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Quadratura de Visões

1. Convite
  Alguns me perguntam o motivo pelo qual meu apreço pelo xadrez não é tão grande. Enganados estão ao pensar que não admiro o xadrez. Na realidade, acho um jogo de extrema diversão e elegância. Meu problema não está com o xadrez, mas ao que se tornou um senso comum na sociedade em relação às pessoas que se aventuram neste tabuleiro e ao que chamam de genialidade, principalmente como vinculam esta palavra a uma pessoa boa em ciências exatas, muitas vezes a matemática.
  A meu ver, a grande diferença entre xadrez e outro jogo é o ego e o julgamento dos jogadores. Enquanto o primeiro aumenta em relação a quem ganha, o segundo é posto em prática - muitas vezes pelo vencedor – medindo a inteligência de seu adversário. Alguns podem apontar o dedo para mim e dizer que isso ocorre em vários jogos, mas sejamos sinceros, quando alguém pensa em algum jogo que mede uma suposta inteligência de um ser, esse jogo é o xadrez. Temos aqui premissas e teses fundadas ao longo de anos por 64 quadrados, um aspecto humano e uma área científica: a matemática. Se você é bom em matemática deve ser bom em xadrez. A recíproca desta afirmação também é válida nessas conjecturas disfarçadas de teoremas abraçadas pela humanidade sem necessidade alguma de demonstração. Caso queira se juntar a mim, podemos trabalhar juntos e mostrar que estas afirmações são falsas.
2. Lázaro
    Para mostrarmos a invalidez da primeira afirmação, evoco a lembrança do meu amigo Lázaro Camargo, exímio matemático, com 15 artigos publicados sobre Análise Geométrica e Teoria de Categorias, áreas que inicialmente são de embasamentos bastante distintos, mas Lázaro as dominava tal como um bom ilusionista domina para onde você irá olhar. O conhecimento de xadrez de Lázaro? Bem, em relação a isso posso afirmar que ele sabia que o cavalo poderia se mover em forma de L, mais especificamente duas casas na horizontal e uma na vertical, ou, dependendo do seu modo de ver, uma na horizontal e duas na vertical. Para Lázaro, interessava mais se havia a possibilidade do cavalo, partindo de qualquer um dos 64 quadrados, passar por todos os outros 63 uma única vez através deste seu excêntrico movimento em L do que saber quais as casas de ataque (ou defesa) melhores para se jogar.
    Quero aqui contar uma partida que assisti entre Lázaro e Pedro Vala, um policial aposentado, onde o primeiro jogava com as brancas e o segundo com as pretas. Não quero, de modo algum, ser um narrador onisciente, mas se pudesse apostar meus 2 centavos, diria que enquanto o oponente de Lázaro estava pensando em todos os movimentos que iriam enfraquecer as posições das peças deste, o próprio estaria divagando em relação ao motivo de todas as peças apresentarem movimentos tão triviais, como o horizontal e vertical à vontade da torre, um simples movimento cardeal do rei, o porquê do bispo estar ensinando a doutrina católica em passos diagonais, a exuberância de movimentos da rainha (que a enxergava como uma fusão da torre com os dois bispos). Mas por que o único movimento não tão trivial seria do cavalo? E por que em formato de L? Jogo mais 4 centavos na mesa e acredito que Lázaro pensava até mesmo que o L remetia à literatura ou linguagem adotada quando o xadrez foi criado, ou então seria a letra inicial do seu criador, talvez também uma estratégia genial (ou até mesmo premeditada) deste que tornaria o jogo mais complexo e elegante.
    Mais 8 centavos e digo também que lhe veio à mente o nome da peça do cavalo em inglês e lembrou-se das justas dos torneios medievais da Europa do século XII, onde dois cavaleiros posicionavam-se frente a frente com lanças de madeira em um posicionamento ortogonal em relação a eles, formando assim uma espécie de L. Este pensamento ganhou ainda mais força quando pensou que o xadrez atual é uma modificação europeia do século XV do xadrez indiano do século VI. Se essa fosse a verdadeira motivação para o movimento do cavalo, Lázaro ficaria um pouco frustrado. Queria explorar o mistério do L, não queria encontrar respostas simples (como a maior parte da comunidade matemática).
