos pelos tiras para em seguida serem soltos. Amanheciam deitados indolentemente nas calçadas da Cracolândia, descalços, com os pés muito sujos e rachados, enrolados em cobertores que fediam a mijo e merda. Dormiam durante o tempo suficiente para que pudessem levantar novamente, ou o tempo que podiam permanecer deitados antes de serem acordados a pauladas pelos comerciantes da região, caso viessem a adormecer na frente de algum bar, padaria ou oficina mecânica, e seguiam determinados na luta diária em função das rochas. Isso tudo numa época em que o prefeito da cidade anunciava o fim da Cracolândia.

 

A velha poderia sentir-se imune às ações do trio, salva pela segura distância de sete andares que a separava do térreo, mas, ao contrário, sentia-se fortemente envolvida por aquele verdadeiro pandemônio, como se aqueles três moleques fossem apenas as cerejas no grande bolo de merda que era composto pelo que Miro e Elvis chamavam de ‘grande massa anônima ribeirinha’ do Centro.

 

Miro e Elvis eram realmente intolerantes com a parcela mais humilde da população, que diga-se de passagem, corresponde à maior parte da população brasileira. Isso sempre fez com que fossem taxados de arrogantes ou até mesmo nazistas por alguns vizinhos. Não faziam ataques diretos aos vizinhos, pelo contrário, procuravam evitá-los, na medida do possível. Isso já era o bastante para que aos poucos fossem vistos como burgueses preconceituosos. Procuravam manter-se alheios a comentários da vizinhança, que de fato tinha por hábito investigar o que cada morador fazia dentro de seus apartamentos, e comentavam sobre ter mais ou menos dinheiro e sobre preferências sexuais. Até mesmo o Jazz que de vez em quando era ouvido por Miro ou Elvis e que vazava para o corredor do prédio era visto como coisa de gente metida e grã-fina. Por mais despojados que fossem, os dois não deixavam de ser vistos dessa forma. A vizinhança naquela área gostava de contato humano efetivo e os vizinhos sentiam uma estranha atração por aqueles dois sujeitos.

Elvis tinha muito pavor do rótulo de burguês que alguns desses vizinhos lhe atribuíam. Parecia-lhe contraditório. Não conseguia se esquecer da tarde em que estava na Rua Pamplona e viu um policial destruir uma barraquinha de um camelô que vendia óculos escuros. Elvis descia a rua num sábado quando ouviu o barulho da porrada do cacetete do policial na barraquinha e o grito do dono da mercadoria, e viu os óculos espalhados na calçada e desceu mais um quarteirão, onde parou já em frente ao supermercado e fumou um cigarro antes de entrar. Elvis tinha passado por esse camelô segundos antes da viatura chegar. Estava indo até aquele supermercado porque estava na região da Avenida Paulista naquela tarde e lembrou que ali era vendida uma marca de uísque envelhecido oito anos por um preço razoável. Estava com saudade de beber uísque. Estava se preparando para cultivar um hábito que ele considerava ser de fato burguês. Quase nunca o fazia. Na frente do supermercado ele fumava e olhava a ação dos policiais cinqüenta metros acima, que estava mobilizando todos os outros ambulantes da rua, que eram vários e havia inclusive um casal que vendia flores bem ao lado de onde ele estava parado fumando. O casal estava aflito. Recolheram alguns vasos e ficaram esperando que os homens fossem embora. Eles entraram na viatura, desceram cerca de cem metros e pararam na frente de Elvis. Abordaram-no, o revistaram e disseram que sabiam que ele era ambulante. Perguntaram pela mercadoria. O casal que vendia flores estava se cagando de medo, pois tinham uma grande quantidade de vasos que estavam cobertos por um plástico cor de laranja. Elvis nunca havia se sentido tão bem por não ter maconha no bolso. O que significava afinal ter cara de vendedor ambulante? Porque aqueles guardas ‘sabiam’ que ele era ambulante? Porque naquela região ele era visto como marginal e no Centro era visto como playboy? Isso tinha que acontecer justamente no dia em que resolveu que tomaria uísque? Quando finalmente terminaram o enquadro em Elvis, os tiras foram embora sem levantar o plástico cor de laranja que cobria os vasos do casal, que estavam a poucos metros dali.

 

Na região do centro em que Elvis estava dividindo apartamento com Miro, Pida representava para o morador mediano dali o oposto do que os dois pareciam representar, por causa do mistério que envolvia suas origens e seus objetivos na região central da cidade, que eram obscuros para os vizinhos, por causa da antisociabilidade da dupla.

 

O barulho noturno de Pida e seus comparsas acordava a velha Masumi nas melhores partes de seu conturbado sono, quando seus problemas respiratórios acalmavam um pouco e deixavam-na dormir. Nessas noites Masumi se lembrava de sua infância no Japão, numa família que prezava por valores tradicionais. Quando refletia sobre como havia parado ali, sem família, sem referencial e sem qualquer perspectiva, sua cabeça dava um nó e ela virava uma metralhadora verborrágica fora de controle.

 

Miro só usava o elevador do prédio para subir até seu apartamento, nunca para descer ao térreo para ganhar as ruas. Descer pela escada era sempre mais rápido, a menos que fosse enquadrado pela velha ao fim do primeiro lance de escada, quando chegava ao sétimo andar. E nessas ocasiões era duramente intimado por Masumi, que conhecia vagamente suas convicções duras relativas à maioria da pessoas, apenas porque ouvia suas conversas com amigos do andar de baixo e tinha certo receio de ouvir daquele sujeito alguma grosseria de verdade, mas por alguma razão não se acanhava para abordar-lhe. O fato é que a velha pegava relativamente leve com ele. Com vizinhas intimidadas, com crianças ou com vizinhos mamelucos, dos quais ela realmente não gostava, agia algumas vezes de maneira desesperadamente grosseira. As crises mais fortes de falta de ar faziam com que sua voz não saísse, e nessas horas quanto mais esforço fizesse para fazer seus apelos, mais descontrolada ela ficava, gesticulando alucinada. Miro era um dos poucos vizinhos aos quais a velha chamava pelo nome.

O corredor do sétimo andar era uma balbúrdia tão grande durante o dia, que Miro sentia-se nobre quando conseguia desvencilhar-se como se o papo não fosse com ele, em meio às crianças correndo, cachorros latindo e vizinhas falando alto com as outras, às vezes uma em cada ponta do corredor, desdobrando-se em tarefas domésticas simultâneas. Palavrões pontuavam todas as frases ditas aos berros pelos homens. Aquele prédio era um verdadeiro pombal e a velha era a cereja no bolo da desgraça. Miro não se importava com a bagunça, apenas não podia e não queria ser abordado. Só quem o intimava naquele corredor era Masumi.

Das segundas às quintas, as noites nos corredores do prédio eram de uma tristeza russa, com a grande massa humana em repouso. As samambaias de plástico, penduradas no alto da parede entre as duas portas dos elevadores acentuavam o aspecto de morte e desolação estampados nos velhos azulejos brancos, amarelados e tristes. Nos andares mais baixos era possível ouvir nitidamente o movimento da Cracolândia, com adolescentes gritando obscenidades. A receita para quem pensasse em suicídio e ainda não tivesse coragem para praticá-lo era esperar por um dia em que faltasse luz naquela região. O passo seguinte seria ler algumas páginas de Dostoiévski dentro de um daqueles apartamentos à luz de velas fazendo breves intervalos para pensar no futuro.

Nas noites mais solitárias e tristes, Miro gostava de se confortar pensando nas corujas que viviam dentro de árvores ocas em bosques úmidos e silenciosos onde é sempre noite e onde as preocupações cotidianas resumem-se à busca de comida sem que se morra assassinado por algum predador antes de voltar ao abrigo. Essas noites não eram incomuns, até vinham com uma certa regularidade. Miro sabia que esses lapsos de melancolia eram inevitáveis. Ficava pensando que provavelmente Elvis estaria se divertindo enquanto se ausentava do apartamento. Sabia que era impossível para ele e para qualquer outro sustentar um estado de euforia permanente. A felicidade em pessoas inteligentes é das coisas mais raras que se pode encontrar, e até aquele ponto de sua vida, Miro podia dar-se por satisfeito com o que tinha vivido.

Dona Masumi abordava pessoas que saíam de casa atrasadas para suas empreitadas diárias para pedir favores, e nessas ocasiões geralmente era prontamente atendida por quem tenha sido solicitado. Em outras ocasiões essas interrupções eram feitas apenas para comentar algo, como sobre o quão sujo estava o ar naquela manhã, ou como sua falta de ar estava lhe causando transtornos, ou para insultar o infeliz que fosse abordado. Quase todas as vezes em que os moradores do sétimo andar eram interrompidos por algo que não fosse urgente, ela era deixada de lado e havia discussões, com a velha reivindicando atenção por parte das pessoas. A cada recusa, a velha munia-se de uma energia que nunca ninguém saberá de onde vinha, para praguejar, apesar de sua falta de ar crônica.

A vida desses vizinhos se tornava um inferno, porque depois de um longo dia de trabalho, apanhando de verdade da vida, eles voltavam para casa e encontravam Masumi com a porta de seu apartamento aberta, e ela sempre lembrava do episódio da manhã, caso tenha sido largada ao descaso, de modo que essas pessoas subiam pelo elevador pensando somente em entrar em suas pequenas moradas e tirar os sapatos, e então deparavam-se com aquela velha senhora japonesa, amargurada e sozinha na Boca do Lixo e eram duramente repreendidas. Somente lembravam que a encontrariam no último segundo, quando o elevador desacelerava para parar no sétimo andar. Era o momento em que os calos quase paravam de doer por causa da perspectiva de calçarem seus chinelos para esperarem pelo jantar. Mas antes de sentirem essa satisfação, tinham que passar por Dona Masumi, que passava seus dias claustrofóbicos dentro de seu cubículo fazendo uma zeladoria no corredor.

Era uma velha humana desprezível, pior do que qualquer assombração, e ainda assim sentia desprezo por nordestinos, negros e mestiços, que eram a maioria ali. O que havia de mais repugnante era o fato de que Masumi não falava abertamente sobre esse desprezo que sentia. O que mais a aborrecia, por pura inveja, era a energia sexual dos vizinhos, que transavam alucinadamente, o que era perceptível pelo fato de as paredes entre os apartamentos ser fina, e faziam filhos aos montes, e a velha quase podia lembrar da noite em que cada uma daquelas crianças do seu andar tinham sido geradas. Garotas jovens e magras engravidavam de maridos 20 anos mais velhos ou mais, como se suas missões na vida se resumissem ao ‘milagre’ da procriação, e a cada transa regada a cachaça e forró que Masumi ouvia, ela podia pensar que até essa nova criança nascer talvez ela esteja morta. E imaginava sobretudo que aquele pandemônio todo ia continuar depois que ela morresse.

Ela morreria e o forró continuaria tocando e a cachaça ia ser bebida como sempre e as jovens semi-analfabetas engravidariam e Elvis roubaria leite e jornal e os nóias fumariam pedra nas ruas ao redor do prédio. Masumi sentia-se amargurada pelo desprestígio que lhe era despejado na cabeça, em troca de sua arrogância doente. Na melhor das hipóteses, caso fosse lembrada pelos vizinhos depois de sua morte, seria somente como uma velha larva rancorosa.

 

Masumi sabia que Miro não era a pessoa mais sociável naquele prédio, nem a mais satisfeita com os vizinhos que tinha. Isso a intrigava demais, porque quando o ouvia falar com Elvis, percebia que suas queixas eram bem fundamentadas. Com ela jamais havia o mesmo tipo de diálogo aberto. O desprezo pela vizinhança que ele expressava com palavras não ditas a encorajava em suas abordagens. Se por um lado sabia que não devia chateá-lo a fim de não ser descrita por ele com palavras duras para seus amigos, por outro não conseguia evitar as entrevistas as quais o submetia, talvez para que pudesse ter certeza de que corria mesmo o risco de ser taxada de velha miserável. Havia ainda o fato de ele sentir-se incomodado e não dar a ela em hipótese alguma o que ela queria, que eram respostas efetivas sobre sua vida pessoal. Mesmo sendo incomodado pela velha, ele sempre conseguia ir embora sem que ela ouvisse as respostas que queria. Para ele os intervalos entre as abordagens da velha pareciam curtos, mas para ela pareciam durar uma eternidade.

Miro tinha medo de que no futuro, as limitações físicas da velhice fizessem dele alguém dependente de outro humano para ajudar-lhe nas tarefas mais básicas do cotidiano. O que não sabia exatamente era se a velha senhora japonesa sentia necessidade de convívio apenas por causa dessas limitações e dificuldades físicas, ou se ainda havia ali alguma esperança na espécie humana, já tão degradada, especialmente naquela parte da cidade, e mais ainda em sua própria pessoa.

Tendo atrás de nós toda a história da humanidade, parecia estranho que alguém, por mais lunático que fosse, tivesse essa esperança. Seria mais ordinário se a constatação fosse de que ela sentia PRAZER com esse convívio humano? O entusiasmo que Miro tinha pela sensação de estar vivo se apagaria quando começasse a se sentir decrépito?

 

 

3- Glue Sessions

 

 

Próximo ao prédio de Miro, mais exatamente na Avenida Duque de Caxias, havia um hospital público, e em frente a ele, de segunda à sexta, trabalhava um sujeito que apresentava graves seqüelas motoras. Miro regularmente ouvia várias pessoas dizerem na frente do hospital que a causa desses problemas foi um acidente de moto. Era legítimo supor que o cara tenha sido socorrido naquele mesmo hospital, e que com seqüelas definitivas de uma provável perda de massa cerebral e lesões ósseas, tenha sido aproveitado ali mesmo para uma função praticamente simbólica. Ele vestia um colete laranja e quando apitava, um motorista de taxi dirigia poucos metros desde o ponto até a porta do hospital para prestar serviço a quem estivesse saindo dali. No estado em que esse rapaz do apito se encontrava, era comovente ver como se sentia realizado ao intervir na cena.

Tinha entre 35 e 40 anos, porte físico frágil, cerca de um metro e setenta de altura e 60 quilos e seu rosto era o do Magnum, aquele velho canastrão do seriado de TV dos anos 80, só que mais magro e sulcado. O bigode era idêntico, mas o olhar se mantinha eternamente abstrato, sem foco. Seus sérios problemas motores manifestavam-se a cada movimento que fazia ou frase que falava. Seu temperamento pacífico mas ansioso pelo momento de soprar novamente o apito e mobilizar mais um motorista de taxi fazia com que Miro torcesse por ele sempre que o via em ação, como se estivesse acompanhando a performance de um atleta participando de uma prova nas Paraolimpíadas, lutando contra suas limitações.

Não havia um só dia em que Miro ao entrar ou sair de seu prédio em horário comercial não visse aquele sujeito, pois para quase tudo o que fazia fora de casa era necessário passar na frente do hospital. Pensava em investigá-lo para escrever sobre ele, e toda vez que o via prometia a si mesmo que à noite lembraria do cara quando estivesse acomodado em sua casa, e a partir de então se sentiria um sujeito de sorte por jamais ter sofrido um acidente sério a ponto de lhe custar o que havia lhe sobrado de sanidade e de saúde física. Chegava a ficar com raiva de si mesmo quando, segundos antes de avistar novamente o pequeno Magnum num outro dia, se lembrava que na noite anterior pensou em muitas pessoas, coisas e situações, menos naquele pobre infeliz. Coisas tristes, melancólicas e feias podiam estar acontecendo àquele sujeito, assim como certamente estavam acontecendo nas ruelas do Centro enquanto ele tinha o conforto de sua quitinete aconchegante e latas de atum e pão de forma integral.

 

Elvis maldosamente imitava o pequeno Magnum para Miro, sempre que ele era assunto entre os dois. Estudava cuidadosamente seus trejeitos e os reproduzia ao atravessar ruas movimentadas, a fim de que os carros parassem ou desacelerassem e o deixassem passar sem que fosse preciso esperar muito tempo. Ao chegar do outro lado da rua Elvis voltava a andar normalmente, causando ira em alguns motoristas e fazendo com que outros rissem.

 

Já Miro tinha certa compaixão pelo pobre homem acidentado e queria criar uma obra de ficção baseada na realidade sobre sua necessidade diária de superação, sobre o local onde ele dormia, como passava o tempo em que não ficava transitando com dificuldade com aquele coletinho laranja, usado por quem chama os taxistas para atenderem as pessoas que saíam do hospital. O fato é que Miro nunca se lembrava dele à noite, e o fato de estar passando naquela época por uma crise criativa que o impedia de escrever contribuía para isso. A razão era simples; Miro prometia a si mesmo lembrar-se à noite de todas as pessoas surradas pela vida que encontrava em suas andanças por São Paulo, em especial na região do Centro.

 

Haviam pessoas debilitadas a quem Miro conhecia, ainda que só de vista, e as que cruzavam seu caminho aleatoriamente, para nunca mais serem vistas. Ao invés de lembrar-se deles, Miro, que tinha um ego razoavelmente grande, lembrava mesmo era que a velha Masumi poderia perturbar-lhe caso descesse pela escada, ou que no dia seguinte teria que enfrentar alguma outra adversidade cotidiana, bem mais simples do que as dos sofridos humanos que povoavam seus caminhos na região central da cidade.

 

Miro descobriu que o rapaz acidentado era amigo de Herbert, o carteiro legal. Herbert era um sujeito que entregava correspondências em seu prédio e nos outros das redondezas, e que era visto por Miro com alguma regularidade. Nos primeiros tempos de Miro no centro, isso acontecia quinzenalmente, em média, sem que se falassem.

O carteiro legal entendia de música. Conhecia discos clássicos, tanto entre os que faziam parte do mainstream nos bons tempos que eram os anos 60 e 70, como também as pérolas da música alternativa, e de outros gêneros, não apenas do Rock. Miro já o tinha visto atuando como carteiro inúmeras vezes. E eis que numa tarde bêbada de sábado, viu o sujeito comprando discos do Nektar, Pacific Gas and Eletric, Mummies, Husker Dü, Teenage Fanclub, X Ray Spex, The Deadbeats, The Amps, The Replecements, tudo de uma vez, gastando uma quantidade de dinheiro que Elvis e Miro não teriam juntos num mês inteiro, numa loja na rua 7 de Abril. Ali estava alguém que tinha alma. Ele aglutinava vertentes do rock que alguns indies e alguns apreciadores puristas de rock clássico vomitariam só de ouvir falar da heterogênea mistura que Herbert fazia com naturalidade, e que também era apreciada por Miro e Elvis.

Herbert não era daqueles cabeludos ensebados e bêbados que são fanáticos por Hard Rock dos anos 70 e tampouco um indie com agasalho adidas e franjinha que vive ouvindo só shoegaze, lados B de singles de projetos paralelos de integrantes de bandas independentes e obscuras do País de Gales, mesmo gostando de ambas as coisas. Lembrava que nos anos 90 o Jesus and Mary Chain teve um baterista cabeludo, o que demonstrava de maneira definitiva que as fronteiras entre gêneros de rock tem que ser mandados às favas. Ele queria saber é de diversão nas horas vagas. Elvis dizia que tratava-se de um ‘indie old school’. Não demorou quase nada para que Miro e Elvis descobrissem que Herbert gostava de bafar cola ouvindo Ramones e fazendo projeções de desenhos do Pica-pau na parede de seu quarto.

O carteiro legal virou ídolo instantâneo para a dupla e a partir de então muitas latas de Cascola foram compradas na loja de material de construção da Boca do Lixo, que ficava na esquina da Rua Timbiras com a Conselheiro Nébias. Miro, Elvis e Herbert iam até lá, juntos ou individualmente. Perguntavam o preço de parafusos, brocas, lixas e outros utensílios, e no final a solicitação era a mesma de sempre: ‘Vou levar só a cola mesmo’.

Herbert parecia satisfeito com seu emprego, o que era bastante natural, uma vez que o cara trabalhava nas ruas e estava sempre em movimento, uma vantagem bastante razoável diante das outras possibilidades de emprego que apavoravam Miro e Elvis. Eis aí outra atividade na qual Miro poderia salvar suas finanças, ou ao menos manter as contas sob controle. Concursos públicos poderiam salvá-lo, o que era quase confortante. Poderia se tornar mais um funcionário público indolente sugando o Estado. Era preciso pagar as contas. Para salvar a humanidade, humanizando-a, seria preciso mais do que a existência e a boa vontade de Miro, de Elvis e de Herbert. Esses caras poderiam salvar a si mesmos, na melhor das hipóteses.

Todas as vezes em que Miro ou Elvis encontravam Herbert na portaria do prédio, conversavam sobre Rock e falavam por um bom tempo na frente de pelo menos outras duas pessoas no hall de entrada do prédio, já que ali os porteiros sempre estavam conversando com alguém, fosse um morador, um outro funcionário do prédio ou alguma empregada doméstica que relatavam a eles o que acontecia dentro das residências em que trabalhavam.

Miro, Elvis e Herbert falavam sobre coisas que para aquela gente era difícil entender, e isso fez com que Miro passasse a desfrutar de um certo conforto que o respeito da vizinhança por sua cultura podia lhe proporcionar Herbert já era conhecido por ali, e a dupla passou a ser melhor aceita pelos vizinho, apagando um pouco da imagem arrogante que pareciam ostentar. Miro passou a ter a impressão de que as pessoas ali passaram a importuná-lo menos a partir de então, talvez por não serem articuladas como ele e terem vergonha disso, pensando duas vezes antes de abordá-lo gratuitamente.

Numa tarde de meio de semana, Miro perguntou a Herbert sobre o rapaz sequelado que trabalhava na frente do hospital. Estava precisando de ‘sumo’ para uma história que estava começando a escrever, e explicou a Herbert que tratava-se de uma mistura de ficção com realidade cotidiana.

