- Artigos / Textos
- Postado em
A culpa é do consumidor
O capitalismo é ubíquo, desde os mercados da China, passando pela Europa oriental e até as alturas do Himalaia e por vezes perpassa de forma tão profunda nossa sociedade que não percebemos sua presença, confundindo-a com a percepção de que a vida é assim mesmo. Não é. Uma das mais marcantes características deste arranjo é uma ligação nem sempre clara e direta (embora sempre existente) entre oferta e demanda. Tirando poucas exceções que confirmam a regra, a ordem ‘natural’ dos eventos é que uma demanda se faz presente, em número e intensidade e mediante a criação de um negócio de risco, uma parte pequena da sociedade tenta fabricar produtos ou fornecer serviços para satisfazer aquela demanda. Assim que isto é feito, tal empreendimento tem uma forte influência sobre a demanda, uma vez que controla não somente preço como produção, podendo equilibrá-la de forma a maximizar seus resultados. Não demora, entretanto, para que outras empresas percebem nesta cena uma oportunidade e lancem-se também na contenda - de preferência respeitando direitos intelectuais e patentes mas tentando abocanhar uma fatia deste mercado e isto confere mais equilíbrio ao processo, regula preços, promove avanços. As exceções são os produtos cujo projeto sai da genialidade de seus criadores e a demanda é criada ex-post-facto. O inverso também é verdade: a igreja católica medieval não parou de caçar bruxas porque teve uma epifania moral: o fez porque a população gradualmente começou a não apostar no processo, a questionar seus métodos e resultados. Novamente, a demanda (neste caso sua ausência) moldou a oferta mesmo que o processo possa ter sido demorado.
Obviamente, o processo não é perfeito: a recessão econômica somada à humilhação do povo alemão na Primeira guerra mundial forjou uma demanda por um líder carismático capaz de massagear o ego sofrido de um povo que se lançou na perigosa jornada de apostar no populismo. Mesmo assim, o mecanismo é claro e poderoso: como a energia atômica, por exemplo, que pode se prestar a objetivos nobres ou não - depende da demanda. O processo também pode ser mais sutil ou seja, não precisa envolver a criação de um produto ou serviço: a demanda pode influenciar intensamente um produto que já existe, forçando seu fabricante (que busca sucesso na sua operação) a adaptá-lo com o objetivo de agradar a clientela. Não há nada de errado nisto mas como uma trupe de cegos caminhando em fila indiana em direção a um penhasco, talvez seja interessante refletir um pouco mais sobre esta dinâmica. Usemos os partidos políticos e o incestuoso fundo partidário: quase todos os partidos usam este caro recurso para apresentar a ideia de que aumentar a participação feminina na política é uma missão de alta criticidade e urgência, passando na frente de velhas e fundamentais demandas da sociedade (como transparência no trato que os políticos dão a assuntos de interesse nacional: o velho toma-lá-dá-cá). Não, repentinamente, o ‘problema’ da política é a representação desigual dos gêneros, que deve ser ‘resolvido’ disponibilizando mais candidatas (similar à antiga injustiça social da baixa representação masculina na área de Enfermagem). Na minha opinião, nada mais longe da verdade mas aparentemente esta é a última coisa que realmente importa: o que importa é que a massa cativa de eleitores de fato acredita que esta visão aparentemente progressista é a saída para algum problema e são exatamente os interesses desta massa bovina que formatam o discurso dos partidos, que se apresentam como mensageiros da vox populi. Mas não se pode perder a perspectiva de que o processo inicia-se na formação desta opinião pública: os políticos simplesmente repetem os lamúrios que ouvem quando seus asseclas descem ao plano terreno para escutar o que a patuleia está falando.
Além deste existem inúmeros exemplos, que vão de carros a roupa íntima, projetos turísticos, programas de governo, provedores de internet e padarias. Enquanto povo, gostamos de ouvir nossas ‘verdades’ repetidas na voz das empresas que nos prestam serviços; enquanto empresas, elas não se importam de gargantear tais ‘verdades’ se veem que isto aumenta as vendas. Um exemplo digno de nota foi a United Airlines que, em 2021 anunciou que iria formar 5000 novos pilotos, sendo que 50% seriam mulheres, negros, indígenas ou outras etnias sub-representadas. Embora acredite que a empresa tenha feito isto pelo poder mercadológico da ação (e a implícita tentativa de agradar a classe consumidora), o tiro saiu pela culatra no sentido de que parte desta classe horrorizou-se com a estratégia de priorizar a diversidade sobre a competência. Se nos USA 6% dos pilotos são mulheres (me recuso a digitar ‘pilotas’) é matematicamente impossível que neste pequeno universo seja possível encontrar uma quantidade de profissionais com o mesmo nível de capacitação que nos restantes 94%. Como consequência, as mulheres contratadas terão uma qualificação menor, da mesma forma que se um hospital quiser contratar 5000 enfermeiros (50% homens e 50% mulheres), a menor disponibilidade de profissionais masculinos fará com que estatisticamente, estes sejam menos qualificados.
Então hoje somos reféns de uma doutrina politicamente correta, pós modernista, que tudo entende, que é o molde da sociedade atual e que serve de referência para os produtos que as empresas oferecem. É um processo (longo e tortuoso) que esta sociedade revise estes entendimentos e destile uma métrica nova, uma nova forma de encarar certas situações: uma versão moderna de perder o interesse em queimar bruxas. Com certeza, os meios de comunicação também tem um papel importante neste processo, no momento em que participam da mesma dinâmica e, como espelhos, vão tentar refletir os valores e desejos que entendem que o tecido social tem. O loop se fecha e a realimentação positiva reforça e incentiva tais valores. Até que pessoas comecem a morrer. NHS (o SUS inglês) recentemente decidiu parar de subsidiar tratamentos hormonais para mudança de sexo em crianças e adolescentes por entender que não existem estudos científicos de respeito que possam atestar que existam benefícios que superem os problemas e os traumas do tratamento, embora muitos tenham se oposto a esta visão ‘conservadora e preconceituosa’. Um movimento importante para influenciar esta demanda, paulatinamente resgatando valores que serão, ao seu tempo, refletidos pelas empresas em seus produtos. Uma importante gota em um oceano, mostrando que o processo pode mudar: depende dos consumidores.
Atualizado em: Dom 20 Abr 2025