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“Marido para que? Serviços gerais”

Sou homem mas sinto a necessidade de explicar que me identifico mais com um conceito mais antigo de ser homem, uma ideia que não necessariamente inclui vergonha, medo, reticência ou mesmo culpa pelo que meus xarás cromossômicos do passado fizeram. Não preciso propagandear minha masculinidade da mesma forma que não preciso escondê-la, tentar mudá-la, suavizá-la ou pintá-la das cores do arco-íris - similarmente a como trato as habilidades do meu sistema digestório (sim, se chama assim hoje em dia): é uma parte de mim. E já já vamos responder a pergunta que está se formando: “e o que eu tenho a ver com isto??”

Dias atrás vi uma propaganda em um carro que dizia “Marido para que? Serviços Gerais”. Tratava-se de uma pequena empresa (composta ironicamente de 1 pessoa: um homem) que fazia serviços como reparos, instalações, pinturas, consertos, etc e aludia a ideia de que uma pessoa não precisa ter um marido para fazer estas coisas, da mesma forma que você não precisa ter um carro: chame um Uber! Confesso que minha primeira reação foi de entender o lado cômico e mercadológico do bordão (se eu reparei naquele slogan, imagino que muitos outros repararam e este era o objetivo). Ato seguinte: imagine a cena ao contrário: “Esposas para que? Marmitas” - tenho certeza que os vidros de um carro com este anúncio não durariam muito tempo pois as pessoas não veriam o lado cômico e sim o lado do aviltamento, da exploração, do patriarcado e exerceriam seu direito nato de denunciar a empresa - mesmo que ela fosse composta de uma mulher. E isto, meu caro leitor, é hipocrisia, no sentido grego (quando os atores usavam máscara para criar cenas e contar estórias). Não que a nossa sociedade não tenha inúmeros exemplos de incoerências e inconsistências mas nos esforçamos para depurar nossos processos e evoluir: a alternativa é criar e usar máscaras para mostrar uma realidade montada, parcial, ideológica. A terceira onda de sentimentos foi, de fato, a revolta: me senti um pouco ofendido com a perspectiva de que um marido pudesse ser representado somente pelo seu viés de utilidade, como um aspirador de pó. Aspiro (trocadilho infame) que as pessoas possam ser tratadas pelo que são e não pelo que tem, pela sua capacidade de carregar objetos pesados e matar aracnídeos e isto me parece tão básico e elementar que não precisaria ser escrito mas o relato acima mostra que esta é uma meia-mentira, ubíqua em qualquer discurso feminista ou panfleto de político. “Ah, espera aí!”, ouço os revanchistas claudicando seus argumentos: “mas o homem de fato fez isto por muito tempo (tratar a mulher de forma objetificada e até desumanizada)!”. É triste ver que o melhor contra-argumento para esta ideia é vingança e se você tem familiaridade com os Montecchio & Capuleto ou com o conflito entre árabes e judeus, acho que entenderá que todo esforço dedicado a esta ideia demandará ainda mais esforço para desfazê-la no futuro (se tivermos sorte).

Como prefaceado, não me sinto menos homem devido ao fato de algumas pessoas terem um entendimento tão peculiar sobre a matéria mas me causa muita preocupação quando este entendimento se generaliza e sobretudo se populariza como sendo moderno, atual: tendência. Abri uma conta em um banco digital dias atrás e as imagens de pessoas que aparecem no aplicativo são de uma mulher, uma mulher negra e um homem com traços afeminados. É possível aplicar o mesmo julgamento de valores aqui e questionar que tipo de representatividade é esta mas quero focar aqui na motivação do banco para fazer isto: marketing. Estas são as mensagens e as imagens que a nossa sociedade quer ver e esta adulação se transforma em cliques, compras e assinaturas. “Ah, mas e se eu colocar só imagens de homens na minha propaganda?”: a mão invisível do mercado vai fazer com que você entenda a complexidade e a importância desta decisão que, se não revertida, levará até o melhor banco à falência. Não se trata de justiça social, não se trata de direitos: se trata de marketing e, logo, de dinheiro. Nosso tecido social tem hoje em dia esta métrica de culpa étnica e para satisfazer este desejo de purgá-la, queremos ver rostos de cores diferentes, cinturas de circunferências diferentes, em um teatro caótico de projeções: tudo para tentar mitigar esta culpa, que nos foi inculcada, amplificada, pervertida, empacotada e colocada em nossas mesas, para serem todos os dias artefatos em nossos rituais de adoração e flagelo. Entendo perfeitamente a importância das narrativas para a coesão de uma sociedade (imagine o que aconteceria se cada pessoa decidisse de que lado da rua vai dirigir) mas este é um exemplo de uma narrativa uniformizante que se baseia em misandria, em tratamento desigual e revanchismo. Estamos ensinando nossas crianças e nossos jovens a terem medo e vergonha de serem e se comportarem como homens e, pasmem, eles estão aprendendo - para desalento de todos, inclusive das mulheres. De um lado da balança a vontade de satisfazer uma ideologia, do outro as fraturas do tecido social: à medida que o tempo passa, a balança pende mais e o sofrimento e a desorganização ficam mais claros. O vácuo gerado pela inação destes candidatos a homens é difícil de avaliar e somente as décadas futuras poderão dizer o preço que teremos que pagar por isto. Porém, sou um eterno otimista e acredito que os movimentos sociais sempre tiveram esta característica pendular, assintoticamente se encaminhando para as melhores soluções e neste caso não será diferente - só queria que fosse mais rápido.
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Atualizado em: Dom 20 Out 2024

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