Herbert contou a Miro que o rapaz sequelado tinha realmente sofrido um acidente de moto, e que de fato foi atendido em estado grave naquele mesmo hospital, confirmando aquilo que Miro já supunha. Herbert conheceu o rapaz sequelado numa ocasião em que passava na frente do hospital num dia de folga carregando discos de vinil e foi prontamente abordado. O rapaz pediu que Herbert lhe mostrasse os discos, já que a sacola de plástico onde estavam sendo carregados era transparente e era possível ver que entre os álbuns havia uma maravilhosa edição importada do Disraeli Gears, do Cream. Fascinado, o rapaz contou a Herbert acontecimentos passados de sua vida, especialmente os relacionados ao Rock. Contou que era músico e foi abandonado pelos parceiros depois de ter sofrido o acidente.

O doidinho não tinha perdido o gosto pela música mesmo com as seqüelas do acidente. Miro então passou a se questionar se o cara era mais louco antes de acidentar-se, ou se ficou pior depois do acidente, levando em conta que provavelmente ele estava conduzindo a moto com velocidade excessiva ou com algum outro tipo de imprudência, talvez louco de bebida ou droga, e com jaqueta de couro e aquele bigode que estava caindo em desuso, mas que faria sucesso no começo dos anos 70, quando tinha um significado relacionado à virilidade, mas que Freddie Mercury pouco tempo depois eternizou como sendo algo não tão macho. Aliás, Freddie era um dos ídolos do bigodudo acidentado. Depois de conhecer Herbert, sempre repetia a ele que ‘Freddie Mercury não era um simples vocalista, mas um grande cantor’.

Isso era o mais próximo que Herbert conseguia chegar do mainstream. Não adiantava muito falar com seu novo amigo sobre música alternativa. Para ele, na verdade, isso pouco importava, porque ele representava para esse rapaz do hospital o mesmo que representava para Miro e Elvis. Era o carteiro legal. Pessoas como ele jamais poderiam ser pagos em vida na proporção em que merecem, pela postura e pelo comportamento exemplar que mantinham, fizesse chuva ou sol.

 

 

4 – Crop Circles are not accident

 

 

_ MIRO, VOCÊ VIVE DO QUÊ? COMO VOCÊ SE SUSTENTA?– perguntava semanalmente no elevador, em voz alta, o garoto cabeludo de 11 anos que morava no quarto andar e tinha camisetas de bandas de rock, todas bastante puídas, furadas e manchadas de molho shoyo. Miro via a si mesmo naquele moleque, assim como este via a si próprio no futuro quando encontrava Miro no prédio.

Era curioso para Miro o fato de que as bandas das quais o garoto usava camisetas não eram exatamente os clichês mais descarados, como Metallica e Iron Maiden, apesar de também se tratarem de bandas famosas do Hard Rock e do Metal. Entre alguns equívocos e bandas legais, ele usava camisetas do Wasp, Van Halen, Thin Lizzy, Jane’s Addiction, Dio. Passou pela cabeça de Miro que o garoto provavelmente tivesse ganhado essas camisetas de alguém que não fosse seu pai ou sua mãe, pois ele nunca tinha visto uma guitarra de perto, até que Miro certa vez mostrou-lhe sua guitarra quando a levou para o apartamento.

A razão pela qual o garoto fazia regularmente a mesma pergunta sobre o sustento de Miro não tinha nada a ver com algum desejo de encurralar ou constranger nosso protagonista. Era apenas uma ingênua curiosidade a respeito de um estilo de vida que não lhe era familiar, mas que lhe parecia digna de conhecimento. O garoto tinha a visão da ponta do iceberg que era a vida de Miro, e não lhe fazia sentido algum as possibilidades que eventualmente vinham-lhe à cabeça para solucionar o mistério que era a parte submersa do iceberg. Observava com clareza que Miro não tinha horários rígidos para sair ou para chegar em casa, o que destoava da realidade cotidiana do resto dos moradores do condomínio. E Miro também tinha o cabelo comprido, que parecia o de Greg Lake, vocalista e baixista do Emerson, Lake & Palmer, na época do lançamento do álbum Trilogy.

O garoto assistia a sociedade aniquilando os indivíduos à sua volta e isso dava um nó em sua cabeça, porque sabia muito bem que seu tóba também estava na reta. Via em Miro a figura de um cara um pouco mais safo que os outros no que diz respeito a preservar um pouco de sua individualidade, vendendo um pouco mais caro suas derrotas. Quer dizer, Miro já tinha passado dos 30 anos e pelo menos o cabelo comprido ainda estava sendo preservado, a despeito das pressões que sofreu quando era mais jovem. E Miro era um cara real, não um rock star inacessível que anda de carro conversível em Los Angeles com a tranqüilidade de quem recebe cheques de direitos autorais com regularidade e pode aparecer nas capas dos discos sorrindo e tirando uma com a cara dos fãs do terceiro mundo. O que há de contraditório nisso é o fato de que nesse e em outros sentidos, Miro se considerava um pouco mais vítima que esses indivíduos aniquilados, por julgar que o fato de eles já não possuírem discernimento, não possuírem sequer uma alma, fazia com que não tivessem tanto a perder com a exposição de suas débeis existências à não menos débil vizinhança.

Havia um padrão de comportamento a ser seguido por aquelas pessoas, dentro das limitações financeiras e sociais. Aqueles humanos seguiam cegamente esse padrão, não por escolha consciente, mas simplesmente por não enxergarem ou conceberem um outro caminho. Eram movidos pela inércia. Formava-se então uma grande patrulha comportamental que invadia grosseiramente a vida das pessoas mais reservadas, que sentiam asco de tudo aquilo.

A pergunta que na cabeça de Miro não queria calar era como aquele garoto havia conseguido deixar crescer uma cabeleira que ia até abaixo dos ombros sem que muito antes disso fosse punido com o corte da mesma e até com castigos físicos, uma vez que seus pais eram broncos o bastante para ir até mesmo além disso, no que diz respeito à violência e à repressão.

A resposta a essa dúvida veio por intermédio de ninguém menos que Elvis, que mais tarde começou a transar com Gladis, uma jovem senhora com idade de 42 anos, que era tia do garoto, irmã de sua mãe, e que vinha visitá-los com alguma regularidade. Miro já tinha visto-a inúmeras vezes, mas não fez a associação, mesmo com o fato de Gladis sempre surgir no prédio vestindo camisetas do Black Sabbath, do Depeche Mode e dos Ramones e dirigir-se sempre ao quarto andar. Sendo assim, não havia problemas em recebê-la quando Elvis estivesse junto.

Gladis tinha pavor dos hábitos alimentares de Elvis, de modo que Miro aproveitava-se disso para manter sua casa sempre abastecida de comida, ainda que fossem apenas latas de ervilha e torradas. Ficava comentando com Gladis que Elvis morreria muito cedo caso não deixasse de lado a voracidade com que devorava tabletes e mais tabletes de caldo knorr. Elvis também fumava um maço e meio de Derby por dia e tinha alguns lampejos de um machista chauvinista quando referia-se à forma como as relações com as mulheres deveriam ser conduzidas. ‘São cabeças de gado, e como tal devem ser administradas’.

Elvis parecia realmente convicto com relação à sua teoria sobre mulheres, mas a maneira como agia na prática parecia pouco fiel a ela se considerarmos o fato de que seu humor e sua qualidade de vida dependia da ausência de interferências femininas, que para ele eram negativas, como recriminação a maus hábitos alimentares, bebedeiras e falta de fonte fixa de renda. Ele precisava de sexo e abria mão de certas conveniências que a liberdade proporcionava. Gladis já começava a tentar domesticá-lo.

 

 

 

 

5- Son cosas de la vida

‘A riqueza não tem o direito de patrocinar a arte’

William Saroyan

 

Miro salvar-se-ia escrevendo, assim que alguma coisa simples e repentina acontecesse. Era a única sorte com que aquele sujeito podia realmente contar naquele período de sua vida. Ao contrário de Saroyan, pensava que a riqueza tinha todo o direito de patrocinar a arte. Achava também que separar a arte de atividades mercadológicas era algo ultrapassado. Já estava ficando velho para o descontrole juvenil das drogas e dos devaneios revolucionários típicos da primeira juventude. Mas ainda era jovem para escrever algo digno de ser chamado de literatura adulta.

Ele pensava que ‘Literatura Marginal’ era uma classificação usada no Brasil para categorizar escritores muito ruins, e que pouco tinham de marginais, seja no estilo de vida, seja no conteúdo do texto. Geralmente era feita por gente de classe média, tornando-a ainda pior, o que deixava Miro preocupado e até certo ponto desencorajado.

Era preciso tentar algo para sair de sua obscuridade desesperadora, mas sempre calcado em alguns princípios, ainda que nem sempre fossem aqueles considerados ‘éticos’ ou ‘morais’ pela classe média. As classes alta e baixa não precisam se preocupar de verdade com esses padrões, porque a primeira não tem muito com que esquentar a cabeça, porque tem dinheiro para mandar comprar o que for necessário para superar as dificuldades, e a segunda não tem muito a perder, pelo menos no que diz respeito a bens materiais.

Miro poderia tentar a vida política como um ator, como um mentiroso talvez, emergindo por meio de algum partido poderoso de direita. De qualquer maneira, no fim do dia poderia ir pra casa, fechar todas as percianas e ninguém iria invadir sua alma.

O pai de Miro tinha um amigo de longa data que era vereador. Ao longo de sua infância, Miro, que era afilhado do vereador, via naquele sujeito um canal para que se solucionasse problemas , daqueles verdadeiramente dramáticos, que a grosso modo todos os humanos estão sujeitos, de uma maneira ou de outra. ‘Talvez eu devesse entrar nessa um dia.’- pensava Miro que via aquele homem de sorriso cafajeste se acabar em gargalhadas toda vez que contava sobre as picaretagens de seus colegas e de políticos que estavam acima dele na hierarquia.

Esse vereador tinha sido colega de faculdade do pai de Miro. Tinha verdadeira tara por donas de casa com idade entre 40 e 45 anos, casadas. A mãe de Miro nunca chegou a ser realmente apalpada ou mais brutalmente bulinada pelo vereador, mas foi por algum milagre. O torpor alcoólico atingido em todas suas visitas aos domingos por muito pouco não fez com que o vereador partisse para a ação ali mesmo na cozinha da casa de Miro. Sentia uma vontade cretina de chegar junto por trás enquanto a mãe de Miro fazia café para beijar-lhe o ombro, tanto na pele como na alça do sutiã. Miro era uma criança quando essas coisas estavam muito próximas de acontecer.

Sim, o Senhor Vereador gostava de vê-la fazendo café com a alça do sutiã à mostra. Ele bebia algumas doses de uísque antes do almoço e o pai de Miro roncava de boca aberta na poltrona, babando horrores, enquanto o homem de terno tinha ereções que lhe umedeciam aquela parte de sua cueca de seda em que sua glande ficava acomodada, latejando, enquanto pensava na possibilidade da mãe de Miro ser uma mulher insatisfeita sexualmente em função da monotonia de um casamento padrão, de fachada.

Temas como o abandono por parte da família, seja por qual razão fosse, ou falência financeira completa, ou ainda a falta de uma casar para morar, eram algumas das inseguranças que atormentavam Miro até a fase final de sua adolescência. A fuga disso tudo através da política poderia salvar-lhe. Provavelmente esse caminho seria menos árduo do que doar todo seu tempo para criar histórias literárias, sem ter qualquer garantia de sucesso, seja financeiro ou de qualquer outro tipo. E o caminho da política seria ainda menos árduo do que doar sua vida para um emprego comum, num banco ou numa repartição.

Tinha consciência de onde poderia chegar em termos de qualidade literária, reconhecendo sempre que seu grau de erudição e de intelectualidade não atingia um patamar alto o bastante para que nesse quesito pudesse ser considerado um sujeito diferenciado. Tentava o estilo Hemingway, onde a economia e a objetividade deveriam predominar. ‘Menos é mais.’ Isso valia não só para a literatura, mas para a vida. ‘Precisar pouco é ser rico’. Essa era outra frase que adotou para formatar seu estilo de vida. Em contrapartida, sabia também que estava longe de ser o menos articulado dos humanos. Essa combinação de fatores constituiria o seu estilo literário. Tinha como estímulo o fato de não gostar de nenhum escritor paulistano de sua geração. E faria o que fosse necessário para que não produzisse nada aparentado com o jornalismo brasileiro padrão.

Não conseguia livrar-se da impressão de que todos os escritores com menos de 40 anos que escreviam sobre São Paulo e que supostamente viviam na cidade, eram tristes habitantes de apartamentos de médio porte e bem localizados, e que por alguma razão, que para essas pessoas e para seus leitores poderia ser simples, esses escritores não precisavam preocupar-se com despesas e outras chateações cotidianas, e dispunham de tempo para dedicarem-se exclusivamente à literatura e ao ócio. Conseguiam ser publicados, por qualquer que fosse a razão, mas jamais por mérito literário. Tudo que era produzido por essa gente parecia ser apenas um jogo estéril de palavras.

Nascido em família de classe média, Miro àquela altura já não tinha mais tanto medo da falência financeira completa, porque ao mesmo tempo em que via com pessimismo a forma com que manifestava sua capacidade de manter sozinho seu padrão de vida, abrindo mão de certas comodidades nem sempre supérfluas, pensava também que sempre ao seu redor haveria de enxergar humanos em circunstâncias verdadeiramente desesperadoras. Essas pessoas nem sempre agiam do modo como Miro o faria caso estivesse no lugar delas. Para ele, essas pessoas eram o verdadeiro problema. Considerava que a burrice delas podia ser vista como resistência ou uma autodefesa para as dificuldades impostas pela vida. As outras pessoas, aquelas que manifestam um desespero proporcional à situação em que se encontram, talvez merecessem sua compaixão.

Miro, então com 31 anos e portanto já não tão jovem, havia caído nos mais inacreditáveis clichês da vida dos garotos que se tornam homenzinhos com o pinto louco e com necessidade de autoafirmação. Certa vez, antes de mudar-se para o Centro, envolveu-se com uma garota de Araçatuba numa festa de universitários. Cerca de dois meses ela depois descobriu seu endereço na capital. Fez um aborto e levou o feto dentro de um vidro de maionese para Miro ‘assumir’. Sugeriu que Miro colocasse o vidro em sua prateleira de Lp’s, como artigo decorativo. E Miro tinha milhares de discos de vinil, comprados desde a infância com trocos de padaria que não devolvia à sua mãe, e também com o dinheiro da condução que economizava quando cursava o que hoje se chama de ensino médio. O único bem material pelo qual tinha esmero de verdade era sua coleção de discos.

Miro estava criando para si a árdua e ingrata missão de tornar-se um anti-herói descompromissado com qualquer paradigma relativo às velhas, limitadoras e opressoras formas de se conduzir a vida. Encontrou um nó em seu caminho que só poderia ser desatado se deixasse de lado alguns caprichos e comodidades de sua vida de garoto de classe média.

O curioso é que essa sua idéia de tentar tirar da literatura sua sobrevivência era mais um capricho. A ‘vida suja’ de escritor teria que ser alimentada, na pior das hipóteses, com latas de atum e miojo guardados na dispensa. Não se tratava exatamente de ‘arte pela arte’.

Tentaria a literatura como saída porque via nela algumas vantagens que na música, por exemplo, não encontraria. Com lápis e papel poderia escrever efetivamente. Sem equipamentos e sem parceiros de banda que viram empecilhos quando surgem as primeiras divergências musicais e pessoais. O que importava para ele é que ficasse para a posteridade um trabalho autoral convincente.

O analfabetismo de muitos brasileiros, somado à falta de interesse pela leitura por parte daqueles que são alfabetizados, dá um caráter alternativo à arte dos escribas. Isso atraiu para a literatura, nas suas diversas versões modernas, muitos 'escritores' pobres de capacidade. Havia mudado da casa dos pais tardiamente, pelo menos para os padrões burgueses. Estava com 31 anos de idade quando saiu do apartamento em que vivia desde que nasceu, na Pompéia. Tomou muito toddy e comeu muita granola ali na zona oeste.

Foi viver numa quitinete na Boca do Lixo, a região mais suja do centro de São Paulo, exatamente onde muitos escritores paulistanos ou radicados em São Paulo criam histórias para se autodenominarem 'escritores marginais'.

Seu pai era o proprietário de seu novo apartamento e viveu ali quando era solteiro e cursava Direito na Faculdade do Largo São Francisco. O imóvel estava alugado havia muitos anos, desde meados dos anos 70, quando conheceu a mãe de Miro e pouco depois começou a constituir família e procurou por um imóvel maior.

Era um período de derrocada para a região central da cidade que então já parecia repugnante e degradada demais para os padrões burgueses da classe média paulistana, mas que ainda assim era um imóvel interessante para que dele se tirasse algum dinheiro, seja com o aluguel, ou uma futura venda.

Ficava no meio da região que mais tarde se tornou a Cracolândia, e Miro propôs à sua família que com a saída do inquilino, assumiria as contas, que para ele se limitariam ao condomínio e conta de luz e iria viver ali. Estava disposto a procurar um emprego comum, que servisse não só como fonte de renda, mas principalmente como uma das fontes de matéria prima para seus escritos.

Sabia que algum sofrimento, principalmente aquele oriundo do convívio com a grande massa anônima trabalhadora de São Paulo lhe traria amadurecimento e faria com que tivesse de fato sobre o que escrever. Miro acreditava de verdade que as experiências mais amargas eram realmente importantes, porque supostamente lhe fariam ir até a frente do computador e escrever.

A matéria-prima para sua literatura poderia ser tirada da simples observação do comportamento das pessoas, principalmente as de uma classe social mais baixa do que aquela na qual vivia na zona oeste. As histórias já estão todas lá, no cotidiano. As pequenices da vida em meio a um cenário desolador. Bastaria trocar os nomes dos moradores anônimos da região e então essas pessoas jamais saberiam que estavam sendo citadas em histórias que seriam escritas como um meio do autor tentar se rebelar contra as causas de seu sofrimento. São pessoas que mal sabem ler, e que não teriam interesse algum por uma literatura produzida com a intenção de ser alternativa.

Conhecendo suficientemente a si mesmo, Miro acreditava também que algum sacrifício o afastaria um pouco do alcoolismo crônico que vinha desenvolvendo desde os dezessete anos. Gostava demais de se embriagar todas as noites. Tinha muita sorte por não ter precisado beber aguardentes ordinários naqueles tempos. Bebia boas bebidas que seu pai ganhava e deixava decorando prateleiras do apartamento e que eram substituídas por líquidos não alcoólicos com a coloração semelhante.

Queria passar a tomar seus tragos somente nos fins de semana, depois de uma jornada diurna de trabalhos físicos em algum emprego comum, e uma outra jornada, essa intelectual e noturna, em sua empreitada literária. O desafio era conseguir o tempo e a solidão necessária para escrever boa ficção. A desintoxicação alcoólica ficaria facilitada com essa rotina que mantivesse seu tempo ocupado.

Elvis era um empecilho nessa empreitada, pois bebia todos os dias da semana e Miro sentia-se culpado por censurá-lo, já que pensava que nenhuma outra pessoa era responsável pelo período em que ele próprio abusou da bebida, fazendo com que a coisa chegasse num ponto em que tivesse que controlar a situação por meio do sacrifício da abstinência. Sabia que aquela era a hora para tentar controlar o vício, caso contrário seria cada vez mais difícil conseguir.

Os novos vizinhos da Cracolândia, principalmente os que ali tentavam viver dignamente, serviriam como parâmetro para a visão que Miro aos poucos desenvolveria de um futuro não tão longínquo para si mesmo. Projetava em alguns desses novos vizinhos a imagem que tinha de si mesmo quando finalmente atingisse a maturidade. Idealizava para si uma condição de estabilidade financeira e reconhecimento por seu trabalho artístico, mas sem deslumbramentos ou estrelismos exagerados. Quando a velhice chegasse pra valer, poderia se mudar do Centro para um sítio.

Havia um vizinho de porta que Miro observava com mais atenção. Nei morava no apartamento 809 e era um velho comerciante aposentado que todas as manhãs acordava triunfante para buscar muitos pães franceses quentes na padaria da Boca do Lixo, e que voltava para seu apartamento para dali só sair para uma eventual cerveja antes do almoço, nas redondezas. Era um homem de aproximadamente 70 anos, com fortes convicções político-ideológicas, mas sem uma próspera aposentadoria e com poucas perspectivas de futuro. Uma vida inteira de trabalho. Agora tinha reumatismo e asma. Um espírito conservador, que se revelava orgulhoso na maturidade. Dizia-se viúvo, mas alguns vizinhos diziam que sua ex-esposa ainda estava viva. Ela teria feito alguma coisa que magoou o velho Nei.

Fisicamente, Nei parecia um Jack London envelhecido. Sempre que via Miro ou Elvis bebendo algo alcoólico lhes contava sobre a paixão que tinha pela bebida. Naquele momento de sua vida, embora não tivesse abandonado totalmente o vício em álcool, já tinha diminuído drasticamente o consumo e sentia os danos causado pelo excesso de bebida ao longo da vida. Tinha problemas crônicos no fígado, no pâncreas e nos rins. Tomava muitos remédios diariamente. Não podia mais tomar bebidas fortes, destiladas. Bebia algumas cervejas por semana.

“Sinto-me estúpido por controlar meu consumo de álcool a essa altura da vida. Penso que deveria tê-lo feito quando era mais jovem. Isso talvez tivesse sido estupidez também. Talvez eu devesse começar a relaxar com bebida a partir dos 50 anos. No entanto, agora que pareço estar fazendo hora extra na vida, fico me preservando e passando vontade de beber como nos velhos tempos. Eu realmente não sei do que tenho me preservado. Deve ser porque gosto de me manter vivo. Mas penso que talvez fosse mais coerente tornar-me mais bêbado à medida em que envelheço. Gosto do êxtase da mente. É disso que sinto falta na bebida. Tenho plena convicção de que uma pessoa sem vício algum é alguém com poucas virtudes. Tenho tentado me contentar com duas latinhas de cerveja por dia. Isso me ajuda a refletir sobre minha vida com mais clareza, e no final desses pensamentos, quase sempre percebo que as verdades sobre mim mesmo pouco importam.”- disse Nei certa vez ao ver Miro quando este estava colocando o lixo para fora, carregando o saco preto com uma mão e levando uma garrafa de Stella Artois com a outra.

