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SILVANA

Pela milionésima vez, nesses últimos vinte e cinco anos, acordo no meio da noite pensando em você. E nas minhas recordações você é apenas um corpo, uma estrutura não verbal, silenciosa, fugidia, mas dotada de sinais, embora sutis e escassos, capazes de estabelecer comigo uma comunicação avassaladora. Tínhamos, eu e você, à época do breve lapso transcorrido entre o seu aparecimento e a sua partida, 20 e 23 anos, respectivamente. Eu resistia à maturidade como quem luta para evitar uma doença contagiosa. E você já dominava toda as engrenagens disponíveis para ser um corpo dominante, percorrendo o mundo como um dragão-de-komodo que silenciosamente espreita, morde e persegue a vítima por horas, aguardando o enveneno agir até paralisá-la por completo. Você era uma entidade bela, perigosa e orgânica, a materialização da dissimulação e da malícia puras e do cinismo e do charme também puros. Você abria a porta do meu quarto tarde da noite sem fazer o menor barulho, caminhava sobre o assoalho de tábuas soltas sem se fazer notar, chegava macio à minha cama, deitava ao meu lado e sussurrava algo, rente ao meu ouvido - uma isca que eu sempre mordia, subjugado pelo seu cheiro, pelas suas pernas bem torneadas, pela sua pele morena a perfeita, pelos seus cabelos lisos, os pelos abundantes do seu sexo e pelo seu olhar sonso e distante. Às vezes você aparecia também durante o dia, quando estávamos a sós em casa. Você, a hóspede fatal; eu, o anfitrião vulnerável. Animus e Anima em suas piores versões. E mal você aparecia, o telefone tocava. Era o seu noivo; ele surgia sempre no momento exato para nos surpreender em flagrante delito. Você atendia a ligação com naturalidade e me deixava ali sozinho, ruminando a melhor vingança. Eu tentava racionalizar a situação para me blindar de você, do mal que você provocava, daquele amor que não valia à pena, mas só conseguia vislumbrar sombras de intuição que, apesar de vagas, conseguiam preservar em mim fogos fátuos de sanidade. Eu intuía corretamente que era um tolo, uma criança confusa nas mãos de um arquétipo feminino frio e egoísta, feito para me arruinar. Mas já era tarde, quando, finalmente, movido pelo instinto mais urgente de sobrevivência, resolvi desistir de você. Consegui me livrar do seu corpo, da sua presença abrasiva em cada canto do apartamento, mas não da sua lembrança. Você foi embora há vinte e cinco anos. E foi para bem longe, muito longe, para o lugar onde nasceu e para onde poucos se aventuram a ir, mas a sua nudez, o seu corpo-mistério e a sua voz-sopro continuam até hoje me assaltando no meio da noite, ressuscitando emoções e desejos de vinte e cinco anos atrás. E tanto tempo depois da sua partida, cheia de desprezo e raiva, você permanece habitando teimosamente o meu inconsciente, misturada ao meu ar, infectando cada molécula dentro e fora de mim; você continua presente desde então, viva nas minhas palavras, diluída no meu suor, me fazendo criança sua; você, Silvana.
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Atualizado em: Seg 20 Jan 2025

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