    16 centavos eu jogo para a desistência de tentar encontrar a origem do L para os aspectos que interessavam ainda mais a Lázaro. Dois e um: Dois para cima e um para a esquerda? Dois para baixo e um para a direita? Ou esquerda? Equações Diofantinas passavam por sua cabeça, pontos da forma (2x, x) em um plano cartesiano para conjecturar como seria o movimento do cavalo caso o tabuleiro de xadrez fosse maior. Partições do tabuleiro em que a existência da peça do cavalo poderia não fazer sentido. Por pensar em partições, pensou que o xadrez poderia ser generalizado para um formato qualquer se não fosse pelo cavalo, e por pensar em formato qualquer, pensou que se não fosse por esse infame equino, o xadrez poderia ser facilmente concebido em um mundo com 4 dimensões geométricas, ou de 5, de 6...
    "Não temos o dia todo", Pedro disse, e, com suas pequenas divagações interrompidas, Lázaro fez sua primeira jogada. Por fim, jogou o peão do cavalo da direita duas casas para frente sem saber direito o que estava fazendo, pensando consigo "talvez esse L seja em minha homenagem", soltou uma pequena risada e esperou seu oponente jogar.
3. Pedro
    Em uma tarde de Setembro de 1980, no Morro das Manivelas, Pedro Canuto, um policial militar, no dia anterior ao seu vigésimo aniversário, encontrava-se em meio a uma folia eufemística de projéteis contra traficantes de uma droga que vive na cabeça de quem acredita. Ele estava com mais um companheiro, Fernando Melo, policial de 36 anos, atingido tão rápido em seu crânio que nem reparou e virou-se avisando para Pedro ir correndo rapidamente em direção a uma vala que se encontrava a cerca de 40 metros dali para ambos se esconderem. Pedro se jogou na vala e Fernando doou seu corpo ao chão. O pequeno detalhe que falta é que Pedro viu a arma sendo apontada e poderia ter dito para Melo sair da frente, mas percebeu que se fizesse isso a bala poderia entrar no crânio de um Pedro ao invés de um Fernando (era incerto), então, pela dúvida, manteve-se calado.
    Essa foi a história contada a mim por Pedro Canuto, o Pedro Vala, apelido que os membros do seu pelotão lhe deram, alguns de forma respeitosa, outros de forma irônica e ácida, pois o culpavam pela morte de Fernando. Em relação ao psicológico de Pedro, eu jogo meus primeiros dois centavos e digo que a pessoa com mais raiva de Canuto pela morte de Fernando era Pedro, e o culpado pela morte do Canuto, a Vala.
    Contou-me que após este ocorrido, o instinto que sempre lhe moveu foi predominantemente a necessidade de sobrevivência. Sobreviver não era algo fundamental para Vala, era uma filosofia de vida que segurava com suas mãos que, de acordo com suas próprias palavras, estavam ensanguentadas (mais um centavo que ele deva considerar que esse sangue seja de Fernando. Se você me perguntar de quem eu acho que seja esse vermelho, me acolho ao silêncio da ignorância e voltemos ao conto).
    Aos 60 anos se aposentou, ao menos aposentou seu corpo e as funções nas quais ele o utilizava para ganhar o dinheiro que tinha, mas sua cabeça? Sua cabeça havia parado no tempo, parado em um local onde já não se existe a passagem dos ponteiros de relógios, apenas o som. Mas não todos os sons. Gritos, gemidos, tiros, balbucias de algo que ele poderia entender como um "eu te amo" vindo de alguém que já nem sequer existe nesse espaço ilusório e, agora, nem no mundo físico.
    Encontrei-o pela primeira vez em uma aula de basquete, numa quadra que eu sempre frequentava. Era um exercício para manter o corpo mais ativo e, como estava aposentado, poder manter uma rotina. Os detalhes de como nos conhecemos não é o escopo do que trato, então vamos ao que talvez te interesse. Além do basquete, Vala achou outra maneira de se entreter, suas aulas de xadrez. Frequentava fazia pouco mais de 4 anos e adorava como as peças tinham um caráter feroz. Eu não sei o porquê dele ter utilizado a palavra feroz, mas não quis interromper sua história que contava com um leve sorriso no canto da boca. "Um mundo em 64 quadrados, um campo, incontáveis estratégias, cada peça é importante e cabe a você proteger todas elas e sair vitorioso no final, e está tudo bem que você precise sacrificar algumas delas no meio do caminho". A mensagem para mim estava clara, mas eu quis rir quando ele falou "incontáveis", porque neste momento eu pensei em meu amigo Lázaro e no que ele prontamente responderia se estivesse no meu lugar, provavelmente dizendo que não são incontáveis, pois já se sabe o número exato de jogadas no xadrez, então o número de estratégias não poderia ser incontável.