O velho Nei podia, no entanto, aproveitar os dias que lhe restavam observando a derrocada da humanidade através de sua janela, mas não podia imaginar que Miro o invejava por isso. Miro invejava-o só até o final da tarde. O pobre velho tinha crises de tosse durante quase todas as noites, que faziam com que Miro então repensasse se uma vida daquelas era realmente algo pelo qual deveria ansiar. Uma vida com ciclos curtos. Triunfo matutino, desolação vespertina, agonia noturna.

Nei dizia que era preciso saber lidar com o povo que habitava os grandes prédios do centro, com quitinetes lotadas, famílias inteiras amontoadas, com três ou quatro crianças, dividindo 30 ou 40 metros quadrados com pelo menos um adulto.

“Miro, com essa gente é preciso agir com discrição. Não dê confiança pra essa gente. Dê dinheiro se for o caso, mas jamais dê confiança. Morar aqui não é como morar na Pompéia. Pode-se conseguir uma certa privacidade dentro de nossos apartamentos, mas a cada vez que saímos para ir à padaria ou para o que quer que seja, estamos sendo observados e comentados por gente que não tem nenhuma classe. Você ainda é jovem e veio atrás de aventura, ou sei lá do que. Vejo que você se interessa por gente marginalizada, por derrotados e por desajustados. Saiba que isso é mais interessante nos livros do que na realidade. Aproveite as vantagens do Centro, mas fique atento. Lembre-se que quem não é visto, não é lembrado. Sou um velho aposentado anônimo. Queria ter hoje mais disposição e mais dinheiro. Já que isso não posso mais ter, vou fazer o diabo pra aproveitar incógnito minha modesta aposentadoria.” – Dizia Nei, que parecia conseguir passar pelos corredores sem ser incomodado. Miro acreditava que Nei conseguia isso por causa de seu comportamento discreto e de sua expressão facial severa.

Uma vez por semana, uma mulher negra e magra com cerca de 50 anos ia à casa de Nei para deixar-lhe comida pronta para ser congelada e lavar-lhe as roupas e limpar a casa. A semelhança física dela com Miles Davis era muito impressionante e comovente. Sempre que a viam chegando ou a ouviam trabalhar no apartamento de Nei, Miro e Elvis imediatamente trocavam o disco que estavam ouvindo para tocar algum de Miles.

Não fosse tão desleixado, Miro poderia fazer um esquema empreendedor em seu pequeno apartamento. Eram apenas aqueles 40 metros quadrados, mas só para ele, e havia ali condições para que seu projeto de vida simples e com privacidade se firmasse, mesmo num prédio com mais de 700 pessoas. Havia ali uma poltrona revestida com um pano vermelho e tosco que seus pais jogariam fora, duas estantes de metal cheias de discos de vinil, um televisor de 16 polegadas, um colchão que era usado por Miro (para não gastar com o transporte e economizar espaço na quitinete, deixou sua cama no apartamento dos pais), e pôsteres dos Ramones, Van Halen da fase David Lee Roth, Beatles, Stones na fase Brian Jones, Depeche Mode e Cure.

As primeiras semanas de Miro na região da Cracolândia não foram tão fáceis, porque não se empenhou de verdade para procurar um emprego, ainda que temporário, só para colocar as coisas nos eixos. Tentava dar ênfase à sua produção literária. Continuava a contar com o acaso. Apenas aconteceria algo simples e repentino e então as circunstâncias estariam a seu favor.

O cheiro do café e do pão quente que vinha do apartamento de seu vizinho era o que fazia com que sentisse alguma inveja. Miro tinha desistido totalmente da idéia de explorar um pouco da fome que sentia em prol de sua arte. Podia usá-la como combustível criativo. Infelizmente para ele, quando estava sem dinheiro e com tempo sobrando preferia praguejar até que alguma coisa acontecesse e remediasse a situação. Não gostava dessa idéia de que a fome pode ser útil para artistas basicamente porque queria tirar da arte um bem estar material. Em seus devaneios a vida de um homem dedicado às letras tinha um sabor bem mais especial do que se tivesse tirado dinheiro de um trabalho em alguma repartição, por exemplo.

O total descompromisso e despreocupação do velho Nei com o futuro (àquela altura poderia ser diferente?) também lhe parecia algo atraente em alguns aspectos. Evidentemente era preciso levar em conta o fato de que Nei já tinha vivido sua vida no período em que teve o vigor da juventude. Não se tem descompromisso completo com o futuro quando se sabe que esse futuro existe.

O velho Nei nunca mais teria de volta o vigor de outrora. Seu corpo e sua mente já haviam sofrido duras punições ao longo da trajetória de serviços prestados à sociedade cumprida. Mãos calejadas, músculos salientes mas cansados, trajando camisetas de propagandas de pilhas, tintas, da Sabesp. Sapatos e meias de cobrador de ônibus. Parecia ser daqueles caras que não iam fazer exame de toque.

Ali estava um combatente que havia vencido o medo, e que tinha adquirido alguma clareza com sua vivência, mas que começava a sucumbir à velhice. Se a jornada de um homem for longa, quando a velhice chega passa a ser seu último inimigo. É um algoz do qual não se pode escapar. De qualquer forma aquele homem estava acima da média da vizinhança, em todos os aspectos.

Miro sonhava em aproveitar o que sobrou de sua juventude para fazer saques de aposentadoria nos bancos (queria estar aposentado logo, por qualquer razão simples, que não fosse por tempo de serviço e nem por invalidez), gastar na padaria, olhar para ontem com alguma nostalgia mas sem saudade, e vadiar, e escrever, num meio termo entre o amadorismo e o profissionalismo no ramo das letras. A produção teria que ter qualidade, mas poderia haver tempo entre um livro e outro, para que o público pudesse sentir falta de suas idéias e para que ele não se tornasse um autor repetitivo.

Em seu íntimo, Miro nunca sentiu culpa ou vergonha por conversar consigo mesmo sobre a forma como adoraria tirar proveito da arte para fins meramente econômicos, e mesmo assim não a desrespeitar. Absolvia-se em seu autojulgamento pelo fato de que para ele essas suas pretensões financeiras eram modestas. O que também é discutível, uma vez que não parece ser tão modesta a pretensão de ter comida, viver sozinho, algum dinheiro e não ter que propriamente trabalhar de uma maneira convencional. Não era um vagabundo, apenas tinha problemas de relacionamento com pessoas pouco obstinadas e que não tem gosto pela arte.

Queria ter uma vida longa, mas sabia que se pensasse demais em como ficaria no fim da trajetória, não tardaria para jogar tudo para o alto e voltar para a bebida. Sentia-se dependente de álcool porque tudo parecia tedioso quando não bebia, e era íntegro o bastante para não censurar ninguém que bebesse na sua frente quando queria manter-se sóbrio.

Era preciso se apegar ao seu entusiasmo pela produção literária da mesma forma que um velho viciado se apega às delícias de encontrar uma veia intacta para se picar. Todas as veias do braços estão completamente desgraçadas. Ele então pica uma veia do pé, o salafrário. Não vai ter ninguém por perto para julgar.

O viciado vai dar um jeito, e as consequências do ato virão de uma forma implacável, mas a morte e o perigo são sempre iminentes, de qualquer maneira. A vida é como aquele garçom assexuado ao qual você precisa saber como pedir o que deseja. Você o faz, e então lá vai o garçom buscar seu pedido. Cedo ou tarde ele traz a conta também. Todos recebem a conta no final do rolê. O tal garçom da vida poderá parecer ao moribundo um ser ridiculamente repugnante, como alguém com sorte por ter alguma sobrevida.

Miro tinha de sua janela a mesma visão do centro que seu velho vizinho Nei. O prédio em que viviam era situado na Avenida Rio branco, entre as ruas Aurora e Vitória, e a janela de Miro era virada para o bairro da Luz, um foco de intensa atividade droguística noturna, com todas aquelas vidas em putrefação, mortes insepultas e outras disfunções sociais. Podia ver o movimento externo da delegacia da região.

Os filósofos são os médicos da civilização, que hoje é uma doente terminal porque nunca atendeu às recomendações dos especialistas em saúde social. Naquela área da cidade Miro via a civilização definhar da maneira que merece. O nóia descontrolado que perambula por ali desesperado por mais uma pedra é da mesma espécie que o burguês porco capitalista com o suéter cor de salmão sobre os ombros e que ganha uma enormidade de dinheiro com ações e que merece tomar uma canivetada na bunda quando sair do teatro, na calada da noite.

São tipos humanos igualmente repugnantes, que pensam que viverão eternamente em pontas opostas da sociedade, mas que representam, cada um, a ruína um do outro. Essas pontas invariavelmente encontram-se, ainda que ocasionalmente. Nessa hora o nóia causa um transtorno, mesmo que rápido, e nesse momento ele terá diminuído sua distância social para com o playboy, que leva vantagem durante todo o resto do tempo.

Miro era fascinado pelo Centro Velho de São Paulo, e queria ter mais tempo ocioso para olhar a região de sua janela e andar pelas redondezas sem que estivesse com a sensação de ser esmagado pelo relógio. Gostava de observar aquela gente vivendo num limbo moral e espiritual, e quando à noite ia para a cama, Miro gostava de pensar no que se passava nas esquinas da Cracolândia, na política nefasta da droga que fazia com que os nóias rastejassem por onde fosse necessário para fumar a próxima pedra. Nem a vala mais imunda parecia ser ordinária o bastante para aqueles caras.

Sabia, no entanto, que se tivesse esse tempo para o ócio, entregar-se-ia novamente ao alcoolismo e nada produziria de literatura. Não pensava que uma vida assim fosse realmente baixa ou repugnante, mas naquele momento sentia-se mais atraído pela construção de uma obra autoral, para que seu nome e o título do trabalho continuasse o representando nas prateleiras de livros do mundo.

A primeira dessas obras seria formada por contos que escreveria baseando-se em suas vivências e andanças pelo Centro e inspirando-se nas pessoas que conhecesse nesse período. Em geral, pessoas sem rosto, sem alma, sem vida.

Havia algo que realmente o atrapalhava em sua produção. Era a confusão na qual regularmente via-se submerso, por não ter qualquer senso prático para tarefas cotidianas, algumas delas básicas. Um equilíbrio perfeito entre uma vida reclusa e movimentada e entre o sucesso como escritor e as comodidades de um anonimato honesto quase sempre pareciam ser algo inalcançável. Até que ponto conseguiria refugiar-se em suas excentricidades?

Miro tinha uma mente confusa. Esperava conseguir alguma estabilidade emocional e financeira antes dos 40 anos para focar-se na produção de um romance. Algo em torno de 250 páginas. Não chegava a ser uma obsessão, mas uma realização que poderia render-lhe algum tipo de credibilidade literária. Não achava que o conto fosse uma modalidade menor, apenas pensava que a composição de um romance fosse um limiar importante na formação de um escritor.

A produção de uma narrativa mais longa e detalhada, com personagens mais complexos, cenários mais detalhadamente descritos e tramas mais elaboradas. Isso era algo que exigiria de Miro um poder de concentração e uma entrega ao trabalho que ele ainda não havia experimentado.

Sentia-se razoavelmente bem por ter esperado que suas chances de se tornar escritor amadurecessem um pouco. Sabia que isso significava basicamente que ele não teria a partir de então tantas alternativas a seguir no que dissesse respeito a escolher um ofício definitivo. Um emprego ruim também pode favorecer a produção literária, é algo que sempre esteve intimamente ligado à vida de inúmeros escritores, como se sabe. Todos os empregos comuns pareciam muito ruins. Todos esses empregos fazem com que o trabalhador esteja sujeito a dias sofridos por conta de relações humanas no trabalho e também por chuvas ou greves inconvenientes no transporte público que destroçam o esquema cotidiano do cidadão médio.

Sonhava em esculpir boas histórias ao longo dos dias, exorcizando uma série de demônios pessoais, e não mais sofreria naqueles dias de chuva em que se chega com a meia molhada no trabalho, com a moral arruinada e horas de transtorno sendo subalterno de gente sem alma, que dedica-se a um tipo de trabalho burocrático e sem função real. Gente que se dedica de uma maneira burra a um trabalho burro. Telemarketing, órgãos públicos que historicamente não funcionam, lojas de Shopping Center que vendem coisas inúteis para gente inútil.

As chuvas continuariam a existir, mas ele estaria dentro do apartamento, com gosto de cigarro e café na boca, uma cueca puída e os pés descalços, e à medida que seu corpo fosse ficando mais velho e flácido, a dívida relativa à maturidade intelectual que havia imposto a si mesmo anos atrás, estaria sendo paga.

A idade avançaria e então Miro poderia ir embora do Centro, sabe-se lá pra onde. Provavelmente para um sítio em Itapecerica da Serra, ou alguma outra cidade bucólica nos arredores de São Paulo, para cuidar novamente do alcoolismo despertado pelos sucessos e pelos fracassos de sua trajetória. Teria que cuidar da artrite, da dor nas costas, da esclerose, da surdez, da síndrome do pânico e de doenças ainda não conhecidas hoje.

Com sorte poderia ter ao menos algum reconhecimento como escritor, o que não é algo tão fácil de se definir, pois não envolve apenas o quão famoso se torna o escritor, ou quanto dinheiro ele ganha. Escritores brasileiros normalmente podem transitar anônimos em eventos não literários e aí estava algo sedutor para Miro, que tinha por definição própria que o reconhecimento pelo trabalho literário resumia-se basicamente a não ter que conviver com colegas de trabalho numa repartição e nem ter horários rígidos. As delícias de uma vida solitária e reclusa o fascinavam. Poderia conseguir um editor, e isso certamente corresponde a um tipo de reconhecimento. Poderia também ser seu próprio editor, e caçar algum outro talento até então completamente anônimo. Na falta de assunto para escrever boas histórias, poderia matar algum tempo criando um alter ego que lhe desse liberdade artística para trabalhos experimentais. Pensava até que seria interessante se esse alter ego fosse criado antes mesmo de começar a assinar os trabalhos com seu nome verdadeiro.

A verdadeira fama parecia algo pesado demais para ser carregado por aí. O ideal seria ter dinheiro e andar sem ser importunado nas ruas. Miro sabia que também não precisava de rios de dinheiro. Bastaria pagar suas contas sem perder o sono e de vez em quando achar uma nota de vinte reais esquecida no bolso da jaqueta.

Poderia associar-se a alguns vagabundos do centro para que nunca deixasse de ter sobre o que ou sobre QUEM escrever. Numa ocasião, Elvis o levou a um albergue, na região do Anhangabaú, para averiguar a situação dos andarilhos que pernoitavam ali. Acompanhou-o até a porta, levando consigo um maço de cigarros Eight, que lhe havia custado um real. Abriu o maço e logo uma roda de andarilhos que esperavam em fila pela hora da sopa formou-se ao seu redor. Pôde então, sem que precisasse abordar ninguém, começar a ouvir histórias de gente que tinha sido castigada de verdade pela vida. Colheu boas idéias, mas tentava não fazer anotações na frente do andarilho que estivesse falando, de modo que várias frases sensacionais foram perdidas. Teve, no entanto, a impressão de que alguns dos caras gostaria de ter seus relatos documentados. Homens rudes, alguns vindos de outros estados, experimentando a contragosto as ruas de São Paulo.

Enquanto isso Elvis, que teve acesso à parte interna do albergue, estava concluindo que o local analisado tinha boas condições e que dava a esses homens ajuda efetiva para que agüentassem as ruas durante o dia. Estava levando em consideração que as pessoas a quem era oferecido o serviço não tinham muita frescura, algumas até estavam adaptando-se às condições impostas pela vida. Uns passaram até mesmo a gostar da condição de homeless depois que disponibilizaram os albergues. Homens realmente rudes que precisavam só do banho e da sopa à noite, e do café preto de manhã. Olhando isso tudo de fora, devemos considerar também o fato de que Elvis, comedor de tabletes de caldo knorr, não era exatamente a pessoa indicada para uma análise do albergue. Em contraponto a isso, Miro verificava por ele mesmo que os usuários com quem conversou na fila demonstravam satisfação com o serviço que lhes era oferecido.

Grandes turmas de amigos andarilhos eram separadas nas filas, por causa dos que chegavam bêbados ou drogados em meio a companheiros que conseguiam não sucumbir à bebida, em troca de uma sopa e uma cama. Alguns homens reclamavam que haviam sido barrados por estarem embriagados, e queixavam-se a Miro, que para eles, por alguma razão, parecia alguém que pudesse fazer algo para sanar o problema.

Era o primeiro semestre de 2008. Miro pode ver que naquele albergue que ficava próximo à Câmara dos Vereadores, alguns homens tinham realmente alguma condição de ao menos alimentarem-se e dormirem limpos, o que lhes deixariam com certo vigor e energia na manhã seguinte, para ganharem então as ruas novamente, para vagarem até escurecer novamente, e então entrarem novamente em fila. No começo de 2010 a situação estava caótica, com fechamento de albergues, com milhares de vagas a menos.

Havia um sujeito do Mato Grosso que dizia preferir dormir no Minhocão ou na Avenida Duque de Caxias do que voltar para seu Estado natal antes de tentar efetivamente realizar seu sonho de empresariar seu irmão cantor e trazê-lo para São Paulo. Fumou um cigarro Eight com Miro, enquanto contava que estava havia dois meses em São Paulo, e conhecia a dureza das ruas, mas elas ainda não o tinham tornado amargo e destruído. Tinha algo em torno de um metro e oitenta, era magro, cerca de 65 quilos, cabelos curtos, barba aparada, graças à gilete e ao sabão oferecidos no albergue. Tinha as feições de um homem simples do interior do Brasil. Naquele momento pareceu a Miro que aqueles homens, principalmente os que vinham de estados longínquos, viam nas ruas de São Paulo algumas coisas que para eles representavam infraestrutura, ainda que fosse só uma marquise, e que para os paulistanos passavam desapercebidas, a menos que quisessem urinar ali quando passavam.

Poucos meses depois, esse homem foi vítima do fechamento dos albergues por parte do prefeito, ficando sem sua vaga em Agosto de 2009. Não tomava mais sopa no começo da noite, não dormia decentemente, perambulava envelhecido e extremamente amargurado, e não havia semana em que Miro não o encontrasse, quase sempre na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Em poucos meses o impacto em sua aparência e em seu temperamento foi brutal.

A fala articulada e segura de Miro pode ter feito o andarilho matogrossense pensar que Miro estava lhe fazendo promessas de que o futuro reservaria àquele homem um tipo de prosperidade que lhe permitiria, por exemplo, viver num apartamento com vista para o centro da cidade, e ali ficar contando às pessoas como ‘venceu na cidade grande’, lembrando de desventuras frias, solitárias e dolorosas, olhando de cima as ruas pelas quais precisou transitar em condições adversas. O fato é que então ele perdeu sua vaga no albergue, de modo que a correria para achar um meio de lançar o irmão no mercado de música tornou-se inviável. Sua missão de contribuir com a arte foi substituída pela necessidade de atender ao apelo de seu instinto pela sobrevivência. Durante a noite era preciso estar vivo e durante o dia era preciso tentar comer algo e adiar aquela loucura mais completa, como a dos indigentes bêbados que dormiam na rua, que ele conheceu na época em que não precisava dormir ao relento.

Nos albergues não entravam moradores de rua que estivessem drogados ou embriagados. Evidentemente um número grande de bêbados tentava dar seu jeito de ao menos filar cigarros de companheiros de rua que estivessem na fila. Os assistentes sociais referiam-se a eles como pessoas ‘em situação de rua’, para que se enfatizasse a suposição de que passavam apenas por uma crise temporária, que seria revertida caso essas pessoas fizessem por onde. O andarilho matogrossense não parecia ter medo de chegar ao estado terminal provocado pela mendicância em São Paulo. Alguma coisa simples e repentina também o salvaria, da mesma maneira que nosso protagonista se safaria das desgraças do acaso sem maiores transtornos. Miro seria salvo. Ainda que não fosse trabalhando como empresário do irmão cantor, o andarilho matogrossense também seria salvo. A única coisa simples e repentina que aconteceu foi o fechamento dos albergues do Centro. Ele via e reconhecia Miro nas ruas, e então Miro lhe parecia um profeta charlatão. Olhava-o como se tivesse sido traído ou enganado por ele, sendo que nada jamais lhe foi prometido.

Não houve momento algum em que Miro tivesse iludido o andarilho matogrossense com idéias incompatíveis à realidade de São Paulo, para um migrante solitário com uma missão inglória. Miro esteve na fila do albergue para ajudar Elvis a colher material para o tal trabalho de faculdade que Elvis encarregou-se de fazer para uma amiga em troca de dinheiro, Aproveitou que estava ali para ouvir histórias de aventuras e principalmente de desventuras. Conversou com mais de um desses homens ao mesmo tempo, numa rodinha. Com o matogrossense é que conversou sem que houvessem outros homens por perto.

 

_ Hoje as coisas não são como eram antes, quando o artista levava sua gravação a um programador musical de rádio para que ele a tocasse ou não. Hoje os meios do artista tentar aparecer na mídia são outros. – Dizia Miro ao matogrossense.

 

_Ah, o artista... – Dizia o matogrossense, que naquele momento tinha em sua mente a palavra ‘artista’ ecoando. Parecia dispersar-se quando ouvia essa palavra da boca de Miro, e olhava para algo abstrato e pensava em alguma coisa também abstrata e segundos depois começava a voltar lentamente para a conversa.

