- Artigos / Textos
- Postado em
O reconhecimento do passado nos libertará
Não acredito que exista um país ou sequer um extrato da história de um país na qual não tenham sido tomadas decisões ruins, por vezes imorais, inadequadas, enfim, que não serviam ao bem e à prosperidade de seu povo, por vezes por incompetência, por vezes corrupção, falta de estratégia e até mesmo falta de acesso a informações de qualidade. No caso do nosso pequeno brasil, peguemos a escravidão como exemplo: em certo intervalo da história, a ideia de escravidão em larga escala não somente era admitida: tinha até uma couraça de justificativas filosóficas, aval expresso da intelectualidade nacional e estrangeira, bem como a anuência do clero. Foram necessários muito anos, mudança econômicas, das práticas de consumo, tecnologia e variados eventos em escala global (cujos detalhes vão além do escopo deste tímido textículo), para que a ideia fosse, de início, colocada à prova, testada em seus limites éticos e validada em sua proposta econômica. Por mais longo que tenha sido este processo (fomos o último país das américas, atrás do Haiti, de Cuba e, por certo, de todos os demais), quando ele começou a se delinear, colocou a sociedade frente a frente com inúmeros esqueletos no armário, exigiu reconhecimento explícito e inequívoco de culpa e, mesmo sem entrar no polêmico tópico das reparações, fomentou um imprescindível processo de luto através do qual fomos bem além de reconhecer a dimensão do erro: mudamos enquanto sociedade e nos tornamos absolutamente intolerantes com a escravidão, sob qualquer forma. Claro que isto não é garantia de que não sofremos ou sofreremos mais deste mal mas o entendimento coletivo de que se trata de um crime é ferramenta ímpar para proteção e vigilância de um futuro cada vez mais incerto. Acho que é difícil discordar desta visão.
Fazer as pazes com seu passado, tomando as medidas adequadas, é um caminho difícil mas necessário, que demanda maturidade, desprendimento e sobretudo esclarecimento (supondo, claro, que sejam sentimentos legítimos). Prova disto é que abster-se de fazê-lo, não reconhecer seus erros (mesmo que óbvios), usar figuras de retórica e de marketing para criar narrativas falsas que escondem ou mitigam estes erros é, por sua vez, estratégia eficaz para permitir-se repetir os mesmos erros ou erros ainda mais intensos, é a garantia que o necessário aprendizado não aconteceu e a chance de repetição é alta. A citação original (de George Santayana), de que quem não lembra do passado está condenado a repeti-lo, alude exatamente este fato mas eu, talvez por mais cínico que Santayana, vejo que só lembrar não basta: há que entender, há que ser de fato valente para reconhecer os fatos (mesmo os culposos) e, ainda mais, assumir o compromisso de não reincidir. Veja o caso dos Estados Unidos, que invadiram o Iraque em 2003, a Líbia em 2011, a Síria desde 2014 e o Afeganistão até 2021: se no primeiro evento tivesse havido (de parte da sociedade ou da classe política) o reconhecimento na falácia das premissas e nos reais interesses obscuros que motivaram a operação, talvez a necessária vergonha abriria espaço para a dignidade e tragédias futuras não teriam acontecido. De novo em terra brasilis, a ditadura brasileira não teve o enterro digno que acredito ser necessário para, de fato, fechar certas chagas pessoais e sociais que até hoje secretam odores. Alguns eventos patrocinados por um partido, condenados por outro, uma população dividida (mesmo considerando o baixo conhecimento médio de História) mas, mais importante do que isto, os militares deixaram o poder na mão de Tancredo e Sarney, sem pedir desculpas, abdicando das honras mandatórias naquele momento, penitenciando-se pelas incontáveis e descabidas mortes e atrocidades que cometeram em seus delírios. Nenhum dedo cortado para mostrar arrependimento, nenhum harakiri, nenhuma devolução de divisas, nenhum ato real: sem isto, nossa sociedade teve que fazer o enterro sem um corpo (confesso, um escolha polêmica de palavras) sendo que ainda muitos diziam que não havia corpo porque não havia o que enterrar. Assim, até hoje flertamos como movimentos autoritários e desfiles militares. Sim, foram mais de 20 anos, gerações se formaram em certas ‘verdades’ e isto não é pouco. Hoje em dia, sobretudo na Rússia rural, no entendimento da maioria é claro que o Ocidente é decadente, que está contra a mãe Rússia e só Putin poderá salvá-los: são vítimas da mesma estratégia.
Em março de 2014, através de ligações com doleiros e traficantes, inicia-se a Lava Jato: uma operação que tentou desbaratar um esquema que envolvia 20 dos 30 partidos políticos da época, onde R$ 6 bilhões foram devolvidos aos cofres públicos por réus (embora o montante em acordos de leniência supere R$ 20 bilhões) de um total estimado de prejuízos em R$ 376 bilhões, que colocou na cadeia mais de 100 políticos (lula, eduardo cunha, sérgio cabral, anthony garotinho, maluf, dirceu, aécio, …) mas que foi finalizada em 2021 e atualmente não tem nenhum político nem funcionário ou dono das empresas envolvidas (muitos réus confessos) presos. Bem pior do que isto, foi forjada uma narrativa de que a culpa estava nos juízes, na Polícia Federal e em seus métodos e de que nunca houve crime. Não é preciso nem devido debater isto agora mas é inconteste o fato de que não tivemos nosso luto, não tivemos o velório da corrupção, não conseguimos nos entristecer com nosso passado vexatório e colonial para criar um novo futuro, não conseguimos afugentar em definitivo este fantasma, não fizemos as pazes com nosso passado. Toda a experiência só rendeu amargura, desesperança e desencanto, não houve amadurecimento, catarse, aperfeiçoamento. A tumba de Santayana em Roma parece uma churrasqueira rotativa.
Atualizado em: Qui 10 Abr 2025