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A relevância do papado

Séculos atrás este título poderia render prisão, tortura, morte e excomunhão (na versão branda da sentença): hoje é uma realidade trivial mas nem por um momento achemos que isto foi obra de epifanias morais da igreja - foi sempre o resultado de uma busca secular por liberdade de expressão. Embora o poder da Igreja Católica venha diminuindo ao longo dos séculos, nem sempre isto acontece em favor do secularismo (embora este seja o caso da Europa e América do Norte). Na américa latrina, bem como na Ásia, este declínio acompanha a ascensão das igrejas pentecostais e evangélicas ou seja, só muda o CNPJ do poder. Voltando ao caso dos católicos, como este poder é exercido (sem dúvida, já se foi o tempo em que isto era feito com cavalos e cruzados)? Dias atrás vi um pastor na TV explicando porque era um delito vergonhoso abster-se do dízimo e de alçar ofertas (sublime argumentação) mas esta não tem sido a estratégia católica preferencial. Então, como e ainda, porque?

No cerne da religião católica (também de várias outras) está o medo e a culpa, cultivadas como valor por séculos, saboreadas como prato principal em vários feriados pagãos requentados e sequestrados. Em um esquema sabiamente denominado rebanho, aprendemos nossa posição de submissão, nossa incapacidade de encontrarmos nosso caminho e nossa eterna dependência do sábio tribal capaz de ler as escrituras e destilar a sabedoria ali presente, aplicando-a a nossas vidas e resolvendo nossos problemas, de certa forma análogo a um casamento falido do qual você tem medo de sair. Mas você foi exposto a estas ‘verdades’ desde a infância e já não questiona mais a arca de noé. O maior patrimônio do Vaticano não é seu famoso banco, nem o ouro de suas catedrais em Roma e mundo afora (como bases militares americanas): é o respeito dogmático à doutrina, presente em bilhões de corações humanos (até porque ainda não conheço nenhuma IA católica). Este é o real poder que materializou as cruzadas, que fez pessoas boas matarem e morrerem, por ideias, pela cor da pele, pela cor do uniforme. Reservemos esta ideia para mais tarde e foquemo-nos agora no ponto central deste texto: qual a relevância do papado nos dias de hoje? Qual influência ele tem sobre os reais acontecimentos extra mūrus Vaticanōs?

Filantropo Benigno é um político de expressão nacional e busca ganhar as próximas eleições. Sua carreira política incorpora frases de efeito, como “Eu acredito que gays também são pessoas” ou “Devemos ter clemência por aqueles que decidem desafiar a moral e contrair matrimônio do mesmo sexo” e “Precisamos impedir, de todas as formas, que as pessoas na África e em qualquer lugar tenham acesso a preservativos - embora as crises de Aids e aumento descontrolado da população sejam tragédias concretas”, “Peço perdão por ter molestado aquelas crianças por tantos anos mas agora vamos em frente!”. Possivelmente você não votaria em Filantropo Benigno, por achar que sua visão de mundo é retrógrada, preconceituosa e limitada: colocar poder nas mãos de uma pessoa assim pode ser muito perigoso. Voltemo-nos agora para Papa Francisco: é tosca a ideia de debater se integrantes da comunidade gay podem ter acesso aos bancos das igrejas: é, no mínimo, uma visão atrasada em 20 anos, que não agrega sabedoria de nenhuma forma. O que faz deste argumento atrasado e simplório algo digno de ser ouvido? O argumento comumente evocado é que as palavras do papa tem importância pois vem de dentro de uma instituição antiga, que precisa de reformas mas que luta contra interesses internos mais conversadores. Francisco, assim, lutava para conseguir esta reforma e, neste sentido, estava fazendo um ótimo trabalho. O argumento é perigoso pois é só transferir estas ideias para um discurso do presidente da KKK (também uma instituição antiga) e tentar buscar valor na perspectiva de que ele estaria buscando reformar a instituição. Então, se o argumento não tem valor em si e, pela via institucional ele demonstra as rachaduras de sua edificação moral, então porque damos ouvidos a estas frases? Porque elas ecoam tanto, até nos eulógios de políticos de expressão mundial? Porque no caso da igreja somos incapazes de perceber a real rasura das propostas? Não ouvimos do Vaticano qualquer orientação realmente útil, nenhuma proposta que não tenha já sido proferida anos atrás, só ouvimos evocações, exortações e desejos que, quando examinamos em detalhe, carecem de significado, praticidade e sobretudo estratégia.

Instituições baseadas em medo não devem ser reformadas: devem ser abandonadas. Reformar um templo destinado ao controle é só dar nova tinta ao cárcere. Buscar ouvir o que você já sabe e concorda é fazer como fazem os algoritmos das redes sociais: é fomentar o viés de confirmação. Tentar desnudar o discurso de seus floreios e localizar seu real conteúdo (se houver): esta é a estratégia que nos permite avaliar se há, de fato, valor, sabedoria, inteligência nas palavras ou se simplesmente estamos infantil e artificialmente atribuindo estas qualidades ao pastor do rebanho. E se você encontrar estes valores e eles fizerem sentido para você, tanto melhor. Se não fizerem, redirecione sua pira de sacrifícios para outra divindade, para a natureza, para um ideal, para sua comunidade, para vocês mesmo, para um secularismo esclarecido e não vingativo. Usar este decurso para filtrar discursos de políticos também pode lhe salvar alguns anos de sofrimento.
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Atualizado em: Sex 9 Maio 2025

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