 

O andarilho matogrossense gostou dessa palavra no contexto em que foi colocada. Ela lhe parecia genérica, mas ao mesmo tempo imponente. Colocava suas pretensões num patamar superior ao que originalmente alvejava. Miro falou simples e falou pouco a ele sobre isso, e ainda assim sentiu-se pernóstico. Sentiu até mesmo algo para o qual, naquele momento, pensou ser compaixão.

Foi surpreendente para Miro o fato de esse homem ter abraçado um vago objetivo de vida, o de empresariar um cantor sabe-se lá de qual gênero musical, com uma tendência monstruosa para a decepção, e ao ver finalmente esse sonho destroçado pela ilusão da cidade grande, ver-se sem uma outra missão para cumprir. Estava sujo, cansado e envelhecido. A missão era permanecer vivo. Tinha sido corajoso sem saber, e agora vagava desiludido e amargurado. Tinha até perdido um pouco do sotaque de caipira.

Era triste constatar que a figura do velho vagabundo estava condenada. Por alguma razão esses homens preferem habitar as grandes cidades, onde são cruelmente surrados pela vida. Citadinos passivos, como vírus impotentes num grande organismo doente e moribundo. Eles tem algum poder para ajudar a debilitar mais e mais esse organismo, que por sua vez desenvolve uma falsa imunidade, uma vez que acolhe cada vez mais indigentes que repousam sobre o cimento.

E eis que numa ocasião em que descia pela Brigadeiro Luís Antônio, Miro viu o andarilho matogrossense tentando vender velhos utensílios QUEBRADOS a um sujeito que estava se desfazendo de uma casa e precisava esvaziá-la. 'FAMÍLIA MUDA E VENDE TUDO'. A única porta de acesso ao interior da casa era a entrada da garagem, que o dono deixava aberta com móveis à venda, além de um fogão e uma velha geladeira, daquelas estilosas, com linhas arredondadas e a porta pesada. Não havia nenhum aviso ali fixado dizendo que o sujeito comprava objetos usados para revender. Miro passava e queria esquivar-se do olhar calmo, triste e acusador do andarilho matogrossense, que estava ocupado tentando passar para frente um despertador grande e antigo, até estiloso, mas que não funcionava. Estava argumentando que a beleza da peça valia a compra e o gasto com o posterior conserto, e que estava tentando vendê-lo porque não tinha como recuperá-lo, por falta de dinheiro. Ele levava ainda uma sacola azul transparente com uma balança de chão de banheiro.

Na manhã seguinte, Miro comentou o episódio com Elvis, acrescentando o fato de que o andarilho matogrossense estava agora ainda mais envelhecido, cansado, sujo e barbudo. Elvis respondeu o comentário:

 

_ Se esse cara tivesse voltado pro Mato Grosso, ou se de lá jamais tivesse saído, talvez nem estivesse vivo. Ele não era de Cuiabá. Era de uma região pouco ou nada urbanizada, e provavelmente ali ele poderia até ser morto por um jacaré, uma onça ou por algum humano armado. Aqui, de um jeito ou de outro, ele consegue ao menos manter-se existindo, deslocando-se pelas ruas. Ele vê milhares de caras como ele por aí. Ele os vê e os conhece desde o tempo em que o conhecemos e ele era limpo e tinha esperança. Nem lembramos o nome dele. É um anônimo deslumbrado. Ele talvez não se veja da forma como o vemos, porque o fato de ter se tornado um citadino já o coloca, ainda que somente para ele, como alguém que melhorou de vida em comparação ao bronco saído de uma região longínqua do interior do Brasil. Continua bronco e agora está bem mais endurecido pela vida, mas em sua terra devia deparar-se freqüentemente com animais perigosos, e se ele prefere deparar-se com diariamente com milhões de humanos para os quais ele é mais repugnante que um camundongo do limbo, então merece essa condição em que vive nessa cidade doente, transitando como um fantasma fatigado. Chamam isso de ‘viver em sociedade’, a desumanidade do homem para com o homem. É assim por toda parte, mas na cidade grande é pior ainda. Se para um cara como ele, não saber disso é uma imbecilidade, para você é mais ainda. Esperava de você um discernimento mais astuto para lidar com esse tipo de coisa. Eu penso sinceramente que suas agonias são autoimpostas. Ele quer ‘viver em sociedade’, e para ele isso já é o bastante, mesmo que ele nem saiba o que isso significa, e mesmo com todas as decepções decorrentes. Ele não vai empresariar o irmão cantor, e nem vai contar pra você sobre o que passou na rua desde que o albergue fechou, a menos que seja para se lamentar sobre a maneira como você o deixou ao relento, sendo que você não fez isso. Esse sujeito é tão burro que acha que você poderia ter feito sabe-se lá o que por um sonho que era ingênuo e era só dele e do irmão. Você agora representa para esse infeliz toda a mítica do cara da cidade grande que engana o caipira inocente, como naqueles velhos filmes, de modo que as histórias vividas por ele sobre essa crosta de cimento paulista vão sendo deletadas de sua mente da mesma forma que você elimina da sua caixa de e-mails as propagandas de cosméticos rejuvenescedores. Ele não pode sequer conceber que exista alguém que possa transformá-lo em personagem literário, que faça sua existência ser algo mais do que uma agonia desesperançada. Ele é que é o injusto dessa história cretina, e a burrice desse caipira o isenta em seu julgamento íntimo e particular. O abismo que o separa da sociedade foi imposto pela própria sociedade, e não vamos falar disso agora, a gente sempre fala da porra da sociedade. Você parece pensar de vez em quando que no fundo as pessoas são todas como você ou como o carteiro legal, mas são quase todas como o Pida e aquela velha mentecapta do andar debaixo. Lamentavelmente vocês dois são apenas gloriosas exceções. Agora certamente aquele andarilho matogrossense está lá deitado indolentemente na limbose, e merece isso. Se estiver de pé, está fazendo mais alguma pataquada. Que coma a perna necrosada de um nóia moreno caso tenha fome. Caipira mal agradecido do caralho! Nenhuma das vantagens do anonimato é aproveitada por ele, e todas as desvantagens brutais de viver exposto vão corroê-lo enquanto estiver pelas redondezas. Ele contribui para a degradação contínua da espécie humana. É lamentável que esse tipo abominável de humano considere-se capaz de estipular o que é certo ou errado, moral ou imoral, no que se refere à postura de qualquer outro. Portanto seja cruel e implacável na sua literatura, sempre que isso for necessário. As histórias e as personagens estão prontas nas ruas. A sua habilidade com as palavras tem que ser usada não para fazer esse jornalismo burro, frouxo e corrupto feito no Brasil. Você tem que ser o timoneiro de uma geração literária, e já sei até que você vai dizer que não existe uma geração literária no Brasil com gente com menos de 40 anos, ou com menos de 50, mas isso é apenas mais um motivo para você chamar para si a responsabilidade de tentar desburocratizar a cabeça das pessoas. Eu sei que essas suas atividades paralelas à literatura, como revisão de textos e essas ajudas que você dá a universitários idiotas, que não sabem colocar pontuação correta numa frase, atividades essas em que também é necessário saber escrever, os chamados ‘suportes paraliterários’, é que geram o dinheiro pra comprar comida e pagar a conta da Light, mas é preciso investir tempo agora para que sejam escritas por outro humano as palavras mais importantes, que são aquelas que estarão para sempre na sua lápide. Alguém que tenha aprendido algo com sua gloriosa existência. Seus livros tem que ser publicados, e a princípio pouco importa se vão estar nas prateleiras das livrarias freqüentadas por gordos usando boinas, que pagam caro por títulos que são encontrados em edições antigas e charmosas, nesses sebos empoeirados do Centro, por preços bem mais baixos. Esses sujeitos não vão comprar seu livro. São bundas moles. Compram best-sellers. Seus livros, a princípio, apenas precisam ser impressos para que existam fisicamente, nem que você os venda depois pela internet, ou os distribua da maneira que for conveniente. O reconhecimento pode vir, mas provavelmente quando você for um velho homem das letras. E não adianta ficar reclamando que tudo é uma bosta, e que as pessoas são um lixo e que a sociedade faliu. Pra você isso pode até ser uma dádiva. É de onde você vai tirar sua matéria prima. Você chama isso de ‘sumo’. Só aqui no centro há sumo pra escrever vários livros, sem que haja repetição do enredos. O mais difícil até agora você já fez por você mesmo, pela sua vida, que era resistir duramente às falsas seguranças a facilidades que o sistema oferece. Esse monte de merda que são os empregos comuns, que sugam o rebanho humano até seu tutano. Essas vidas comuns, em que a individualidade não vale nada. Você nunca se entregou a essa merda toda. Você se manteve fiel às suas convicções, ainda que tenha passado por vários momentos de confusão, o que é perfeitamente normal quando se trata de alguém em meio à guerrilha. Quem não tem uma visão para a própria vida, estará invariavelmente trabalhando para visão de outra pessoa.

 

_ Quero ser bem sucedido comercialmente em um só livro, vender os direitos para o cinema, viver dos créditos dessa obra para sempre, recluso e escrevendo só quando tiver vontade, naqueles momentos em que precisarei não estar bebendo por motivo de saúde. Estarei um pouco amargurado, porque terei grana pra comprar as bebidas que quiser, e teria que manter o controle. Mas pensando bem, se eu conseguisse algum sucesso com a primeira obra, teria muita infraestrutura para escrever outros livros. Infraestrutura nesse caso significa tempo ocioso e um computador legal.- respondeu Miro

_ Os escritores alcoólatras eram figuras tristes, cada um a seu modo. Aquela infindável lista, Hemingway, Fitzgerald, Kerouac... O velho Bukowski talvez tenha sofrido mais ao longo da vida, mas entre caras esses citados, foi o que viveu mais tempo, e conseguiu saborear algum reconhecimento, podendo trocar as bebidas ordinárias por outras mais finas, numa casa confortável, e ficando vários quilos mais gordo, morrendo não exatamente por causa do álcool e sem ter cometido suicídio, além de beber como gente grande PRINCIPALMENTE quando escrevia. O Fitzgerald dizia: ‘Primeiro você pega uma bebida, depois a bebida pega uma bebida e finalmente a bebida pega você.’ Fitz era muito irresponsável em vários setores da vida, mas na hora de escrever era realmente cuidadoso. Hemingway escrevia de pé, e já ouvi dizer que não escrevia bebendo. Acho que li numa biografia dele. – disse Elvis.

 

6- Rock and Roll Over

 

 

Elvis:

_ Miro, esses são o Brito e o Valente. Eu fui ver uma banda sensacional no Toninho’s, estou voltando de lá agora e esses caras estavam lá testemunhando o quanto essa noite foi espetacular. Não tinha mais ônibus pra voltar, de modo que viemos a pé mesmo, e os caras naturalmente podem ficar aqui até os coletivos circularem novamente, não podem? Moram longe de verdade, mas daqui do Centro conseguem condução. Você já estava dormindo?– Elvis perguntou.

 

Miro:

_ Não estava dormindo, não. Diacho, eu nem sabia que ainda existia o Toninho’s. Não estava dormindo não... Tem uns trocos ali na prateleira dos discos, vocês não querem ir ao mercado comprar umas cervejas?

 

(Sem dizer uma só palavra, Valente sacou uma garrafa de Orloff da mochila, passou-a a Elvis, que guardou-a no freezer)

 

Elvis:

_ O Toninho’s fecha e abre constantemente. Nunca encerraram as atividades definitivamente. Hoje constatei que aquilo pode virar um pequeno reduto indie. Tinha várias moderninhas lá, foi legal. Tinha uma garota cadeirante que encanou na minha, não me deu sossego até que eu me juntasse a esses dois caras e formasse essa panelinha indie-grunge-punk-metal. A garota queria a qualquer custo me mostrar que conseguia transar, ter prazer e me proporcionar também. E era bonita, loirinha. Quando viu que eu estava desinteressado começou a me destratar. Eu estava pensando em outras coisas, e como não sou assistente social, não me via na obrigação de tirar o atraso dela.

 

Miro:

_ Era mais a sua cara molestá-la sem dó. Você já não é mais o mesmo. Imagine quantas histórias de vida ela poderia acrescentar ao seu repertório! Mas quais bandas tocaram hoje?

 

Elvis:

_ Hoje teve o Mainardi’s Dream, que é meio progressivo, chato pra caralho, uns hippies cheios de si, uma brisa meio King Crimsom. Só faltou os caras pedirem silêncio pra platéia. Eles pareciam um circo de horrores. Mais feios que a formação clássica do Uriah Heep. Teve também os Detritos, que é punk rock básico, e o show deles durou pouco mais de 15 minutos pois talvez soubessem o que estava por vir, e finalmente vieram os Main Drags, que foi a melhor de todas. Duas minas e dois caras, muita microfonia, o vocalista estava totalmente alucinado, mal humorado e bêbado, e ficava insultando os indies, rastejava, simulava ataques dos nervos e aquela coisa toda, e quando eu achei que o mundo ia acabar, um amplificador deles morreu e o show terminou em grande estilo. Durante o primeiro show, o dos caras que imitavam o King Crimsom, havia um cara bêbado na platéia insultando os hippies, berrando que o movimento hippie tinha sido estuprado pelo Charles Manson há mais de 40 anos e que portanto eles eram uns hippies arrombados. Eu também considero que o sonho hippie é uma bosta e estava gostando de observar a cena, que infelizmente não teve maiores desdobramentos. Depois as manifestações desse sujeito foram absorvidas pelo show dos Detritos, com o público um pouco mais excitado por causa do álcool, e quando os Main Drags entraram, ele nem parecia estar mais lá, mas ele estava, só que dessa vez sem ser ouvido e sem se destacar do resto das pessoas que estavam ali, pois até aqueles indies que eu pensei que fossem feitos de porcelana começaram a se empolgar, nem ligando ou talvez não entendendo os insultos que a banda fazia à comunidade indie entre uma música e outra. Algumas músicas eram totalmente non sense. O vocalista falava das franjinhas e dos óculos de armação indie e eu que até certo ponto superestimava a inteligência de alguns indies por causa do bom gosto musical deles, dessa vez devo dizer que fiquei surpreso pelo fato deles não ficarem ofendidos. E devo explicar aqui que embora considere que alguns deles tenham mesmo bom gosto musical, eu sempre adorei quem esculacha os indies, por que eles são chatos. Você e o carteiro legal adoram as moderninhas, eu sei disso. Eu estava sem fé no rock brasileiro nesses últimos tempos. Até conversei sobre isso com o carteiro legal há poucos dias. Sempre me pareceu que aqui não é um lugar propício para se fazer Rock, e não há uma única razão para isso. Há uma série de fatores. Evidentemente a falta de informação é a maior de todas. É algo que tem um efeito devastador sobre qualquer cultura. Há o clima tropical também, que para mim não é uma razão concreta para que sejamos pobres em Rock, mas é uma razão muito citada por críticos musicais idiotas. Há essa classe média universitária imbecil e a geração de seus pais... Ah, isso sim é algo tenebroso. Aquela geração que foi arrombada pela ditadura e que sente o dano nas pregas até hoje. Aquela gente com ideologia política de centro-esquerda que ouve MPB desde os anos 60 até hoje... Eu tenho uma bronca terrível disso. Mas os porras dos Main Drags me deixaram bem humorado e com vontade de tocar. Vou até dar uma olhada na internet pra ver se eles tem um fotolog ou site ou algo do tipo, que disponibilize as músicas. Foram do palco direto pra uma Kombi muito louca, com o nome da banda pintado, onde deixaram o equipamento e para minha surpresa, voltaram ao bar ao invés de partirem rumo ao lugar a que pertencem de verdade. Falavam só entre eles mesmos, faziam piadas internas e riam muito. Provavelmente riam dos indies que estavam lá. São ratos do underground. Eles são a razão pela qual eu estou montando uma banda com esses pangarés aqui, comigo no baixo e vocal, o Brito na guitarra e vocal, e o Valente na bateria. Antes que você pergunte, nós nos conhecemos hoje mesmo, pouco depois do amplificador da guitarrista dos Main Drags morrer, depois de ser molestado impiedosamente ao longo da apresentação. Vamos ver se conseguimos colocar uma internet nesse apartamento, porque aquela lan house que tem ali na Rua Timbiras é terrível, cheia de nigerianos, chineses e bolivianos, só a escória do Centro. Nós também somos a escória da escória e estamos adaptados a isso, mas na hora de resolver pendências relativas à correspondência é preciso ter alguma privacidade, sem aqueles jovens alucinados que vão à lan house por causa dos jogos eletrônicos e ficam gritando e apostando, isso quando não ficam se masturbando enquanto assistem a filmes pornográficos na internet.

Miro:

_ Elvis, qual vai ser o nome da banda de vocês? Sua verborragia é inacreditável. A dureza das suas convicções deve estar impressionando seus companheiros de banda, muito embora eu creia que eles já tiveram tempo suficiente para conhecer essa sua característica quando estavam tomando cerveja do lado de fora do Toninho´s, onde várias vezes ouvi você discorrer por horas sobre Rock e sobre comportamento humano. Já vi você ficar ali falando por horas sentado na guia da calçada com o bar já fechado e de repente parar de falar porque capotou ali mesmo, de sono e bebedeira. Quando forem comprar instrumentos podem aproveitar e comprar um computador para deixar aqui em casa, de preferência com recursos para que se faça música eletrônica e de outros tipos também, uns sons de bateria pré-programados, tecladinhos ordinários, porque tenho umas idéias para fazer música de vanguarda em casa, ao mesmo tempo em que terei melhores condições de trabalhar melhor na minha literatura, pois também tenho que freqüentar aquela lan house imunda quando preciso de impressora, responder e-mails ou fazer pesquisas.

 

Elvis:

_ Os caras já tem seus instrumentos, eu usarei um baixo emprestado por uma amiga, por enquanto, e quando tiver uma grana, compro um pra mim e deixo o resto para ajudar na compra do computador. Aliás, vamos fazer música de vanguarda também. Será Rock, mas será vanguardista. Tenho assimilado razoavelmente algumas coisas do Brian Eno, que você fica ouvindo aí quando está sequelado de bebida e entorpecente. A carreira solo dele é meio difícil pra mim, aquela brisa etérea, música de aeroporto, não assimilei direito ainda, mas a época dele no Roxy Music e mais tarde com o Bowie é algo realmente bom. Como produtor ele é gênio. Mas é impossível explicar com palavras o gênero ou subgênero de música que pretendemos criar, mas já tenho em mente, em linguagem musical. Vai ser algo em que apenas nós mesmos nos encaixaremos, como eu creio que apenas os Cramps deveriam ser chamados de psychobilly, assim como no jornalismo literário só o Hunter Thompson deveria ser chamado de Gonzo, embora o Lester Bangs talvez merecesse ser citado, mas mesmo assim ele já é um sub-gênero do Gonzo, e também o Chris Simunek, que é legal mas é o sub-gênero do sub-gênero do Gonzo.

 

Miro:

_ Quem estava na portaria do prédio quando vocês subiram?

 

Elvis:

_ Era o Jairzinho Perna-de-pau. Ele gosta da gente, mas diz que ouve um monte de reclamações de som rolando alto de madrugada, risadas altas e tal. Tem aquele japonês da manhã. Nunca tinha visto um porteiro japonês antes de conhecer aquele cara. Esse prédio é muito louco. Ah, o Jairzinho me disse que o Pedrinho Eutanásia, aquele sujeito que aparentemente não trabalhava, o bom vivant do primeiro andar, que tinha uma namorada bem jovem, está em cana. Mas o fato é que vou buscar umas cervejas mesmo com essa vodka aí na geladeira. Até ela gelar, vai demorar um pouco. Miro, dá um cigarro desse? Hoje à tarde vi esse disco aí do Captain Beyond por 120 pratas na galeria. Espero que você nunca vire um nóia e vire tudo isso em pedras.

 

Miro:

_ Pior seria se VOCÊ virasse um nóia e eu um dia chegasse em casa e você estivesse dentro do armário fumando pedras com o dinheiro da venda dos meus discos.

 

Elvis:

_ Se minha banda estourar é capaz de um desses dois caras virar nóia. Você tem razão para estar preocupado, Miro. Mas nesse caso teríamos grana pra recompor os danos. A gente interna esses miseráveis se eles sucumbirem a essa tentação que persegue gente sem classe. Você tinha que ver a cara deles quando estávamos chegando aqui, andando bem no meio da Cracolândia. Vimos um atrito entre um traveco e uns nóias que estavam precisando de dinheiro para comprar rocha. Tentaram roubar o traveco, que sacou uma lâmina enferrujada e colocou os nóias pra correr. Isso aí é uma selvageria terrível.

 

Miro:

_ Se a banda não virar é que vocês tem mais chances de virarem nóias. Vão fazer o mesmo que os Happy Mondays. Primeiro vendem os instrumentos pra comprar pedras, depois vendem as roupas e compram mais pedras e depois vendem seus tóbas e compram mais pedras ainda.

 

Elvis:

_ O mais próximo que eu já cheguei de virar nóia foi ter tido vontade de descansar com os nóias na calçada numa manhã em que voltava de uma bebedeira, estava pra lá de Tânger e com bolhas nos pés e ainda precisava andar meia hora pra chegar em casa. De vez em quando penso nisso, só pra sentir o que eles sentem ao deitarem-se na calçada imunda e úmida. Eu sairia de lá depois que a vontade passasse e viveria normalmente. Eles nunca saem. Só se levantam pra comprar mais pedras. Por falar nisso, o Pida estava na área hoje.

 

Miro:

_ Que coisa fina... Você conversou com ele?

