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Vacinas contra azar
Vivemos um tempo de desespero e luto em que quem não perdeu parentes ou patrimônio, conhece alguém que teve esta desfortuna e repetir isto beira o sadismo dos piores telejornais. Mas talvez haja aqui algo que você não sabia: existem bem mais envolvidos nesta tragédia do que a Mãe Natureza e não digo isto só por causa do dia das mães. Sem dúvida os inúmeros alertas meteorológicos - que chegaram desde janeiro - ajudariam muito mas, por si só, não poderiam salvar ou proteger vidas ou propriedades, a menos que viessem acompanhadas de medidas. A pergunta que todos estão fazendo neste momento é: porque temos tanto azar?
Claro, o padrão de chuvas já está mudando e tende a ser cada vez mais intenso mas o bom senso diz que isto deveria acontecer em outros lugares, não no brasil. Metade das chuvas do estado escoam pela depressão no centro rio-grandense (que não tem mudado muito nos últimos anos), despejando todos os dias uma quantidade enorme de água em um delta, que desemboca no Guaíba, que está ligado à Lagoa dos Patos que por fim deságua no oceano, através de um canal artificial. Assim, os rios que alimentam este sistema poderiam ter barragens, visando controlar a vazão e mitigar eventos extremos como o que está acontecendo agora. Da mesma forma, a ocupação indiscriminada das margens destes rios (e também do lago Guaíba) e a redução da mata ciliar faz com que a quantidade de sedimentos que entram no rio aumente muito, assoreando-o, diminuindo a profundidade e limitando a vazão. Mas isto ainda não responde porque temos tanto azar.
Se somos (ou fomos) o país do futebol, a Holanda é o país dos diques. Depois da calamidade de 1953 (mais de 1800 mortes), o país foi além de falar sobre o problema e passou a dedicar recursos (intelectuais e financeiros) para construir um sistema gigantesco de diques, represas e bombas que, além de proteger a população (nenhuma morte desde 53) permitiu o aumento de mais de 15% na área de terra seca do país - usando diques, represas, moinhos de vento para drenagem e um eficiente sistema de canais. Com um terço da sua área abaixo do nível do mar, o Afsluitdijk é um dos diques (com 32 km), operando ativamente um sistema de comportas e bombas que, entre outras coisas, permite o fluxo de espécies marinhas migratórias (alguns sistemas de bombas movimentam o volume de cinco piscinas olímpicas por segundo). Mas nada esconde o fato de que os holandeses tem sorte - todo mundo sabe disto.
Em 2011, quando um terremoto aconteceu na costa leste do Japão, o tsunami que se criou invadiu a costa e destruiu boa parte da cidade, em especial uma usina nuclear, que entrou em colapso e causou a evacuação de milhares de pessoas. Anos depois do acontecido, um relatório sobre a tragédia foi feito e revelou que, de fato, os dois incidentes (terremoto e tsunami) foram eventos da natureza mas o problema na usina foi resultado de falhas na proteção e prevenção de catástrofes (em pouquíssimas palavras as bombas que resfriavam o reator foram inundadas pelo tsunami e deixaram de funcionar, levando ao superaquecimento do núcleo). Depois da tragédia, seria fácil para qualquer um perguntar porque aquelas bombas (essenciais para o funcionamento seguro da usina) não estavam mais adequadamente protegidas. Hoje, muralhas ao longo de toda a costa protegem a linha costeira, confirmando o velho adágio: ‘quanto mais eu trabalho, mais sorte eu tenho’.
Claro que não se pode falar destes assuntos sem falar de lixo. Lixo na rua, lixo no rio, lixo no bueiro, lixo na calçada, lixo que é democraticamente varrido pelas águas da chuva e teimosamente obstrui as mais bem intencionadas estruturas. Mas hoje em dia, ventilar a hipótese que a população tenha responsabilidade sobre a catástrofe é como ‘culpar a vítima’, por isto mudemos o foco para a impermeabilidade das cidades: concreto para todo lado impede que o solo absorva parte de água, que se agrupa e usa o único recurso: deslocar-se verticalmente. Se pelo menos já tivesse sido inventado um tipo de concreto poroso, conectado a um sistema de cisternas e canais: isto sim, seria uma grande sorte (https://www.facebook.com/watch/?v=139036441149229).
Enfim, estes exemplos reforçam o que já sabemos: em 11 anos destinamos R$ 485 bilhões para lidar com desastres naturais sendo que mais da metade foi gasto remediando as consequências das tragédias (ao invés da obtusa perspectiva de prevení-las). Porto Alegre é um bom exemplo: ao invés dos 400 milhões para modernizar o sistema de proteção, será gasta uma quantidade ainda não estimada de recursos para reconstruir a cidade (sem os mortos, claro). mas talvez nem fosse necessário, uma vez que o sistema (com boa manutenção) deveria proteger a cidade de uma elevação de 6 metros. Já se cogita que o custo de reconstrução do estado será de R$ 200 bilhões. Como estes números são muito altos, fica claro que o melhor é deixar o olhar se perder no infinito e esperar. Esperar que a água baixe, esperar que pare de chover, esperar que as casas de bombas voltem a funcionar, esperar que o vento sul amenize, esperar que as barragens não entrem em colapso, esperar que os modestos diques de contenção não implodam. Por sermos um país de azarados, nada mais temos a fazer senão “chulear” (gauchismo) que a situação de normalize, até porque construir um canal temporário na Lagoa dos Patos (que permitisse dar vazão ao excedente de água que desce do Guaiba) traria impactos desconhecidos à vida sentimental do Odontesthes perugiae e isto é algo que nem os povos mais azarados poderiam se permitir.
Atualizado em: Qua 19 Jun 2024