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Chimpanzé Santino e suas aulas de ética
Santino é um chimpanzé agressivo (daí a referência a Santino Corleone, do Poderoso Chefão) que, possivelmente para lidar o tédio, desenvolveu o hábito de atirar pedras e paus nos visitantes do zoológico em que morava, fato que chamou a atenção de especialistas. Embora tipo de comportamento não seja incomum entre primatas, Santino foi adiante no sentido em que começava a sua preparação em torno de uma hora antes da abertura para o público, coletando sua munição e fazendo uma grande pilha - a ser usada assim que estes começassem a circular dentro do que ele calculava ser a sua área de alcance. Como se não fosse surpreendente o bastante, os visitantes (como bons primatas que são) começaram a perceber isto e a evitar aquela área, fazendo com que Santino desse mais um passo em direção a um pensamento abstrato e organizado e começasse a colocar a munição em esconderijos estrategicamente posicionados, como troncos ocos, garantindo um efeito surpresa e realizando seu objetivo.
A história (real) é muito mais do que entretenimento: ela ajuda a pensar em questões bem maiores e bem mais complexas como: ‘o ser humano é qualitativamente diferente dos demais animais? Se sim, porque?’. E também ‘se esta diferença existe, ela serve como justificativa moral para que tratemos os animais da forma como tratamos? (a palavra degradante me vem em mente)’. As questões populam o imaginário de filósofos há anos e, embora já tenhamos avançado muito, parece que cada proposta de resposta vem acompanhada de mais perguntas. Descartes já dizia que os humanos tem sensações, sentimentos e consciência enquanto os demais animais não: eles só reagem a estímulos. Assim, dissecar um cavalo vivo não é moralmente reprovável e por mais que ele tenha que ser contido para não matar alguém com um coice, ele não está sofrendo pois não tem consciência do que está acontecendo: só está reagindo a estímulos. Esta visão foi amplamente aceita por muito tempo e hoje já não pensamos assim (passos foram dados) mas ainda fazemos coisas, no mínimo, duvidosas - como a forma como criamos animais para corte e experiências de laboratório. 9 a cada 10 pessoas concordam que cachorros devem ser levados ao pet e ter seus dentes escovados e que porcos devem passar a maior parte de suas vidas em chiqueiros metálicos pouco maiores que seus próprios corpos. Se assim é, porque? Até consigo entender (embora não concorde) com o argumento religioso de que os humanos são diferentes porque tem uma alma imortal - que os animais não tem, mas neste caso, porque não fazemos bacon com nossos cachorros? Porque não comemos carne de cavalo? Afinal, são todos animais igualmente inferiores e temos o direito bíblico de fazê-lo.
Reiteradas vezes caímos no mesmo autoengano de avaliar outros animais a partir de métricas que nos são favoráveis. Como disse Einstein: ‘se avaliarmos a inteligência de um peixe pela sua habilidade de subir em árvores, concluiremos que eles não são nada inteligentes’. Desmereço, assim, o fraco argumento de que os animais tem menos valor porque são menos espertos: muitos são bem espertos e em muitos casos simplesmente não conseguimos entender o que fazem (quem é burro agora?). Alguns dizem que a noção de temporalidade é o que nos diferencia, junto com a noção de identidade. Santino parece ter tudo isto e, mesmo sendo exceção, coloca planejamento e técnica a serviço de um objetivo - como eu estou fazendo agora, embora com menos perícia. Em 2012 um grupo internacional de reconhecidos pesquisadores faz a Declaração de Cambridge sobre a consciência que resumidamente diz que o substrato neuroquímico e as estruturas do cérebro humano que nos permitem ser o que somos estão presentes e são funcionais também em outros animais, não somente primatas mas mamíferos em geral, aves e outros. E só para concluir, se você acha que este pessoal tira conclusões românticas sobre cérebros dissecados, cientistas conseguiram se comunicar com um homem cujas sequelas de um AVC lhe tiraram totalmente os movimentos (sim, totalmente). Embora lúcido e consciente, ele não conseguia se mover, falar, grunir nem mesmo piscar. Através de técnicas avançadas, um grupo de cientistas desenvolveu um equipamento que fazia um scan das atividades cerebrais e conseguia, através deste, determinar (rudimentarmente) no que o homem estava pensando. O homem foi instruído que lhe seriam feitas perguntas de resposta sim ou não: em caso positivo, o homem deveria pensar que estava jogando tênis; ao contrário, deveria imaginar que estava em casa. De forma metódica e consistente, criou-se uma forma básica de comunicação que, a menos que você seja um sociopata, é fácil de entender que significou muito para este homem.
Então resumindo, se você esposa a teoria de evolução, na qual o gênero humano se desenvolveu pelo mesmo processo que todas as formas vivas neste planeta, em uma combinação de aleatoriedade genética, adaptatibilidade ao meio ambiente e seleção de aptidões, sem sobressaltos, encantos ou atalhos, fundamental e tacitamente está de acordo que a nossa é somente mais uma, entre tantas espécies que já existiram, sem diferenças qualitativas em relação a porcos, urubus e polvos. Se química e biologicamente, várias outras espécies tem o mesmo aparato que nós usamos para ter as sensações que temos e que nos confere a inconfundível sensação de estar vivo e se, mesmo que tenhamos capacidades que as demais espécies não tem, entendemos que é possível que um organismo tenha valor mesmo sem elas, ressoam, intactas, a pergunta lançadas no prefácio, que podemos resumir em ‘será que realmente somos tão especiais assim?’ Ou será que simplesmente temos habilidades que nos permitem dominar (ao ponto da brutal escravidão) as demais espécies? É claro que os Estados Unidos são mais fortes (possivelmente em todos os aspectos) que o Iraque mas este fato isolado lhes dá o direito de oprimir, aprisionar, mutilar e assassinar seu povo? Não fique confuso: a resposta que espero aqui é não. Parece que está ficando incrementalmente difícil achar uma justificativa ética para este dilema: se não encontrarmos uma forma para justificar nossa alegada superioridade, de forma convincente e segura, não podemos usá-la como argumento para a forma com que tratamos os animais e vamos ter que nos contentar com um primitivo ‘faço porque quero e consigo!’, abraçando a hipocrisia inerente a este comportamento com um traço humano. Pessoalmente, não vejo como óbvio que esta tal superioridade humana daria os direitos que nos autoconcedemos mas frente à incapacidade de justificar a ideia ironicamente retrocedemos (embora talvez seja um avanço) ao credo animista pré-agrícola e pré-religioso, onde a árvore, a matilha de lobos, a tribo humana e o formigueiro eram partes de um todo aparentemente indomável, poderoso e implacável, chamado vida. Quando o homem moderno ajudou a causar a extinção do Neanderthal e foi o responsável único pelo fim antecipado de tantas outras espécies (em particular a mega fauna), pelo menos podíamos nos confortar no fato de que ainda não tínhamos inventado a ética.
Atualizado em: Qua 22 Jan 2025