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Burrice Artificial

Vivemos um tempo muito rico e interessante em termos de tecnologia e a inteligência artificial é um dos pilares desta nova era (em que o ChatGPT já prestou ENEM). Em geral, sempre tivemos um distanciamento histórico para nos ajudar a apreciar de forma mais abrangente os acontecimentos e descobertas que tinham grande impacto sobre nossas vidas. Nos últimos anos, entretanto, a velocidade exponencial dos eventos marcantes nos atropelam sem piedade.
Alguns países da África foram da ausência de telefonia diretamente para a telefonia móvel (sem passar pela fixa) mas este movimento durou anos: um luxo que não temos mais. Temos meses ou mesmo semanas para formar uma opinião sobre situações complexas como permtir ou não o uso de IA na psicologia, ao mesmo tempo que já temos certeza da sua performance, baixo custo e escalabilidade. Mas antes de hipotisar para onde vamos, é conveniente responder: como chegamos aqui?
O ser humano nunca foi bom em lidar conceitualmente com a temática da inteligência e por vezes satisfez-se em dar nome a alguns aspectos e manifestações desta, já que entendê-la de fato era uma tarefa muito mais árdua. Verdade seja dita: como comparar a nossa inteligência com a de um golfinho ou um polvo? Se a métrica empregada for a quantidade de notícias falsas que conseguimos divulgar nas redes sociais, nossa vantagem é clara mas se o critério for quantos milisegundos são precisos para trocar a cor da pele, nosso amigo polvo nos supera com margem. Experiências com chimpanzés mostram que a memória de curto prazo deles é surpreendentemente superior à nossa e teóricos afirmam que poderíamos ter esta habilidade também mas ao longo da nossa evolução privilegiamos a linguagem - no chamado compromisso cognitivo. A embaraçosa verdade é que ainda hoje coramos de vergonha ao não conseguir responder de forma convincente questões infantis como o que é inteligência, o que é personalidade, alma e uma plêiade de conceitos difusos que estão no cerne do nosso entendimento sobre nós mesmos.
Para aumentar o constrangimento, agora temos a inteligência artificial (e vou questionar esta nomenclatura em breve) que pode lançar luz sobre a questão e nos ajudar na tarefa. Talvez seja mesmo no diferente, no distinto, que consigamos nos compreender melhor e por fim poder concluir sem margem de dúvidas que se caminha como um pato, grasna como um pato, voa como um pato, deve ser um pato mesmo. Alan Turing já propos o teste - que leva seu nome - na qual um computador para todos os efeitos se faz passar por um humano (um limite tecnológico distante nos idos de 1940) e hoje já temos que usar IA para nos ajudar a adivinhar se um texto foi gerado por IA. Não há duvida que em algum momento do futuro, quando alguém disser ‘mas este artigo está horrível’, esta será a prova de que foi escrito por um humano. Mas estas não são mais do que anedotas, ouvidas à beira da estrada da informação, que nos ajudam a formular questões mais complexas e, de certa forma, existenciais. A comparação é inevitável: qual é a melhor, a inteligência humana ou a artificial? Antes de começar a perder tempo dizendo que os humanos tem alma, arte, sentiência, emoções, vamos ver se não estamos sendo vítimas de nossos próprios contos (não seria a primeira vez). O cérebro humano não é um monolito: ele é composto de partes com diferentes idades evolutivas. O cérebro reptiliano é a parte mais antiga, responsável por instintos básicos, reflexos automáticos, sobrevivência, respiração, batimentos cardíacos - temos isto em comum com muitos animais. Acima deste (e mais recente) temos o sistema límbico, que se envolve com emoções e respostas mais elaboradas, medo, prazer. Por fim, o neocórtex nos dá o pensamento racional, a linguagem e a consciência. Tudo seria mais fácil, entretanto, se o sistema límbico e o neocortex não fossem usurpadores, sequestradores de estímulos, criadores de narrativas a partir dos estímulos gerados pelo lagartão que mora atrás dos seus olhos. Em uma experiência particulamente reveladora, um entrevistador apresenta um série de fotos e, sem informações adicionais, pede ao entrevistado separar as fotos das pessoas com quem ele se sentiria confortável para trabalhar. Depois de separadas as fotos e sem que ninguém veja, o entrevistador mistura algumas delas e depois pede para o entrevistado explicar o motivo de sua escolha: mesmo que a parte reptiliana tenha escolhido trabalhar com a pessoa A e não com a B, quando estas fotos são trocadas, o entrevistado cria uma história, uma narrativa para explicar sua decisão, em um típico golpe do sistema límbico, um 171 neuronal. O que nos traz à questão atual: somos realmente responsáveis pelos nossos desejos? Será que algum dia eu genuinamente conseguiria querer votar em Trump? Será que me deixaria seduzir pela ideia do socialismo libertário? Em um esforço de superação de vontade, conseguiria acreditar no criacionismo? Acho que não.
Na teoria, este tem sido nosso diferencial, o que distingue a inteligência humana da artificial. Humanos tem emoções, humanos amam, tem senso de humor, solidariedade e apreciam a boa arte assim como honram seus conterrâneos de espécie. Se você, assim como eu, está rolando de rir neste momento, possivelmente isto tem relação com o fato que a minha descrição não representa a nossa realidade (nem alguma realidade utópica): é um mito, uma fábula que existe tanto quanto a raposa e a lebre. Como sentenciou Michel Onfray, “somos um milagre químico que sonha” ou, de forma mais imagética “deuses com ânus” e agora tentamos reproduzir em substrato de silício nossa mais distinta característica (que ainda não entendemos bem). Até hoje, sempre medimos inteligência segundo métricas que nos privilegiavam e esta situação de arrogante conforto nos manteve sempre dentro da caverna. Agora a IA bota fogo na caverna, nos obriga a sair e o que vai acontecer no futuro, só a continuação deste texto vai mostrar.
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Atualizado em: Seg 18 Nov 2024

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