Elvis:

_ Sim, eu não consigo resistir. Foi incrível porque ao invés de estar fumando pedra, estava cantando naquele karaokê tosco da Rua Aurora cantando ‘Aquarela’ do Toquinho, e eu sei que não há nenhum cantor mais desafinado em qualquer lugar do mundo, em qualquer época. Como cantor ele é bom, de tão ruim. Ele me viu passando naquela calçada estreita e perguntou: ‘Como está lá no apartamento dos roqueiros?’. As pessoas gostam da gente aqui na Cracolândia; os nóias, os porteiros, os carteiros... Essas famílias fodidas é que não gostam. Nem putas e travestis são olhados tão de quina como nós somos pelas famílias religiosas. Essa gente tem mais medo de conviver com a gente, por ouvirmos som alto e sermos um mistério para a vizinhança, do que com os nóias e traficantes de pedras que nesse momento estão nas ruas. Veja você, esse é um momento em que deveríamos estar transbordando de alegria, por estarmos aqui dentro, ao invés de estarmos realmente perto de toda essa balbúrdia. E vou descer para pegar as cervejas e estarei no meio daquilo tudo novamente, o que é detestável, já que estou com as meias molhadas, e se eu as tirar antes de sair, certamente não saio mais. E preciso das cervejas para rebaterem a vodka que logo estará gelada, porque destilados tem um efeito brutal sobre mim.

 

Miro:

_ E se você tira as meias molhadas antes de sair e deixa de ir, a gente ficaria sem a cerveja e veríamos você coçar as frieiras fazendo cara de tesão. Seja gentil e vá comprar a cerveja imediatamente. Na volta você faz o que você quiser enquanto a cerveja estiver gelando.

 

Elvis:

_ Certamente na minha volta com a cerveja aquela jarra cor de glande vai estar cheia de caipirinha de vodka e vou contar pra vocês o que vocês já sabem, que a rua está cheia de nóias com seus cobertores, indo de uma esquina para a outra.

 

Miro:

_ Certamente a rua vai estar assim. E a fila do mercado vai estar cheia de travecos enormes, com a barba por fazer.

 

Elvis finalmente foi ao supermercado 24 horas da Cracolândia e Miro ouviu pela primeira vez a voz de Valente, que perguntou pelo gelo, pelo limão e pela faca, para que começasse a preparar a caipirinha. Brito estava com uma pilha de discos do Grateful Dead em seu colo, concentrado na verificação das fichas técnicas das contracapas e dos encartes, comparando as diferentes formações da banda ao longo dos anos. Ainda estava nessa função quando Elvis voltou com duas caixas de Nova Schin, marca que segundo ele oferecia um custo-benefício favorável. Sabia que seria escrachado pela marca de cerveja escolhida, e enquanto tirava seus sapatos e meias mostrando a sola do pé esquerdo com uma enorme bolha típica de andarilhos que usam calçados inadequados, tratou logo de mirar sua defesa antecipada sobre o gosto musical de Brito:

 

_ Brito, seu hippie sujo! Você deveria saber que o Sha-na-na só foi escalado pro Woodstock de 69 para que o Grateful Dead não fosse a pior banda do festival.

 

Miro ouviu então a voz de Brito pela primeira vez:

_ Eu gosto só da fase inicial, antes do Charles Manson molestar o sonho hippie. Jerry Garcia jovem, de cabelo e barba pretos. Quando conheci Grateful Dead, foi pela fase anos 70 e 80, e Jerry parecia já ter nascido velho.

 

Elvis:

_ Você está segurando pelo menos a metade da discografia desses hippies, a maioria desses discos aí são dos anos 70, depois da ação do Manson.

 

Brito:

_ É só pra ver as fotos deles com caras de hippies estuprados.

 

Miro:

 

_ Teríamos que considerar então que a maioria das bandas legais dos anos 70 era composta por hippies arrombados da era pós-Manson.

 

Elvis:

 

_ Não há como colocar o Grateful Dead no mesmo balaio do Led Zeppelin, Grandfunk Railroad, Allman Brothers, Thin Lizzy e Ten Years After.

 

Miro:

 

_ É você quem está fazendo isso.

 

Brito:

_Essa coleção é sensacional! Não tem só Rock. Tem outros gêneros e tem cantores populares, afff... Wanderley Cardoso, Odair José, Waldick Soriano... Nunca ouvi um disco inteiro desses caras. A caipirinha já vai ficar pronta, só estou dando um tempo pra gelar um pouco mais a vodka...

Elvis:

 

_ Vou coçar o pé e fazer cara de tesão enquanto bebo!!!

 

Miro:

 

_ Você é um traste, um varzeano. Seu comportamento no camarim da sua banda será algo ainda não concebido em termos de brasilidade. Comprou essa cerveja tosca e pensou que escaparia da repreensão. É o cara que mais fala que a qualidade deve ser sobreposta à quantidade.

 

Elvis:

 

_ Se eu comprasse alguma das marcas que você prefere, teríamos no máximo duas latas para cada um. Esse é um raro caso em que a quantidade pode ser sobreposta à qualidade. Trata-se de uma questão de poderio financeiro. A marca da vodka é boa. Vamos tomá-la antes, e depois disso pouco vai importar a marca da cerveja que temos aqui, até porque ela vai estar bem gelada. Será que você precisa reclamar até quando temos o que beber? Por que você também não entra pra banda? Esses seus cadernos de anotações que você não usa pra nada serão úteis para escrevermos nossas letras. Sei que são anotações desconexas e aleatórias, mas a gente pode usar o método do cut-up, aquelas colagens aleatórias que o Burroughs fazia para compor seus textos. Não perderíamos tempo e confundiríamos ainda mais a cabeça dos jovens. Além do mais você teria uma banda e não seria chamado de músico frustrado pelos seus companheiros de imprensa alternativa. Esse cabelo de Mark Farner entrega que você quer ser músico. Se você vencer na literatura ficará imune a isso tudo, mas tem que tentar as duas modalidades. Se o Moby consegue, você há de conseguir. Imagine só se você tiver que bater boca com esses merdas da MPB, se eles disserem que críticos são pessoas que não conseguiram ingressar na carreira musical. Com a banda você ia poder sair pra rebolar essa velha carcaça indie ao invés de ficar dentro de casa olhando a Cracolândia da janela.

 

Brito:

 

_ Ei, Miro! Posso colocar esse disco, o Discipline, do King Crimson? Gosto dele, é tudo o que o Police queria fazer e não conseguiu.

 

Elvis:

 

_ Pode colocar, só pra nós concluirmos mais uma vez que o disco mais fraco do Police é melhor que o Discipline, que é de uma fase confusa do King Crimson. Nessa época era o King Crimson que era influenciado pelo Police, e não o contrário. O rock progressivo já tinha sido varrido pelo movimento punk há anos. Não é um disco ruim, é apenas fora da fase mais legal deles, que já tinha passado. Gravaram discos nos anos 80 pra cumprirem obrigação contratual com a gravadora.

 

Brito:

_ Você é muito fino, responde perguntas não direcionadas a você...

Elvis:

_ Esse disco, e muitos outros dessa coleção, eu vendi para o Miro. Eu entendo essa fascinação que alguns jovens tem por rock progressivo, mas eu tenho experiência e estou idealizando o som ideal, que é impossível de ser encontrado, mas de qualquer forma é preciso estar no caminho certo, e rock progressivo já era. Tem umas coisas bonitas e legais, mas era pomposo demais, talvez tivesse sido um mal necessário. Aqueles astros inalcançáveis levando toneladas de equipamentos para os shows. Basta que a gente hoje pense na nossa realidade, século 21 adentro, e só podendo comprar equipamentos baratos e carregando amplificadores pesados pra tocar em espeluncas localizadas no meio de puteiros, mas pelo menos vai ser sempre divertido. E pelo que consta, é a minha vez de escolher o disco que vamos ouvir, e vai ser um verdadeiro petardo. Deixa eu olhar essa prateleira, Brito, chaga um pouco pra lá... Ah, meus filhos!!! Achei um disco que é um verdadeiro petardo! The Band!!! Vamos ouvir The Band!!!! A Banda!!! Music From Big Pink é o disco!!! Clássico absoluto!!!

 

 

7- The cradle will rock

 

 

Miro tinha um laptop que deixava escondido da vista dos amigos. Num apartamento tão pequeno como aquele, certamente enlouqueceria caso não pudesse matar algum tempo na internet quando estivesse sozinho. Também desistiria de ser escritor caso tivesse que trabalhar na lan house próxima a seu prédio. Aquele era o tipo de lugar que inspiraria o escritor sem ego, que precisa do mais absoluto caos para que consiga transformar em texto aquilo que vê de insano nas ruas, vivendo o calor do momento. Mas na maioria dos casos o escritor quer isolamento e alguma privacidade, porque escolhe esse ofício não pela arte em si, mas por ser alguém de natureza até certo ponto arrogante e com apreço pela reclusão, que não se sente à vontade em meio àquela camada social mais rasteira que pede cigarros nas ruas das cidades grandes, e que está imediatamente sobre a limbose urbana ou submersa nela. Acima de tudo há a aversão completa por empregos comuns.

A inspiração para escrever sobre toda essa baixeza vem quando esse tipo de escritor presencia as cenas enquanto está nas ruas e ausenta-se delas para escrever. Um meio termo entre uma e outra situação já deixaria Miro satisfeito, mas parecia difícil encontrar esse equilíbrio. Para isso seus amigos teriam que saber da existência do laptop, o que resultaria em transtornos, pois aqueles molóides iriam interrompê-lo em seu trabalho diariamente, pedindo o computador emprestado para inutilidades. Eventuais recusas por parte de Miro resultariam em mais transtornos ainda.

Ressentia-se um pouco por não ter a liberdade de usar seu laptop por mais tempo em sua própria casa, já que seus amigos iriam dominá-lo com acessos de baixa qualidade. Sabia, no entanto, que precisava desses caras por perto para que sua morada não virasse algo sem precedentes no que diz respeito à sujeira e baderna, então desligava o laptop quando alguém chegava. Era um milagre o fato de não ter sido descoberto, já que Elvis tinha a chave e não anunciava sua chegada previamente. Caso isso acontecesse, diria sem gaguejar que tratava-se do laptop de uma amiga. Miro não se sentia confortável com a situação, mas achava que aquilo não era o suficiente para fazer dele um sujeito egoísta.

Seus escritos permaneciam inéditos. Disponibilizava-os na internet, mas isso não era o bastante. As pessoas precisam do papel impresso para que leiam adequadamente. Tentava encontrar algum consolo momentâneo nas biografias de escritores de que gostava, especialmente naquelas partes em que eles ainda eram totalmente anônimos e tinham suas histórias seguidamente rejeitadas pelos editores e pelas revistas, antes de eternizarem seus nomes e suas obras com a vitória no ramo literário.

Miro lembrou-se mais uma vez que as pessoas podem causar problemas de verdade (problemas que nada tem a ver com o anonimato e a dureza de grana com os quais ele sofre um pouco, mas que não o amarguram de verdade, já que é ele mesmo o responsável por esse setor de sua vida, e ele sabe bem disso) no dia em que Herbert, o carteiro legal, contou-lhe sobre o encontro que promoveu entre Elvis e o rapaz sequelado do ponto de táxi do hospital. Herbert havia contado a Elvis sobre os planos de Miro a respeito do projeto literário inspirado no rapaz do ponto de táxi. Miro antecipou-se na pesquisa a respeito da vida rapaz, e por intermédio de Herbert, conheceu sua morada num fim de semana, quando o tal rapaz estava de folga.

Faz-se necessário esclarecer que Elvis já não tinha mais esperanças de que um dia Miro resolvesse doar seu tempo para ensiná-lo algo relativo à escrita, algum segredo relativo à técnica literária que Elvis pensava poder absorver. Não se tratava de descaso por parte de Miro, mas sim de uma sincera crença por parte dele de que não se pode ensinar alguém a ser escritor. Talento não se ensina, é algo nato. O que pode ser ensinado de fato é a técnica, e Miro acreditava que isso só se aprendia com os verdadeiros mestres, aqueles que já tem seus nomes imortalizados, e que expuseram esses macetes ao longo de suas carreiras. Devido às circunstâncias, a modéstia era necessária a Miro (ao não considerar-se um professor digno) não por preguiça, mas por pensar que seria ridículo expressar tamanha pretensão a um aspirante a escritor, condição essa na qual ele próprio se enquadrava, e não sem razão. Razão também não faltava a Elvis ao dizer que Miro queria ser músico, talvez mais do que ser escritor.

Elvis então resolveu que iria atrás do que considerava uma boa fonte de matéria prima para a literatura, e roubando a idéia de Miro, resolveu investir na exploração de uma história como a do rapaz do ponto de taxi do hospital, já que Herbert tinha lhe contado que Miro nunca colocava essa idéia na prática de verdade, adiando sempre a entrevista com o potencial protagonista da nova história. Elvis assimilou por conta própria, sem que Miro precisasse lhe dizer com todas as letras, que aprende-se a escrever lendo os bons, e depois de internar-se na leitura de ‘Anna Karenina’ e ‘Guerra e Paz’, anotando frases de efeito e bem elaboradas, Elvis partiu para a pesquisa de campo, com um bloco de anotação e tudo mais.

Herbert iria a um reduto indie ali pela região central da cidade num sábado à noite, e aceitou levar Elvis à casa do rapaz do ponto de taxi do hospital. Foi nesse dia que Elvis soube que o nome do rapaz acidentado era Bernardo (informação dada por Herbert antes de chegarem ao encontro). Elvis sabia que Miro não sabia o nome de Bernardo, e concluiu que se ele não tinha conhecimento a respeito do nome do sujeito, era porque o texto sobre ele era um projeto que estava longe de ser prioritário.

A idéia era que Herbert levasse Elvis até a pensão onde Bernardo vivia, apresentasse um ao outro, e quando a conversa entre eles engrenasse ao ponto de Elvis estar anotando de maneira nada discreta as informações a respeito de Bernardo enquanto este as pronunciava debilmente, então ele os deixaria sozinhos, para ver cenas um pouco mais bonitas, protagonizadas por garotas com franjinhas e camisetas do Depeche Mode ou dos Smiths e agasalhos Adidas.

Sucedeu-se exatamente dessa forma, e cerca de três semanas depois do encontro, Herbert foi abordado por um funcionário do hospital em frente ao qual Bernardo trabalhava, e contou-lhe que ele havia enlouquecido de verdade. Quando tomou conhecimento de alguns detalhes ocorridos com Bernardo pelo funcionário do hospital, Herbert logo pôde constatar que havia muito de Elvis nessa história. Contou a Miro, que imediatamente soube que Elvis havia dado drogas a Bernardo. Elvis justificaria isso alegando uma experimentação em nome da arte. Usava essa justificativa sempre que fazia algo que envolvesse drogas e bizarrice.

Bernardo não saía mais do seu quarto na pensão desde o encontro com Elvis, e ficava repetindo seu nome lentamente, com as sílabas bem separadas. ‘Beeerrr-naarrr-doooo, Beeerrr-naarrr-doooo !!!!’ . Era só isso o que o pobre rapaz ficava repetindo, olhando tristemente para um ponto abstrato num horizonte que não existia à sua frente, já que vivia num quarto de cerca de 15 metros quadrados, cuja janela era virada para o quarto de um velho militar aposentado, que tinha um espaço maior e com duas janelas, uma virada para o quarto de Bernardo, que ficava no fundo da casa, e outra para a rua. Esse sujeito passava o dia a lustrar medalhas e armas.

Pressionado por Herbert, Elvis confessou ter dado LSD a Bernardo. ‘Ele tomou só meio ácido!!!’, disse Elvis. ‘E foi para uma experimentação artística! Eu estava obcecado pelo modo como esse cara vivia e se comunicava. Tentei tirar as algemas que as limitações físicas e mentais os impunham. Por outro lado, sempre achei que ele parecia feliz. Ao menos era sorridente, e isso me intrigava. Ele vivia numa bolha, e isso era um tipo de proteção contra aberrações exteriores as quais todos nós somos diariamente submetidos. Tomei a outra metade do ácido e ficamos lá viajando, até dei uns CD’s pra ele. Sei que pode parecer loucura dar drogas pra um cara como ele, mas na hora não me ocorreu que ele pudesse tomar tarja preta e que pudesse ficar completamente alucinado, preso a outro plano completamente distinto do nosso pobre plano terreno. Ou talvez eu soubesse disso de forma subconsciente, o que me fez agir instintivamente.’- Disse Elvis para Miro numa manhã em que o primeiro mais uma vez trazia o leite e os jornais. Foi o momento que marcou o primeiro encontro de ambos depois que Miro soube da história de Bernardo através do carteiro legal.

Foi nessa manhã que o interesse de Miro em escrever uma história baseada em Bernardo ressurgiu, com alguns complementos mórbidos, causados pelo devasso fator Elvis.

_ Talvez você devesse ser internado no hospital da cadeia pra ter um corretivo. O Bernardo sofreu um golpe duro da vida, nós nem sabemos ao certo como e quando foi que ele sofreu o acidente, e ficou com seqüelas definitivas e depois tem que passar por esse tipo de situação. Você nunca se deparou com pessoas que tem medo de tomar ácido conscientemente? Como você dá metade de um ácido pra esse cara? Elvis, você precisa de tratamento contra as drogas, contra o álcool e contra sua insanidade. Você é um louco perigoso. Eu fico de cara com certas coisas que você faz. Algumas delas eu gostaria de fazer também, mas você passa dos limites com muita frequência.– disse Miro.

_ Só fui internado uma vez na vida, para fazer uma cirurgia de redução de pênis. Depois disso as mulheres deixaram de ficar totalmente chocadas. A operação foi um sucesso. – Elvis respondeu.

Miro:

_ O Herbert me contou que você ia escrever sobre o cara, roubar minha idéia. Você sabe bem que estou cagando pra isso, e já que você quer fazer, que faça a coisa bem feita. Eu estava me preparando para começar a escrever o romance definitivo da brasilidade. De qualquer forma, você adicionou uma dose cavalar de brasilidade no contexto e agora talvez seja o momento ideal para começar a trabalhar. E já que você deu ácido pro infeliz, deve ter alguma intimidade com ele, mesmo que ele esteja igual ou pior que o Syd Barrett. Só fico meio preocupado com o fato da história parecer surreal demais, a ponto de parecer forçada e desinteressante para a literatura. A propósito você fez alguma anotação quando estava dentro do quarto do cara? Algo que possa ser aproveitado no texto?

Elvis:

_ Sim, mas eu não consigo achar o bloco onde anotei. Dias atrás resolvi que começaria a escrever meu próprio livro e vi que perdi a porra do bloquinho de anotações. Talvez tenha largado no quarto do Bernardo. O Herbert tinha me dito na ocasião do ácido, antes dele sair pra caçar moderninhas, que era uma indiscrição da minha parte anotar o que Bernardo dizia, pois eu estava sentado bem na frente dele e não disfarçava o que eu estava fazendo. Era ele falando e eu anotando. Eu anotava também coisas relativas a detalhes do quarto dele, características gerais do meio em que ele vive, do modo como faz as coisas. É evidente que Bernardo não estava nem ligando pro fato de eu estar fazendo anotações, talvez nem estivesse percebendo. Se soubesse o que estava rolando talvez achasse bom, principalmente se soubesse que seria protagonista de uma história escrita para inaugurar um novo gênero literário, novo ao menos no Brasil, um gênero que não exalta a brasilidade, apenas a utiliza como referência negativa. Um tipo de crítica expositiva, sobre as chateações pelas quais passamos. Não um estudo, mas apenas uma exposição mesmo, que também não poderia ser considerada essencialmente política. Mas infelizmente o fato é que eu pelo jeito perdi as anotações. Quando o ácido bateu, provavelmente aquilo perdeu a importância inicial, e eu estava no quarto pirando com o doidinho que parece o Magnum. A essência da história que escreveríamos estava diante de mim, e me satisfez sem que fosse preciso transformar em palavras. Perdeu-se em arte, mas foi algo vivenciado. De qualquer forma consigo relatar o que aconteceu ali naquele dia, e posso levá-lo até lá para conhecê-lo. Pelo que soube, ele não é mais o mesmo. É claro que quando eu saí de lá eu estava vendo-o enlouquecido, mas achei que a brisa ia passar. Eu sei que você notou, ainda que inconscientemente, que Bernardo não tem aparecido na frente do hospital. Você não fez nenhum comentário a esse respeito, caso contrário eu teria contado a história até onde eu sabia. Mas eu não sabia que ele não tinha voltado da viagem do ácido. Estou preocupado.

Miro:

_ Não é pra menos, meu caro. A coisa pode azedar pra você. Acho que devemos averiguar o estado em que ficou o doidinho. Se você tiver alguma sorte as pessoas podem achar que foi apenas um agravamento ou um desdobramento do problema que ele já tinha, e não algo adquirido com aditivos alucinógenos. Mas agora não vou ter nem um depoimento do cara a respeito do que ele fazia antes.

Elvis:

_ Ele não fazia nada além daquilo que você já sabe. Era uma criança, agora é mais sequelado que um Brian Wilson, ou Syd Barrett. Está lá janjulando mais do que nunca. O fato é que ele gosta de Hard Rock. Tem um pôster do Venom e um do Van Halen da fase David Lee Roth numa parede do quarto. A vida é mais importante que a arte, e eu pude constatar pessoalmente que se o doidinho fosse retratado literariamente, seria algo brutal. Um cotidiano duro. Uma vida travada pelas dificuldades. Era um cara sorridente. O que me preocupa é o risco dele perder isso. O Herbert me disse que ele perdeu e que está numa brisa sem volta. Minha performance como artista de palco pode ser influenciada por ele. Digo, pela maneira como ele ficou depois do ácido. Eu ainda não o vi. Não posso negar que quando Herbert me abordou meio indignado, já sabia do que se tratava.

Miro:

_ Vamos até a casa do Bernardo.

Elvis:

_ Você sabe que ele vive numa pensão. A dona pode descobrir a razão da loucura definitiva do cara, caso não tenhamos uma justificativa apropriada para a visita.