    Aqui eu não preciso jogar aos poucos, arrasto mais 27 centavos e digo que o local em que a cabeça do jovem Pedro de 20 anos parou era um local que ele sequer conhecia na época, um local onde havia quadrados ao invés de ruas, peças ao invés de pessoas, estratégias no lugar de armas, vitória no lugar da sobrevivência e, o mais importante, onde sacrificar suas peças era aceitável. Achou no xadrez o que procurava para tirar de si a culpa que ele criou. Aqui eu encerro minha prova de que para ser bom em xadrez não precisa ser bom em matemática, tendo em vista que Pedro me contou que não lhe agradavam as abstrações que a matemática criava. Caso você, leitor, estivesse interessado apenas na prova que nem todo matemático é um bom enxadrista e nem todo enxadrista é um bom matemático, pode parar aqui. Caso queira continuar, ainda tenho um pouco de história para contar.
Adiantando um pouco o tempo, quando Lázaro fez sua jogada, que parecia uma eternidade, Pedro simplesmente moveu seu peão do rei duas casas para frente e disse: "sua vez".
4. O jogo
    Aqui meus centavos continuam intactos, pois quero apenas ser saudosista e orgulhar-me da incrível ideia que tive. Sejamos sinceros, colocar um matemático filosófico contra um policial aposentado e traumatizado em uma partida de xadrez me pareceu digno de um estudo para Lázaro e talvez uma futura Catarse de Pedro.
    Entrei em contato com os dois e Lázaro começou a se questionar se deveria aceitar, pois sabia que sua habilidade no xadrez não era das melhores, porém eu sabia o que poderia fazer para atiçar a sua vontade. O que conto agora, conto pedindo perdão ao leitor pela falta de uma possível ética, ou talvez, sensibilidade. Falei para Lázaro do passado de Vala, com todos os detalhes que este havia me contado. Imediatamente Lázaro quis jogar e me disse:
"Com toda a certeza irei vencer."
     Convencer Pedro não foi tão laborioso. Eu apenas disse que havia chamado uma pessoa que conhecia apenas o movimento das peças e as regras básicas e que mesmo assim havia me garantido que venceria ele. Pedro, de prontidão, me respondeu:
"Pois diga ao seu amigo que minha vitória já está garantida."
    Quis rir após as ligações. Poderiam duas pessoas ganharem? Claramente só haveria um vencedor, mas quem? Empate não conta como ambos ganharem, empate é empate. Teria como ambos perderem?
    E se eu for além da nossa compreensão? Haveria uma maneira dos dois ganharem, mas ao mesmo tempo perderem? Essa curiosidade me dava ainda mais uma empolgação caótica para o jogo de ambos, principalmente a partir das promessas feitas.
    No dia, as coisas aconteceram de uma maneira interessante. No terceiro movimento, Lázaro, claramente sem saber as estratégias do xadrez, porém sabendo do passado de Vala, fez uma jogada sorrindo e que ao mesmo tempo fez Pedro abrir um sorriso de um canto da bochecha até o seu extremo oposto. Lázaro andou uma casa para frente com seu peão do bispo da direita. De alguma forma parecia que ele sabia o que estava fazendo. Como de imediato, Pedro enche sua mão na rainha preta, desliza diagonalmente pelo campo quase intocado, posiciona ela ao lado do peão jogado na primeira rodada por Lázaro, e com um peito de galo pronto para se gabar, diz: Xeque-mate! O sorriso se transformou em uma gargalhada. Venceu movendo duas peças? Sabia que seu adversário não sabia das artimanhas do xadrez, mas nunca imaginou que seria nesse nível. Lázaro, como que por um instinto, começa a gargalhar tão alto quanto. Pedro, sem entender, pergunta: "Por que da sua graça?". Ao que Lázaro volta apenas a sorrir, porém dessa vez com um sorriso cínico, e diz: "Meus parabéns, desta vez conseguiu vencer sem sacrificar peça alguma, Canuto."
Para os meus últimos 4 centavos, digo que Lázaro teve a derrota que esperava e a vitória que prometera, e Pedro teve a vitória que prometera e a derrota que jamais imaginara: Percebeu que o mundo não tem 64 quadrados. E eu, 64 moedas.
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Atualizado em: Sex 19 Jul 2024

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