Miro:

_ Nós vamos dizer que a razão da visita é justamente o fato do cara ter ficado mais alucinado do que já era.

Elvis:

_ Sim, e isso aconteceu quando eu o visitei pela última vez. A dona da pensão vai associar minha visita anterior à decolagem do doidinho. Você poderia ir até lá sozinho, ou com o Herbert. A mulher já grilou comigo porque levantei com o pé a tampa da privada do banheiro coletivo da pensão.

Miro:

_ Como você fez para que ele tomasse o ácido?

Elvis:

_ Apenas dei a ele e pedi que colocasse debaixo da língua. Como ele não questionou e obedeceu imediatamente, coloquei também o ácido na boca e praticamente esqueci de todo o resto e só fiquei esperando a brisa bater, e eu não sei qual foi o momento em que ele começou a ficar fora do que era o seu normal. O normal dele é ser doido. Não pude identificar o momento exato em que ele ficou ainda mais alucinado. Talvez a brisa tenha chegado simultaneamente para nós dois. Saí de lá quando fiquei com vontade de tomar uma cerveja na rua. Deixei-o em seu quarto. Há muito pouco espaço lá, e talvez por isso ele tenha entrado em parafuso. Na hora em que eu saí, isso não tinha me ocorrido. Eu poderia tê-lo levado para dar um rolê, mas naquele momento eu já nem fazia mais anotações e tinha deixado para trás a razão inicial da visita, que era colher material para uma história literária, de modo que ele ficou num cubículo, pirando e sem saber o que estava acontecendo, enquanto eu tomava um pouco de vento para espairecer. Estava doidão de ácido, já via o mundo colorido e deveria deixar de lado meu ego, no entanto larguei o infeliz alucinando sozinho. Nesses dias em que ele esteve recluso, não havia dia em que não pensasse no que podia ter acontecido. O que posso dizer para advogar em minha própria causa é que enquanto estávamos ouvindo som e conversando, ele parecia estar se divertindo de verdade. Ele tem uma piruca que parece o cabelo do King Buzzo, dos Melvins, e ficava dançando alucinadamente a cada música que escolhia para ouvirmos. É melhor irmos lá ver como ele está. Suas condições devem estar dignas de serem registradas. Você pode escrever sobre ele. Vou procurar outro protagonista. Você merece ter Bernardo como o herói ou protagonista de seu romance. Por falar nisso, está na hora mesmo de você escrever um romance ao invés de ficar dizendo que é um contista, e que gosta de escrever histórias curtas. Afinal, você não tem culhões para dedicar-se a um trabalho que requer concentração por mais tempo? Eu sei que você consegue. Você ainda não é consagrado, pode usar o material que já escreveu e reaproveitar algumas partes. Você não deslanchou com seus contos ainda, pode lançar um romance primeiro, e depois lançar uma coletânea de contos, onde fãs e curiosos poderão entender como as histórias curtas serviram de laboratório para sua primeira grande obra. Não temos revistas literárias decentes para publicar contos. Você os publicou da maneira mais underground possível, com aquelas cópias em folhas de sulfite, e foi legal, mas está na hora de dar um passo adiante.

Miro:

_Lembra daquele pastor pilantra que dava hóstias com LSD?

Elvis:

_Lógico, Pastor Jarbas!!! Ídolo Absoluto!!! Que fim levou?

Miro:

_Adoraria saber... Deve estar preso, ou morto, ou morando num sítio na Finlândia, bem loucão de ácido, matando seres da floresta.

 

A verdade é que Elvis omitiu um fato importante. Tinha descoberto que Bernardo, apesar das seqüelas do acidente, era um compositor que lembrava o que havia de melhor em Brian Wilson, Alex Chilton e Arthur Lee. Tinha em casa um violão barato e um teclado de brinquedo. Tocou e cantou para Elvis algumas canções realmente emocionantes. Algumas delas eram composições próprias, e outras eram covers de artistas obscuros de que gostava.

Elvis queria roubar-lhe as músicas, e para isso tomou emprestado o teclado de brinquedo onde algumas melodias estavam gravadas. Estava tentando guardar na cabeça algumas das músicas tocadas por Bernardo no violão. O ácido bateu e então ele resolveu que numa outra ocasião pediria a Bernardo que as tocasse novamente, para que pudesse aprendê-las, gravá-las e anunciar-se como o compositor dessas músicas. Brito , Valente e Miro ficariam surpresos com a genialidade do verdadeiro Elvis.

8- O coiso!!!

 

A visita a Bernardo foi deixada de lado naquele dia, porque Gladis veio visitá-los no apartamento, trazendo cervejas em lata e sacos de pipoca de microondas. Elvis sentiu-se satisfeito pelo adiamento da visita que seria feita a Bernardo na companhia de Miro, mas nos dias seguintes continuou visitando sozinho o rapaz.

Gastava seus dias comprando livros e discos de vinil, como sempre, e usava o resto de seu tempo levando os cadernos de anotações de Miro à lan house e tentando trabalhar num texto sobre o qual pouco falava a Miro. Esse por sua vez dedicava-se cada vez menos à literatura. É bem verdade que sempre fazia anotações, acumulava o ‘sumo’ para a composição de seu prometido romance, mas essas anotações eram feitas em pedaços de papel soltos, que ficavam debaixo dos copos de café e cerveja que bebiam em casa, enquanto a parte organizada desses manuscritos era aproveitada somente por Elvis. Não se podia culpá-lo pela indolência de Miro, que no fundo sentia-se honrado pela forma com a qual Elvis tratava de aproveitar seus cadernos para tentar sozinho tornar-se escritor.

Os escritos de Elvis mais pareciam diários organizados do que propriamente literatura. Sentia receio de tentar arriscar desenvolver um estilo próprio e ser acusado de imitar algum autor que ele nunca tenha lido. Estava fazendo todo o possível para dedicar o máximo de tempo às suas leituras. Isso o deixava cada vez mais fascinado pela literatura, e cada vez mais confuso no que diz respeito a organizar as idéias anotadas desenvolvendo um estilo próprio.

Miro considerava (e não sem razão!) que o trabalho do escritor não se resumia ao tempo em que este passava produzindo o texto propriamente dito. Era preciso viver, fazer anotações, ler, para depois entregar-se ao trabalho mais duro e solitário de ordenar esse material colhido e formatá-lo da melhor maneira possível. A amizade de Elvis (que tentava encorajá-lo a finalizar suas histórias ) ironicamente o fez distanciar-se dessa parte de produção final do textos. Elvis era um cara divertido, e que inclusive servia de inspiração para que Miro cria-se certos personagens, que se não eram o próprio Elvis em sua totalidade, ao menos tinham parte dele em suas personalidades .

Elvis teve acesso aos contos que Miro produziu anteriormente e ao que parecia nunca identificou em nenhuma das personagens nada que o fizesse constatar que ele havia sido fonte de inspiração para esses trabalhos. Em parte desistiu de contar com a ajuda de Miro para que este lhe ensinasse truques literários, e também passou a seguir a orientação de que nada havia a ser ensinado. Era preciso apenas ler e praticar a escrita, além de tomar cuidado para não se tornar um intelectual de gabinete, que deixa de viver para dedicar-se exclusivamente ao trabalho de esculpir textos. Para Miro parecia ser um sacrifício grande demais mandar uma visita embora para que pudesse se dedicar a esse trabalho, já que tinha a vida como prioridade em relação à arte.

O anseio por conseguir finalizar um trabalho autoral fez com que Elvis resolvesse investir tempo na preparação de um conto, ainda que esse fosse entregue a Miro para que no final das contas, o resultado fosse uma colaboração, uma obra escrita a quatro mãos. Pensava que com uma parte significativa do trabalho já razoavelmente estruturada, Miro finalmente voltasse ao trabalho duro e desse um acabamento digno ao texto, usando os tais truques literários que Elvis achava que algumas pessoas conheciam, e que por alguma razão que jamais iria compreender, não passavam adiante.

Foram necessárias quatro semanas para que um esboço com 15 mil palavras fosse produzido por Elvis, contando as aventuras e desventuras pelas quais passou desde a infância. Tudo sem pontuação e sem parágrafos. Uma vez que Miro perdeu o interesse pelo projeto em pouquíssimos dias, voltando a dedicar-se apenas a colecionar discos de vinil, então Elvis decidiu dar também um direcionamento musical ao projeto, e não mais apenas literário.

A parte final desses escritos eram sobre Bernardo, já numa fase de debilidade acentuada por causa do ácido, e já era um cara com quem Miro havia perdido completamente o contato, que antes já não era dos mais expressivos, mesmo quando os rapaz trabalhava com os taxistas. A intenção de Elvis era chamar novamente e atenção de Miro ao caso Bernardo, para que os trabalhos literários fossem retomados, pois a dona da pensão em que Bernardo vivia definitivamente nunca desconfiou do que realmente o levou à derrocada final da loucura completa. Além da parte escrita, Elvis registrou as falas e os trejeitos de Bernardo numa câmera de celular. O pobre rapaz continuava nas mesmas condições, repetindo apenas ‘Beerrr - nnnaaarrrr - dooooo, Beerr – nnnaaarrrr - dooo!’, e para que as características que do rapaz antes que ele tomasse ácido não fossem perdidas por falta de registro, Elvis gravou a si mesmo fazendo os movimentos e o jeito que o rapaz falava quando conseguia trabalhar. Decidiu que usaria isso na performance de sua banda. Pensava seriamente em recrutar um baixista para a banda, para que pudesse dedicar-se apenas aos vocais e à parte cênica, fortemente influenciada por Bernardo, antes e depois do ácido.

Numa noite em que assistiria a uma cópia em VHS de uma adaptação do ‘Grande Gatsby’, de Fitzgerald, e pensava em como seria árduo esperar que as latas de cerveja que estava carregando para seu apartamento gelassem, Miro encontrou Elvis diante do espelho que tinham na parte interna da porta do armário embutido da quitinete ensaiando o que seria a tal performance inspirada em Bernardo antes e depois do LSD. Elvis não assustou-se com a entrada de Miro, nem ficou constrangido, e nem ao menos tentou disfarçar, e isso foi o que o chocou tanto ou mais do que o resto da cena. Explicou-lhe que tratava-se de um misto de ensaio de uma manifestação artística com a adição da necessidade de extravasar uma parte da raiva que sentia com relação à maioria das pessoas, e que não conseguia parar de pensar em como seria sua vida caso conseguisse algum sucesso de público com sua banda. De Bernardo, ele imitava apenas os trejeitos e os olhos virados. Estava maquiado como um integrante de bandas de Black Metal Norueguês, parecendo de fato um ser saído de alguma floresta européia, branco como papel, mas em vez dos cabelos lisos e escorridos característicos daquelas criaturas, usava a peruca de King Buzzo que pertencia a Bernardo.

 

­_ Meu intuito não é só a arte pela arte. Sem dúvida quero que ela sirva como válvula de escape para o que sinto com relação à humanidade. Um efeito complementar aos entorpecentes e bebidas, que servem para consertarmos a maneira como nos sentimos com relação ao nosso meio. Eu tive um sonho maravilhoso, e devo admitir que caso consiga colocar em prática a metade do que me lembro desse sonho, aí entraremos para a história da região central da cidade. Lembro de estar encarnando, após o show de estréia da minha banda, o personagem que estou idealizando para liderá-la, e saí sei lá como do local do show materializando-me no apartamento dessa velha filha da puta aí do andar de baixo, e eu estava interpretando o que tinha feito minutos antes no palco, mas ao invés de ter comigo o Valente e o Brito, eu tinha como comparsas o Bernardo e o Pida. Bernardo dessa vez tinha tomado um ácido inteiro e estava ensandecido, e Pida tinha fumado várias pedras e estava inacreditavelmente fora de controle. Nesse sonho eu vi e senti a arte se sobrepor à vida, pois a velha já estava morta, e nós três continuamos a performance por algum tempo, como se na dimensão em que nos encontrávamos não houvesse polícia, pelo menos não do jeito como a conhecemos na vida real. Você entrou e eu estava acrescentando elementos das encenações de Pida e Bernardo à minha. Quero ser os três ao mesmo tempo quando estiver encarnando o ‘COISO’. Quando acordei daquele sonho, me senti confuso, porque na mesma proporção em que senti certo alívio por não ter que me desfazer do cadáver da velha, senti-me mal por saber que aquele encosto ainda existe, e que está aí embaixo com sua vida morta. Preciso retomar os planos para liquidar essa desgraçada.– disse Elvis

 

Miro:

_ Ela sai de casa cada vez menos. Eu acho que é por isso que a filha dela tem aparecido com mais freqüência. A velha se desloca com muita dificuldade para fazer compras. Se você conseguir entrar na casa dela sem que ninguém veja, se um dia ela sair novamente dos limites do sétimo andar, aí você pode providenciar algo.

 

Elvis:

_ Sim... Eu nem precisaria fazer a performance completa. Chamaria demais a atenção. É melhor guardar isso para os palcos dos becos onde formos tocar. Se eu entrar lá com o Pida, posso dar umas pedras pra ele e fazer com que ele as fume no armário, então eu vou embora e quando a velha voltar ela morre com o choque. Aí o Pida vai preso ou finalmente morre de overdose e a gente se livra de dois encostos de uma vez só.

 

 

9- All The Best Cowboys Have Chinese Eyes

 

Um mistério de dois anos se desfez para Miro e Elvis quando de repente descobriram a razão pela qual o chinês que era dono do bar que freqüentavam na Avenida Duque de Caxias conseguia estar atrás do balcão qualquer que fosse o dia ou hora em que algum deles passasse por ali. O detalhe é que esse bar funcionava 24 horas, mas o fato é que eram dois irmãos chineses, gêmeos, que eram os donos, e revezavam-se no comando do estabelecimento. Eram gêmeos tão extraordinariamente idênticos, que muitos dos bêbados que passavam dias e noites ali também não sabiam que se tratava de dois elementos.

Os gêmeos chineses simplesmente NUNCA trabalhavam simultaneamente, e de acordo com testemunhas, era muito raro alguém ver a troca de guarda que faziam. Ambos eram chamados de China pelos clientes. Praticamente não falavam português. Sabiam pronunciar o valor que os freqüentadores deviam ao levantarem-se para sair do bar. Havia uma particularidade naquele bar, que era o fato de, em pleno centro da cidade, os caras venderem doses bastante caprichadas de Ypióca, em copos americanos, por um preço bem abaixo da média. Elvis divertia-se pedindo sempre ao chinês que o atendia para que pronunciasse a palavra Ypióca, e isso os enfurecia. Os chineses também nunca revelavam seus nomes.Elvis tentou de todas as formas fazer com que contassem a ele.

Foi uma velha senhora de tristes olhos azuis, freqüentadora antiga do Bar do China, quem revelou aos dois que não era um só chinês que ficava o tempo todo cuidando do bar. Ela ouviu um comentário de Miro numa ocasião em que o bar estava cheio e eles sentaram-se mais perto dela do que de costume, e então ela riu e contou-lhes a real. Não raro, policiais perguntavam sobre o alvará de funcionamento do bar. Os chineses sempre safavam-se, talvez até mesmo por terem o alvará.

 

Miro:

_ Ainda me resta outro dilema insolúvel. Realmente não entendo a razão pela qual as pessoas insistiam em me dar bebida, a quantidade que fosse, no período em que eu estava me esforçando para parar de beber, ou para pelo menos manter as coisas sob controle. Às vezes eu atravessava a rua ou dava a volta no quarteirão quando passava perto do Bar do China, ou qualquer bar que abrigasse pessoas que me conheciam, nos dias em que realmente eu queria ou precisava passar sem beber. Nos dias em que eu realmente queria beber, ou nos últimos tempos, depois que voltei a beber com certa regularidade, não aparece um puto de um infeliz para pagar minha bebida. E alguns chegam de surpresa em casa quando tem cerveja na geladeira.

 

Elvis:

_ É o tipo de conspiração ao qual você já deveria estar acostumado. Há outros tipos que são bem mais ingratos e desagradáveis. Basta você deixar de dar uma de compreensivo e mandar as visitas comprarem mais cerveja.

 

Miro:

_ Lembra daquele Natal que passamos no Bar do China?

Elvis:

_ Sim, aquela senhora européia de olhos azuis estava lá, como sempre. Aquilo foi comovente pra mim. Eu poderia esperar de mim ou de você que passássemos um Natal no bar de um chinês que não fecha nunca. Mas aquela senhora merecia ter uma boa família. Eu sempre achei que nada poderia ser pior que uma família. Se a família é o núcleo e a célula essencial que dá forma à sociedade, então uma família não pode ser e não é algo bom. Mas eu sentia que aquela senhora gostaria de estar numa casa aconchegante cortando uma fatia de peru para seu netinho, e ela certamente teria uma garrafa de conhaque muquiada para dar uns tragos escondida dos outros familiares. Aí está o ponto: os familiares tornam-se um problema em um momento ou em outro, por uma razão ou por outra. Isso já foi discutido pelo Sartre e pela Simone de Beauvoir, na cama, na cozinha da casa deles, e o que deve ter rolado de café e tabaco nessas discussões ao longo dos anos, ah, isso deve ter sido até engraçado, e se as conclusões as quais eles chegaram não resolveu nossos dilemas, então podemos ficar tranqüilos e esquecer esses assuntos tão logo ficarmos com o saco cheio. O fato é que nós sim merecíamos aqueles momentos com os vagabundos indigentes que não saem do balcão do China nem na noite de Natal. Para pessoas como eu e você, isso é bem menos saudosista e melancólico do que ver velhos tios vestindo suéteres, nos dando uma nota de 50 quando já estão mamados.

Miro:

­_ É que a sua família deve ser burguesa. Você deve ser um fidalgo. Deve realmente ter uns tios com as grandes barrigas pra fora, bêbados e falando as maiores grosserias, com suas carteiras recheadas de notas para serem distribuídas para sobrinhos que penteiam o cabelo e tem cara de bons moços.

Elvis:

_ Você que é um burguesão. É um hippie metido a alternativo e oriundo da classe média paulistana. Eu conheci aquele amigo da sua família que é político. Aquele deve ser um picareta de marca maior.

Miro:

_ Ele é vereador. Um pequeno político, se comparado aos que tem poder mesmo. Ele é poderoso sob um outro ponto de vista, que é justamente o nosso. Tem um emprego rentável e não enchem tanto o saco. O que importa são as garrafas de uísque que ele pode beber, a renda fixa garantida e essas merdas burguesas todas. Ele não era meu parente. Na família dele, ele é o patrão do Natal.

Elvis:

_ Ah, não há dúvida que a gente vê quem é quem numa família na noite de Natal. Sempre tem mesmo o patrão do Natal nas famílias burguesas. Naquele Natal do Bar do China, seus parentes devem ter ouvido o patrão do Natal de vocês contando velhas histórias natalinas, de antepassados que deviam engravidar empregadas e escravas, querendo mostrar que hoje as coisas são diferentes e que hoje há muito mais dignidade. Enquanto isso você bebia Dreher e Nova Schin naquele bar imundo.

Miro:

_ O combo! Dheher e Schin! O patrão do Natal na minha família é meu avô. Eu não poderia deixar que ele ficasse magoado por eu ter me tornado algo tão distante do que ele imaginou. Só no Natal isso acontece. No resto do ano ele não se sente decepcionado com meu destino. Eu também não queria ouvi-lo contar as mesmas histórias, e é só no Natal que ele se enche de vinho, de modo que optei por ficar vendo o China lavando copos atrás do balcão ao invés de vê-lo na cabeceira da mesa, bêbado de vinho e com a camisa suja de molho, com minha avó o importunando.

Elvis:

_ Antigamente você parecia ficar mais constrangido com essas coisas sobre as quais estamos falando.

Miro:

_ Hoje eu chego até a pensar em entrar para a política. Quer dizer, não consigo mais desprezar essa idéia. Já não acho que seja algo tão repugnante. É como viver no Centro. É bom desde que haja uma adaptação adequada. Você faz o que precisa fazer na rua e depois fecha a porta de casa e uma vez ali dentro não importa qual é o bairro em que você está. Basta escolher um lugar em que seja possível deixar os problemas do lado de fora. Aqui isso é plenamente viável. Não envolver-se com política só por vergonha de estar no meio dos tubarões é estupidez. Quando você entra no elevador do seu prédio e puxa a porta por dentro para que não dê tempo de ninguém chegar e subir com você... Isso também é corrupção. Queria ter tempo para aproveitar mais a reclusão. Gosto de ficar em casa. Uma vez sonhei que havia aceitado uma candidatura a vereador por um partido rico de direita, que ajudaria de verdade na minha eleição. Se eleito, talvez nem mesmo mudasse do Centro. Eu não tenho mais pena do povo. Depois de acumular uma grana para viver de renda, poderia ir dormir só de manhã, todos os dias, quando todos estivessem saindo para trabalhar. Quero ficar deitado vendo noticiários mostrando ônibus lotados, aquele povo sofrido e amargurado, chegando ao trabalho esgotado. Aqui no Centro poderia ver isso pela janela. A massa acostuma-se às piores condições possíveis de transporte para ir ao trabalho. Acostumam-se ao convívio doentio e diário com milhares e milhares de humanos anônimos espremidos, por isso o comportamento dessa gente não tem limites no que diz respeito a enxergar que há pessoas reservadas e que dão o valor que a privacidade tem mesmo que ter. Talvez devêssemos supor que o mau gosto e a burrice das pessoas é anterior à falta de alternativas com que se deparam ao longo da vida, e essa precariedade do transporte público é apenas um exemplo de situação com a qual também temos contato. Sofrer diariamente com condução lotada e precária é algo que destroça a qualidade de vida do citadino médio. Os mais favorecidos tem meios de amenizar problemas com o deslocamento dentro da cidade.

 

O Bar do China ainda reservaria uma surpresa a Miro e a Elvis, que encontraram ninguém menos que a Irmã Nóia lavando o chão do estabelecimento numa manhã em que ambos voltavam do Toninho’s, onde Miro conferiu a apresentação dos Main Drags pela primeira vez, depois de passar semana s ouvindo Elvis falar deles. Miro não conhecia a Irmã Nóia em pessoa, apenas ouvia falar dela por Elvis e pelos vizinhos, principalmente pela velha Mazumi.

Parecia então que a velha Cracolândia voltaria a ter dias emocionantes, com a volta de Pida e da Irmã Nóia. Miro ainda não vivia no Centro quando essas pessoas aprontavam pelas ruas da região. Havia um porteiro em seu prédio, Jairzinho, um mulato divertido que já vendeu muito crack na Rua Aurora antes de empregar-se no edifício. Não fumava das suas pedras, era um profissional sério. Ele investia no potencial comercial do vício entre os jovens. Morou num hotel desgraçadamente ordinário na Barão de Limeira que abrigava traficantes e nóias e que foi lacrado pela polícia após uma operação de combate ao tráfico desenfreado. Era usuário apenas de maconha, que carregava em pequenas quantidades, para consumo próprio. Viu o Trio Calafrio na intimidade dos quartos de hotel da Cracolândia tramando coisas tenebrosas antes de ganharem as ruas. Viu a derrocada da Irmã Nóia desde o começo.

A imagem que Miro tinha da Irmã Nóia em seu imaginário não correspondia plenamente ao que viu naquela manhã. Antes de Elvis reconhecê-la e chamar a atenção de Miro para aquilo, estavam planejando voltar para o apartamento e comer pães com manteiga na chapa, pois Gladis tinha deixado um pacote de pão de forma e uma manteiga da boa para que tivessem algo para comer de manhã enquanto tomavam leite roubado. Os planos mudaram e juntando suas moedas, que aquela altura reduziam-se a migalhas, atravessaram a rua para entrar no China e comprar um cigarro solto para cada um e averiguar o que havia acontecido com a Irmã Nóia desde que todos por ali a perderam de vista.

A satisfação da garota ao ver Elvis aproximando-se surpreendeu Miro, que pensava que entre eles não havia qualquer tipo de proximidade que fosse além de andarem eventualmente pelas mesmas ruas. De fato Elvis já andava pelo centro para comprar e vender seus discos e livros. Nesses tempos mais remotos, antes da mudança de Miro para o centro, Elvis vivia em Taboão da Serra com sua mãe, e ao conhecer Miro constataram que tinham uma amiga em comum que morava em Itapecerica da Serra e que fazia festas em sua casa que duravam dias. Ali Elvis contava histórias sobre os nóias e as algazarras da Boca do Lixo, o que motivou Miro a pedir a seu pai que não alugasse novamente o apartamento para que ele mesmo pudesse viver ali.

Depois que atravessaram a rua e entraram no bar do China, Elvis apresentou um ao outro. Miro conhecia superficialmente a história de Irmã Nóia, enquanto esta nunca tinha ouvido falar dele, o que é perfeitamente natural. Mas a moça sabia que Elvis tinha falado dela para Miro. Sabia disso porque Miro foi apresentado a ela como ‘um amigo que mora no prédio da velha Masumi’. As faculdades mentais da Irmã Nóia ainda permitiam-lhe concluir que Miro foi morar ali quando ela já não estava mais vivendo nem trabalhando na Cracolândia. Recorreu por alguns segundos à sua memória defasada antes de ter para si que realmente não o tinha conhecido.

Dadas as circunstâncias de sua vida recente, a aparência da garota era razoavelmente boa. Uma boliviana de 25 anos que ainda seria bonita se não tivesse sofrido duros golpes da vida. Miro não se lembrava do nome da garota, só a conhecia pelo apelido, que era usado por terceiros para referir-se a ela em sua ausência. Não sabia sequer se ela tinha conhecimento do apelido de ‘Irmã Nóia’. Sabendo ou não, era algo ofensivo, e a moça parecia estar afastada das pedras há algum tempo. Naqueles quarteirões do Centro que ficaram esquecidos por décadas pela administração pública, os vizinhos e os funcionários do prédio de Miro funcionavam como uma rádio local que ficava no ar por 24 horas e que informavam sobre tudo o que havia de tenebroso e decadente sobre antigos e novos moradores. Miro conhecia Irmã Nóia somente pelas informações maldosas que vinham dessa gentalha.

Quando estavam se dirigindo a ela, Elvis não sabia direito o que faria caso fosse necessário chamá-la pelo nome, e não queria cometer a gafe de chamá-la pelo apelido sem querer. Já não dava mais tempo também de perguntar a Miro como deveriam chamá-la.

 

_ Miro e eu estávamos voltando de uma espelunca indie onde fomos assistir a uma banda que a gente gosta. Caralho, além dos Main Drags , assistimos a Cantora Tita, que chocou todo mundo ao fim do show, porque ela supostamente era uma cadeirante que foi carregada por dois caras até uma cadeira posicionada no meio do palco , onde foi deixada e cantou belas e tristes canções folk rock, que remetiam a Neil Young, Fairport Convention, Bob Dylan, Joni Mitchell e outros artistas do gênero, emocionando a platéia , que fazia uma puta zona e silenciou sem que ela precisasse pedir. O fato de ela parecer uma cadeirante e bonita, com cabelos loiros com cachinhos que escorriam até os ombros, fez com que a maioria das pessoas ficassem quietas e ouvissem as músicas da jovem deficiente. Ao final da última música, ela simplesmente levantou-se, agradeceu o silêncio, sacou de dentro de seu sobretudo uma pequena garrafa de uma bebida não identificável, deu uma grande golada, sorriu pela primeira vez e foi andando para trás do palco carregando seu violão. Foi brilhante.

 

_ Legal... Me chame da próxima vez. Seu cabelo cresceu, seu puto! Está com alguma banda? – Irmã Nóia perguntou a Elvis

 

_ Sim, mas não com esse cara aqui ao meu lado. Ele é um artista com grande potencial, mas tem se dedicado à literatura, não é Miro? – disse Elvis.

 

_ É verdade. Na literatura não há companheiros de trabalho. Não é como numa banda, onde outros caras tem que ter suas opiniões levadas em conta. – disse Miro.

 

_ Pois é, mas você pode ser um artista solo. – disse Elvis.

 

_ Um artista solo pode se apresentar sozinho no palco, realmente, o que é uma responsabilidade enorme, ter que preencher vazios que poderiam ser preenchidos por outros músicos. Pode tocar todos os instrumentos numa gravação. E há a artistas solo que tem banda de apoio, mas isso eu não faria. Teria que falar pra cada um dos caras: ‘Olhe, meu filho, eu quero que você toque assim, toque aquela parte de novo, até eu mandar parar....’; isso sem falar nos artistas solo que roubam idéias dos subordinados da banda de apoio. Se fosse pra ser assim, preferia ter uma banda ao invés de ser artista solo. Prefiro levar em conta a opinião dos outros caras e dar um nome à banda do que ter banda de apoio e dar ordens e botar mala de patrão. – disse Miro.

 

Elvis:

_ Sim, pode apostar que ter uma banda é bem mais legal que ser artista solo. Podem haver atritos criativos, o que é saudável para a produção musical. Evidentemente isso fere o ego de algum integrante que for mais chato. O Police era legal e o Sting na carreira solo é muito chato, e provavelmente isso acontece porque ele faz o que quer em seus discos, porque é ele quem assina. Não há a concorrência com os outros caras, que também escrevem músicas. Isso é um fator preponderante para a qualidade do trabalho, pelo menos quando se trata de Rock, porque sempre me pareceu que a coletividade é um ingrediente importante para a linguagem do gênero.

 

A conversa entre os três durou cerca de vinte minutos, até Irmã Nóia contar a Elvis e Miro que estava morando num hotel realmente barato na Rua Timbiras, onde ajudava na faxina, além de estar também fazendo serviços gerais no Bar do China logo cedo, quando a lei veta o comércio de bebidas alcoólicas e começam a chegar os trabalhadores que querem tomar café com leite e pão com manteiga na chapa.

O ressurgimento da Irmã Nóia na Cracolândia fez com que crescesse na mente de Elvis a idéia de dar um fim definitivo à velha Masumi. Nunca havia matado ninguém e àquela altura seu ódio estava quase transbordando. Seria melhor que fizesse algo minimamente planejado para eliminar alguém que realmente merecesse esse destino do que ter um surto em plena rua e matar um infeliz qualquer que esbarrasse nele e derrubasse sua cerveja.

Além da Irmã Nóia ser logo de cara uma potencial suspeita no caso da velha ser assassinada, a garota carregava seqüelas da época de consumo descontrolado de crack, o que poderia ajudar a incriminá-la. A ação criminosa poderia ser executada em parceria, já que Irmã Nóia também guardava rancor e ódio de Masumi. Com um serviço minimamente decente, a velha poderia ser dada como morta por causas naturais. Seria preciso fazer um tipo de abordagem à Irmã Nóia de modo que ELA propusesse por conta própria que matassem Masumi. Elvis apenas a induziria a isso com algum comentário sobre a velha e sobre os sentimentos ruins que tinham sobre ela.

Na noite seguinte à conversa que tiveram, Elvis foi novamente ao Toninho’s para tomar umas cervejas, planejando encontrar Irmã Nóia na manhã seguinte, quando estivesse voltando para a casa de Miro, que já era praticamente sua casa também, e ela já estivesse esfregando o chão imundo do Bar do China.

É curioso o fato de Miro sofrer mais com a existência da velha Masumi do que Elvis. Mas o instinto assassino do primeiro parecia menos agressivo que o do segundo. As parcerias que Elvis planejava buscar para essa empreitada não incluíam Miro, pois este provavelmente argumentaria que por ser proprietário de um apartamento no mesmo prédio do crime sua situação poderia ficar complicada.

Elvis considerava que o ideal fosse que Miro também entendesse que a velha teria morrido de causas naturais. De qualquer forma, os transtornos que a velha causava a Miro potencializavam o ódio que Elvis sentia por ela, pois ficava ressentido pelo amigo. Gostava de ter esse motivo extra para que o crime seja justificado. Elvis adorava pronunciar a palavra ‘crime’, porque até então tinha cometido apenas delitos leves, e isso era motivo de satisfação para ele, que gostava dos delitos, e gostava que estes fossem leves e sem tantas conseqüências. Em sua cabeça, já estava crescido o bastante para arriscar-se um pouco mais, e sentir-se satisfeito por ter ido além de não fazer filhos, não ajudar a foder com o planeta produzindo mais humanos, e ainda eliminando uma humana tosca.

De fato a Irmã Nóia estava trabalhando na limpeza do chão do Bar do China na manhã seguinte à noitada de Elvis no Toninho’s, que dessa vez foi até lá sozinho, para que encontrasse Irmã Nóia sem que Miro estivesse por perto, e assim pudesse tramar a ação criminosa contra a velha Masumi.

 

Elvis:

_Bom dia, minha filha!!! Quem diria... Ao que parece, está recuperada das pedras, trabalhando logo cedo...

 

Irmã Nóia:

_ Fala, Elvis! Você não trabalha? Só o vejo dando rolê no centro e fumando esses cigarros de pedreiro...

 

Elvis:

_ Trabalho com cultura. Sou livreiro e disqueiro. Poderia perfeitamente ser pedreiro também, mas compro e revendo livros e discos de vinil e isso é o bastante para que me sustente de um modo que considero digno. Eu leio os livros e ouço os discos antes de revendê-los, de modo que sou um comerciante culto e que ajuda as pessoas a melhorarem como humanos. Eu vendo esses artigos finos para pessoas que também são cultas, ou que querem se tornar cultas, e vivo satisfeito com isso, pois faço minha parte para tentar tornar esse mundo ordinário um pouco mais suportável. Claro que há altos e baixos nessa minha nobre profissão, mas vale muito a pena, por várias razões, principalmente porque posso andar pelo Centro e fazer meus próprios horários.

Irmã Nóia:

_ Sim, você é de uma categoria incrível mesmo.

 

Elvis:

_ Não seja irônica! Você pode até achar que eu não sou o sujeito mais exemplar da história da humanidade, mas há de convir que ajo pelo menos com o mínimo de classe e deveria ser reconhecido por isso. Estou dividindo apartamento com meu camarada Miro, ah , esse sim é um lord, um cara bem acima da média... E ele realmente sofre por ser um cara legal, porque as pessoas abusam. Aquela velha filha da puta para a qual você trabalhava perturba o Miro diariamente.

 

Irmã Nóia:

_ Foi a pior fase da minha vida. Eu espero que você não tenha comentado com seu amigo sobre o que aconteceu comigo, mas foi aquela velha desgraçada a culpada pelo meu deslize na vida... Afundei na droga por causa do pesadelo que era minha vida naquela quitinete imunda, naquele pombal que era o prédio em que ela morava..

 

Elvis:

_ Olha o respeito, minha filha! Eu moro lá também. Quer dizer, quem mora é meu camarada Miro. Estou dividindo o apartamento eventualmente.

 

Irmã Nóia:

_ Vocês são dois burgueses. Não quero ofender ninguém, mas vocês sabem disso. São dois fidalgos metidos nesse centro imundo apenas porque querem, gostam de ficar perto dessa marginalidade rasa. Acham bonito. Na hora que a coisa azeda aqui na rua, vocês vão pro apartamento e tomam cerveja e ouvem Rock.

 

Elvis:

_ Como era sua vida na época que trabalhava pra velha?

 

Irmã Nóia:

_ Porra!!! Você não acabou de falar que ela aterroriza seu amigo? Isso porque ele deve passar pelo sétimo rapidamente... Imagine o que é limpar aquilo, ajudar a velha a tomar banho, fazer comida, ouvi-la todo dia...

 

Elvis:

_ Eu a teria matado. Teria feito algo para parecer que ela morreu de velhice mesmo.

 

Irmã Nóia:

_ A idéia não é má. Aliás, eu tenho a chave do apartamento da velha até hoje. Sabia que um dia poderia ter alguma serventia.

Elvis:

_ Podemos entrar lá numa madrugada. Esse tipo de gente nos mata aos poucos. Já esteve viva por muito tempo. Na verdade sempre teve uma vida morta, mas ela perturba.

 

Irmã Nóia:

_ Se a matarmos podemos trazê-la aqui pro Bar do China. Eles me arrumaram esse emprego porque descobri que eles já usaram carne humana, especialmente o fígado, para alguns pratos. Ajuda a manter esses bêbados bebendo sem desmaiarem, sem entrarem em coma alcoólico. São receitas vendidas quase de graça, e os chinas usam o fato de não saberem português para que não tenham que explicar qual o tipo de carne usam. Geralmente são esses salgados aí do balcão que são feitos com ingredientes que você não acreditaria, não só carne humana. Em troca do meu silêncio me deram o emprego. Nem sei como estaria se ainda estivesse desempregada.

Elvis:

_ Os chinas vendem fígado humano?

­Irmã Nóia:

_ Sim, e as pessoas ainda ficam chocadas quando se fala que chineses comem carne de cachorro. A cozinha do bar dos chinas é algo inacreditável. Você só poderia conceber aquilo se visse de perto. Eu fico vendo os clientes comendo com entusiasmo grandes bifes de fígado com cebola, e geralmente pedem fígado depois da bebedeira, quando estão hipoglicêmicos de fome, e devoram com uma satisfação incrível.

Elvis:

_ Eu adoro fígado, mas nunca comi fígado humano. Se a gente levar o fígado da velha pros chinas, eu quero um bife. O dela eu faria questão de comer. Deve ser muito bom se for preparado com caldo knorr. Imagine só o ódio com o qual eles vão fazer a receita, se levarmos em conta a rivalidade entre Japão e China...

Irmã Nóia:

_ Não é só por causa do fígado humano que a cozinha dos chinas é bizarra. É muito suja também. Uma vez por semana eles mandam eu limpar a camada de gordura dos azulejos e isso me faz ter saudade da casa da velha Masumi. Fica uma camada de um tom muito peculiar de amarelo, com umas gotas grossas escorrendo... A diferença entre meu trampo atual e o antigo é que eu gosto de bares, deixo uma garrafa de conhaque ali à disposição e enfrento a dureza da vida com um pouco mais de facilidade.

Elvis:

_ Você ainda fuma pedra? Dá umas pauladas de vez em quando?

Irmã Nóia:

_ Parei com as pedras. Por quê?

Elvis:

_ Só perguntei por perguntar. Você parece mesmo ter parado. Está com uma boa aparência.

Irmã Nóia:

_ Eu ia morrer. Eu acordava jogada na calçada e as pessoas daqui da Cracolândia ficavam me olhando com desprezo, cuspiam... Perdi vários dentes por causa das pedras. Era muita foda. Eu ficava no meio desse exército de nóias que fica nas Ruas Guaianazes, Aurora, Gusmões, Vitória... Ficavam me bulinando, me batiam pra tentarem roubar minhas pedras. Rolava muita canivetada ali durante a noite, eu andava com uma faca que não tinha nem cabo. Quando me roubavam e eu ficava realmente descontrolada por causa da abstinência, me prostituía pros nigerianos, que invariavelmente me espancavam nos quartos desses hotéizinhos escrotos daqui das redondezas. Uma das coisas mais baixas que já fiz foi dar de quatro pra um nigeriano, que me desgraçava por trás, enquanto eu fumava uma pedra na lata e então rolou uma invasão dos tiras numa batida num hotel na Rua Vitória. Tomei borrachada dos caras e ainda fiquei feliz porque um tira gostou de mim, sei lá por que razão... quer dizer, ele mandou eu pagar um boquete, então considerei que ele gostou... Eu estava banguela por causa do crack, mais magra do que a Twiggy com fome, naquele tempo.

Elvis:

_ Meu Deus, você é banguela... Foi por causa do Pida que você mergulhou nas pedras?

Irmã Nóia:

_ Sim, aquele filho da puta aproveitou-se de um momento em que eu estava com o saco cheio da vida, mas pelo menos tinha alguma dignidade, pelo menos tinha comida e lugar pra dormir, e quando me vi já estava dormindo na calçada roubando, apenhando, fumando pedra, ficando banguela, correndo atrás de outra pedra, e roubando de novo, e isso não acabava nunca. Eu sei que não deveria voltar para o Centro, porque aqui fico vendo essa filha-da-putice dia e noite, é uma tentação do cacete.

 

Elvis:

_ É meio perigoso mesmo você perder o controle e voltar pra vida de nóia. Vamos nos concentrar agora em destruir a velha, porque pelo jeito ela foi uma das culpadas pelo seu vício, mesmo que ela jamais tenha comprado uma pedra pra te dar.

 

Irmã Nóia:

_ Ela tem mesmo uma boa parcela de culpa porque era muito filha da puta comigo, mas ela não tem uma vida. Ela é um naco de carne sem alma que se desloca debilmente dentro de seu cubículo. Eu acho que devemos fazer uma eutanásia.

 

Elvis:

_ Já que você tem a chave do apartamento dela, é fácil. O que você sugere que façamos? Você conhece a velha melhor que eu. Sabe o horário que ela dorme e tal...

 

Irmã Nóia:

_ Precisamos ter cuidado. Como farei pra entrar e sair do prédio sem que desconfiem? No outro dia a velha amanhece morta e na mesma hora vão saber que estou envolvida.

Elvis:

_ Deixa comigo! Só preciso da chave. Entro lá sozinho, se for o caso. Sua presença seria importante pra pegarmos coisas de valor, se houver algo.

 

Irmã Nóia:

_ Pois é, quero aproveitar que vai rolar essa invasão ali e roubar umas coisas que sei onde estão guardadas. Objetos antigos que a velha trouxe do Japão e que ela nem sabe que tem valor comercial. São coisas que ela guardou pelo valor sentimental. Bibelôs decorativos e utensílios domésticos bastante estranhos para ocidentais. Dá pra vender tudo na Benedito Calixto. Mas entrar lá vai ser osso. Tem vizinhos acordados o tempo todo.

As coincidências muitas vezes acontecem para conturbar a vida das pessoas, e aquela região específica do Centro é bastante propícia para que planos sejam destruídos por bobagens cometidas por pessoas das quais os envolvidos na trama nem sequer lembravam da existência. O fato é que Gladis passava do outro lado da Avenida Duque de Caxias quando avistou Elvis conversando com Irmã Nóia, e como dirigia-se ao apartamento de Miro para que lá encontrasse Elvis, decidiu não mudar seu itinerário. Foi para o apartamento e como já era de se esperar, encontrou Miro ainda deitado de maneira indolente, esperando pelo leite e pelo jornal, achando que a visita matutina era de Elvis.

Gladis sempre passa na padaria para comprar algo para comer quando visita seus amigos pela manhã, pois sabe como ninguém que aqueles dois sujeitos eram o tipo mais ordinário de vagabundos que se pode sonhar em conhecer. Ela sabia que a relutância deles em desenvolver qualquer tipo de instinto de auto preservação era irreversível. Até a marca dos cigarros que eles fumavam tinha que ser controlada por ela, fazendo com que fumassem marcas melhores e em quantidades aceitáveis. Em parte ela gostava disso, de sentir-se importante num ambiente que gostava e que nunca antes tinha podido freqüentar. Por outro lado sente-se responsável pela manutenção da vida de dois caras que para ela pareciam estar em extinção.

Ver Gladis logo cedo, de surpresa e com as mãos abananando foi quase um choque para Miro, especialmente quando ela entrou no apartamento falando sobre Elvis estar conversando com Irmã Nóia, que ela já conhecia há tempos. Gladis não o cumprimentou nem com bom dia quando ele levantou-se e abriu a porta a porta. Já tinha achado estranho terem tocado a campainha logo cedo, pois Elvis tinha a chave e era o único humano que o visitava de manhã. Miro levantou balbuciando palavras impossíveis de serem compreendidas por qualquer um que não fosse ele próprio, pensando que Elvis poderia ter perdido sua chave ou estar bêbado demais para conseguir usá-la. Chegou também a pensar que poderia ser algo pior, como ele ter sido pego roubando o leite e os jornais.

Miro pediu que Gladis se acomodasse e escolhesse alguma música para que o apartamento parecesse menos desolador naquela manhã, enquanto ela falava sobre Elvis, beirando a histeria. Até que escolhesse um disco nas prateleiras, Gladis falou incessantemente, enquanto Miro, do lado de dentro do banheiro com a porta aberta, escovava os dentes e ouvia. E eis que ela colocou ‘Meat is Murder’ dos Smiths na vitrola e Miro já tinha terminado de escovar os dentes, então fechou a porta do banheiro para cagar, e ela chegou junto da porta, sempre falando sem pausa nem para respirar adequadamente. Ele cagando e ela na porta falando de Elvis, queixando-se da insanidade do sujeito. Dizia coisas sobre a desconfiança que ela tinha de que Elvis pudesse virar um nóia a qualquer momento, e que naquele momento já tinha quase certeza de que essa previsão se concretizaria.

Gladis:

_ Aquele verme deve estar fumando pedra, deve estar comendo aquela índia nóia filha da puta! Vai pegar Aids e virar nóia, caralho!!!

Miro:

_ Eu não creio nisso, eu saberia com certeza. Nunca sumiu nada daqui de casa. Ele tem trabalhando, tem estado ocupado com as atividades normais dele. Ele apenas tem curiosidade sobre a vida dessas pessoas porque quer ser escritor e precisa de histórias pra contar. Ele quer tirar essas histórias da vida real. Eu também vim para o Centro atrás de bons temas literários, é natural que tenhamos alguma proximidade com essa gente tosca do Centro.

Gladis:

_ Ele é sem vergonha, porra! Gosta de literatura marginal porque gosta de ser marginal. Ele quer viver essa vida paralelamente à literatura porque quer que a arte justifique sua condição de marginal. Ele nunca escreveu nem uma redação. Não é igual a você, que pelo menos faz o mínimo pra se preservar da companhia desses infelizes. Ele gosta desse caminho para a limbose.

Miro:

_ Talvez ele não consiga ainda desvincular uma coisa da outra. Já disse para ele que adoro a Cracolândia só quando estou dentro de casa, quando sei que ela está fervendo aí fora, porque me faz sentir bem acompanhar sem me envolver muito diretamente. Ele demora mais pra cansar dessas ruas, mas não acho que ele vá virar nóia. Ele vê todos os dias e todas as noites como ficam esses porras desses nóias. As manhãs como essa são o melhor momento pra verificar isso, porque as crianças nóias ficam jogadas por aí, na frente das lojas, tomando vassouradas dos comerciantes que estão abrindo seus estabelecimentos.

Gladis:

_ Olhe, já me dirigi com ele pra cá, a pé, e constatei que ele prefere andar pelas ruas mais sujas e infestadas de nóias do que vir um pouco mais tranquilamente pela São João ou outra avenida. Ele gosta especialmente de ver um traveco que parece o Ace Frehley, do Kiss, que ficava fazendo ponto na Rua Guaianazes.

 

O traveco ao qual Gladis se referiu tornou-se lendário na região da Cracolândia. Seu nome verdadeiro era Gutemberg, mas era conhecido por Guta. Já travou verdadeiras batalhas contra nóias que várias vezes tentaram ocupar o quarteirão onde Guta e suas colegas faziam ponto. Também já foi atacada por playboys que passavam ali de carro e lhe atiravam sacos de lixo cheios de urina. Brigas com giletes de madrugada foram freqüentes em sua trajetória também, com muitos implantes de silicone industrial sendo perfurados, às vezes em prejuízo de Guta, e outras vezes em prejuízo de suas oponentes.

 

E o papo entre Gladis e Miro ia evoluindo para conclusão nenhuma. As suposições sobre Elvis estavam realmente todas erradas por parte de Gladis, até que Elvis chegou com Irmã Nóia e a surpresa pareceu grande para os quatro humanos envolvidos. Naquele momento Miro terminou de cagar e ainda dentro do banheiro, pensou logo no primeiro segundo em que ouviu a chave entrar na fechadura que deveria ter desconfiado minutos antes que esse tipo de situação do qual reclamamos sem estarmos realmente arruinados sempre pode ficar pior. Lamentou-se no segundo seguinte por não ter feito essa previsão e no terceiro segundo já estava resolvendo que iria tomar banho antes de ver de perto o que aconteceria na sala, ainda que milhares de discos de vinil estivessem sob risco iminente de virarem discos voadores e pedaços estéreis de plástico preto.

Elvis tinha tomado banho na noite anterior, antes de sair para o Toninho’s e certamente deixou o box aberto, inundando o banheiro, certamente pensando que Miro não acordaria cedo o bastante para ver toda aquela água, mas ali estava Miro levantando-se para levantar a calça que estava bastante molhada, e no momento em que o primeiro grito foi emitido por Gladis (‘Seu filho da puta, você está comendo essa nóia!!!!Filho da puta!!!’), Miro gritou também: ‘Elvis, mantenha o controle sobre a situação, porra!!!’.

Saiu do banheiro com a calça molhada da água que escorreu do banho de Elvis, e isso só não era mais ridículo naquele momento porque o contexto era ainda pior. Ele tinha em casa duas mulheres sem que estivesse comendo nenhuma delas, e nem sequer podia supor o que seu amigo tramava. Até porque o que quer que fosse que Elvis estivesse tramando, não poderia imaginar que encontraria Gladis ali esperando por ele, nem que Miro estivesse com sua calça encharcada por sua causa. Era mais uma prova de que as coisas podem sempre piorar sem que ao menos possamos imaginar o quanto ou o porque.

O fato é que Elvis viu-se em maus lençóis porque sabia o quanto Miro ficaria grilado com escândalos em seu pequeno apartamento, pois este passou toda sua vida criticando a falta de classe de gente que por qualquer que fosse a razão perdesse a cabeça a ponto de gritar palavrões. Tramar a morte de uma velha imigrante abandonada à própria sorte não é exatamente a coisa mais fina que se pode conceber. Elvis não conseguia imaginar algo convincente para dizer para Gladis e para Miro naquele momento, e teria que ser algo que convencesse ambos ao mesmo tempo sem que houvesse qualquer comprometimento. Era preciso pensar rápido ou ficar calado esperando que as coisas se resolvessem sozinhas, o que era pouco provável. Elvis aproveitou para ganhar tempo gritando ‘Agora sou eu que falo!!!’ e na verdade apenas esperou que ninguém dissesse nada enquanto pensava em algo minimamente inteligente para remediar a situação, ou ao menos para que ela não ficasse pior.

Elvis fracassou na tentativa e Irmã Nóia finalmente soube de seu apelido por intermédio de Gladis. Miro e Elvis não sabiam se Irmã Nóia tinha conhecimento de seu apelido. Puderam então constatar que a garota não sabia, pelo fato de seu período de entorpecimento ter sido realmente pesado, tendo mantido a moça alheia a assuntos que não fossem relativos à busca incessante de mais e mais pedras. Quando ela resolveu que tinha que deixar isso tudo de lado, não manteve contato com aquelas pessoas nem com aquelas ruas, de modo que deixou para trás um apelido que nem sabia que tinha.

Gladis:

_ Por que você jogou sua pouca dignidade fora? Pegar a Irmã Nóia é algo baixo demais...

Irmã Nóia:

_ Irmã Nóia o caralho, sua pângua!!! Eu amasso a sua cara!!! Isso é uma referência ao fato de minha mãe ser uma beata? Eu nunca freqüentei a igreja...

Gladis:

_ Esse apelido não fui eu quem escolheu. Eu não sei o porquê da palavra ‘irmã’, só sei o porquê da palavra ‘nóia’...

 

Naquele momento Miro finalmente interveio. Sabia que esse esforço era equivalente a enfiar a mão numa privada entupida para tirar um maço de cabelos que em meio à merda entupia o cano. Sabia o quão desagradável era a missão, mas era algo extremamente necessário, e de quebra teria condições de evitar que esse tipo de episódio se repetisse em sua casa e em sua vida.

 

Miro:

_ Nunca tive qualquer benefício sexual com a presença de vocês duas no bairro, de modo que quero pelo menos não ter que me rebaixar ao ponto de impor autoridade, porque esse é o tipo de coisa que já deveria estar subentendida por vocês há muito tempo, sem que eu precisasse levantar a voz, ou agir como se fosse um policial tentando coibir o caos que é a Cracolândia!

Gladis:

_ Você não é um policial, mas agora está tendo que lidar com uma nóia dentro de sua casa, que está sendo traçada por um amigo próximo, que come caldo knorr e fuma dois maços de derby todo dia.

Irmã Nóia:

_ Desgraçada, vou te pegar à noite aí na rua com um estilete enferrujado e ninguém vai sentir sua falta. Só o Elvis, que fuma Derby e come caldo knorr com o dinheiro que você dá pra ele.

Elvis:

_ Vão se foder as duas, porra!!! Meu amigo Miro não merece passar por isso, e eu tenho minha consciência relativamente tranqüila porque sei que quando vocês saírem daqui terei como consertar essa situação ridícula, e quanto ao fato de eu fumar Derby... Porra! Foda-se isso!! É com o MEU dinheiro!!! Ninguém me dá um puto furado!!! Eu trabalho no mais honrado dos ofícios!!! Sou livreiro e disqueiro!!! Trabalho com cultura e como caldo knorr porque quem trabalha com cultura nesse país ribeirinho só se fode mesmo, mas eu estou disposto a não desistir!!! Vocês estão vendo essa prateleira maravilhosa cheia de discos raros? Perguntem a meu camarada Miro quantos desses discos ele comprou de mim!!! Nossa amizade é inabalável, e vocês seriam esquecidas em dois segundos caso fossem escurraçadas daqui por justíssima causa. Devemos nos lembrar imediatamente que jamais qualquer uma das duas conseguiria encontrar pessoas tão distintas como eu e meu amigo Miro, e ainda teriam que enfrentar o resto dessa melancólica existência de vocês amargando a vergonha de nos importunar com a falta de classe da qual nem mesmo eu e Miro conseguimos tirar de vocês. Vocês tem que saber que nós não temos ilusão alguma quanto a isso. Não temos o poder de mudar pessoas pra melhor. Elas não tem inteligência nem discernimento para mudarem, e o que podemos fazer é dar exemplos. Quando perdermos realmente a paciência faremos um pequeno escândalo para tirarmos vocês duas daqui, e continuaremos com nossas vidas, e assim que essa porta se fechar depois da saída de vocês, daremos risada da situação, ou talvez nos lamentemos pela coisa toda ser assim, tão baixa e irreversível. Ouviremos vocês dizerem que somos desumanos, e isso vai soar como o elogio mais glorioso que poderíamos ouvir, porque há tempos que nos sentimos constrangidos pela nossa condição humana. O mais curioso é que vocês não tem discernimento nem para unirem-se. Gladis, minha filha... Você gosta de rock e deveria reconhecer que a Irmã Nóia é a uma das garotas mais rock que você já conversou. Ela desceu para o inferno e não voltou mais. Irmã Nóia, você deveria unir-se à Gladis para manter-se afastada do crack, porque ela também teve muitas aflições da vida e também manteve-se perto da Cracolândia, em meio a traficantes e nóias sem jamais ter sucumbido ao uso dessa droga tosca. No entanto, no primeiro dia em que foram colocadas frente a frente pelo destino, já criaram divergências que ocasionaram essa discussão estúpida que estamos tendo agora.

 

São esses desvios do acaso que fazem com que os quase mortos consigam se reerguer, ou ao menos continuarem respirando, ainda que moribundos, com sérias dificuldades, e a velha Masumi já estava no lucro pelo fato de a pauta sobre sua eutanásia ter caído com a invasão de Gladis à casa de Miro e ter gerado logo a seguir a ridícula discussão apresentada acima. Depois de uma vida longa e sem qualquer sentido, a velha foi favorecida pela falta de seriedade de seus potenciais algozes.

A velha tinha ainda uma carta na manga. De fato era cautelosa com Elvis porque sua intuição funcionava quando se tratava de instinto de auto-preservação. Sabia que Elvis era uma ameaça caso houvesse uma aproximação entre eles, principalmente se a iniciativa partisse da própria Masumi. Ela sabia que isso serviria de justificativa para que Elvis desse cabo da vida da velha, ainda que fosse de maneira suicida para ele. Mas resistir para não abordar Elvis no corredor ou na escadaria do prédio era um sacrifício grande para a velha, que esperava pelo momento mais propício. Ela queria mostrar para ele que tinha um olho de vidro.

Irmã Nóia pediu a Elvis que a levasse até a rua, e com a demora do elevador, foram pela escada, mesmo sabendo que Masumi poderia estar ali no andar debaixo, e veria os dois juntos, o que seria um desastre para os planos de dar fim a ela. Quando Elvis fez menção de desistir de descer de elevador, e dirigiu-se às escadas, Irmã Nóia segurou-se por alguns segundos, mas seguiu-o. Desceram os primeiros degraus e podiam ouvir a velha praguejando logo abaixo, mas seguiram descendo. Elvis teve alguns segundos para pensar que mais uma vez passaria por ali sem ser abordado. Queria ver qual a reação da velha ao vê-lo com Irmã Nóia, e desejou que fosse abordado, o que de fato aconteceu com ineditismo.

 

_ Você, você!- disse Masumi ao ver Irmã Nóia.

Seguiram-se alguns segundos de silêncio e a velha apontou para Elvis e disse:

_ Você também!!!

 

Masumi gesticulou para que entrassem em seu apartamento.

 

_ Eu enxergo pouco e só posso comer vegetais bem cozidos. Olhem só como eu sou de verdade!- disse a velha Masumi, tirando o olho esquerdo, que era de vidro, e sorrindo sem a dentadura, com as gengivas cheias de chagas com pus seco.

 

Elvis, que pensava ter estômago e fígado para qualquer coisa com que se deparasse na vida, tombou desmaiado, atingindo Irmã Nóia com a cabeça na altura da cintura, e ela, por sua vez esbarrou num bibelô japonês em formato de cachorro. Era um objeto feito com um tipo de cerâmica grossa, que ao cair, rachou sem espatifar. Foi trazido do Japão décadas antes, o que fazia com que Irmã Nóia, desde quando trabalhava na casa da velha, imaginasse que tivesse um valor econômico interessante.

 

_ Você está tramando pra me derrubar com esse filho da puta, né, sua boliviana do inferno? Você não tem gratidão! Fuma pedra na rua!!! Eu vi você na rua fumando pedra!!! Você também é banguela, sua boliviana!!! E se me desafiar vai ficar com olho de vidro também!!! Vá embora agora, que eu vou dar um trato nesse animal aqui!!! – disse Masumi.

 

O que aconteceu depois foi demais para Elvis, que voltou à consciência com a velha lhe bulinando. Ela não fazia sexo desde a morte do marido. Desde então não tinha nem ao menos visto um pênis. Tentava fazer com que ele tivesse uma ereção mesmo estando desmaiado, masturbando-o e chupando-o. Elvis acordou e desmaiou de novo, com o pau todo babado e a velha sorrindo diabolicamente e falando obscenidades que o deixaram chocado. Ela segurava seu pau com uma mão e massageava sua próstata com a outra. Elvis teve um início de ereção antes de desmaiar pela segunda vez.

 

_ Você pensava que ia escapar... O Miro também está tentando escapar... Ah, eu precisava de um pau brasileiro, bem gostoso... Fique duro, gatinho, vai, bem duro e gostoso e todo melado... – disse a velha Masumi.

 

Ela passou a massagear apenas a próstata de Elvis, provavelmente com alguma técnica oriental milenar. Tinha como efeito apenas uma meia ereção e como Elvis tinha transado na noite anterior e não tinha lavado o pênis, sua glande estava com uma grande quantidade de porrite acumulada. Espasmos no corpo de Elvis eram a única manifestação de vida que o pobre rapaz demonstrava. Ele acordou mais uma vez para que finalmente a velha dissesse:

 

_ Seu brasileirinho jovem... meta no meu olho!!!!! Preencha o vazio do meu olho com esse cacete brasileiro!!!

 

Ela tirou o olho esquerdo e com a língua gesticulou insinuando estar querendo lambê-lo no pau e nos bagos enquanto ele estivesse penetrando a glande onde deveria haver seu globo ocular. Elvis desacordou novamente, e sua meia ereção baixou. Masumi então constatou que Elvis estava morto. Com uma espátula, tirou o olho esquerdo do rapaz. Foi ao banheiro, posicionou-se diante do espelho e colocou o olho de Elvis no buraco que era ocupado pelo olho de vidro. A velha tinha um fogão de duas bocas. Colocou óleo para ferver e foi ao banheiro. Olhou novamente no espelho para certificar-se que com seu novo olho esquerdo lembraria sempre de Elvis enquanto vivesse. Sorriu. Abriu a gaveta do lado direito da pia e tirou uma tesoura de cabelo. Voltou à sala, cortou o saco de Elvis, retirou os seus bagos em meio a um pequeno rio de sangue e colocou-os para fritar.

Abriu uma garrafa de saquê que guardava numa cômoda da sala. Esse saquê estava lá para ser servido às visitas que ela nunca teve. Colocou dois dedos da bebida num copo americano, cheirou-a e bebeu numa golada só. Voltou à cozinha, pegou um prato, cobriu-o com uma folha de papel toalha, e com um garfo tirou de dentro da frigideira cada um dos bagos de Elvis, colocando-os sobre o papel toalha que revestia o prato. Serviu mais uma dose de saquê enquanto o papel toalha absorvia a gordura dos bagos de Elvis e voltou à cozinha. Esperou que os bagos esfriassem um pouco. Comeu um deles com o garfo, tomou metade do saque que estava no copo. Comeu o outro bago e em seguida terminou de tomar a dose de saquê.

 

Enquanto isso, um andar acima de onde Elvis estava sendo bulinado e morto, Miro pensava estar infeliz por que percebeu que o zumbido que o perseguia nos dois ouvidos era realmente crônico, e começou a sentir medo de enlouquecer. No entanto, percebeu que o custo-benefício de algumas marcas de uísque envelhecidos por oito anos era bastante favorável em alguns pontos de venda. Pensou em adotar o Grant’s ou o Black and White como a bebida oficial de seus finais de semana.

Irmã Nóia tinha ido para a rua assustada e agitada, disposta a morrer de tanto fumar pedras, só para não ter que lembrar novamente de Masumi e de todo o resto de seu passado. Já não havia perspectivas para aquela garota boliviana, que era banguela e viciada, a não ser trabalhar no bar dos chineses, que não fecha nunca. Sabia que ali sucumbiria ao crack novamente. Ainda era cedo demais para comprar pedras, só havia nas ruas o reflexo dos danos sociais da noite anterior, com nóias caídos nas calçadas, muitos deles sendo removidos a golpes de cabo de vassoura pelos comerciantes. Irmã Nóia viu um que parecia estar morto, porque não acordava nem a pauladas. Tinha no máximo 15 anos, e vestia só um short de futebol, daqueles antigos, com listas laterais, e seus bagos estavam expostos. As manhãs no Centro eram deprimentes para quem tivesse que sair apressadamente para trabalhar e mais ainda para quem não tinha emprego ou era um viciado em crack que resistiu a mais uma noite.

Pida estava dormindo num hotel no Largo do Paissandu naquela manhã. Tinha umas rochas com ele, compradas com o dinheiro que deveria ser usado para pagar o quarto. Enquanto tivesse alguma pedra para fumar, estaria tudo bem. Depois, com a luta pela próxima pedra, a derrocada começaria novamente, e seria preciso dar um jeito de sair do hotel sem ser visto. Mas ele ainda estava vivo.

Brito e Valente já tinham providenciado respectivamente a guitarra e a bateria dias antes para unirem-se a Elvis e darem início à reformulação do rock brasileiro. Bernardo estava mais magro e quando estava acordado repetia ‘Beerrr-nnaaarrr-dooo, Beerrr-naaarrr-dooo!!!’ em seu quarto de pensão.

No bar do China trabalhadores e vagabundos misturavam-se, alguns com copos de café com leite e pães com manteiga na chapa, outros com copos de aguardente e torresmos com pêlo. No supermercado 24 horas da Cracolândia os seguranças estavam atentos para evitar roubos, em plena manhã, de viciados terminais que perambulavam ali antes que pudessem efetivamente conseguir a próxima rocha.

Os Main Drags lançaram o álbum All Beat Cons, que imediatamente virou um clássico da música alternativa. Permaneceram no underground, pois cada um de seus integrantes dava prioridade a seus projetos individuais, que estavam ligados a diferentes áreas artísticas, como literatura e artes plásticas.

O verdadeiro Elvis não foi grandioso o bastante para fazer com que o cotidiano da Boca do Lixo mudasse. Não viveu o bastante para salvar o Rock brasileiro. Por aquelas ruas, foi esquecido com a mesma rapidez com que entrou em cena.

Herbert, o carteiro legal, entrou no prédio de Miro pouco antes do meio-dia levando as contas de luz dos moradores dali e as deixou com o porteiro Jairzinho, para que ele as distribuísse nos apartamentos. O combinado era que a partir daquele mês Elvis dividiria as contas de luz com Miro.

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Atualizado em: Ter 25 Maio 2010

Comentários  

#4 Arnoldo 31-01-2012 20:19
Muito bom seu texto, ir a cidade só para comprar livros e discos seria bom demais.Parabéns
#3 xxxxx 25-05-2011 16:53
Caro amigo. Acabei de ler a sua fábula, (FABULOSA). Esse é o tipo de leitura que aprecio.
Beijobom, Ton.
#2 master22 25-04-2011 16:31
Pequenas histórias ,engraçadas e bem narradas.
Parabéns
#1 GeraldoJCostaJr 14-06-2010 11:34
Excelente literatura de entretenimento. Merece ser lida.

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