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Professor Frio
Nada mais clichê e deslumbrado que fazer uma viagem internacional e voltar fazendo comparações não elogiosas com a terra natal. Em tempo, aviso que este texto é exatamente assim. Acredito firmemente que o Brasil (ou brasil, como tenho escrito já há alguns anos) e sobretudo os brasileiros precisam de um choque de realidade: ao invés de simplesmente bater com a cara na parede - que acontece sempre - é preciso pensar, analisar, raciocinar e, ao cabo mudar (de preferência de comportamento mas se não der, de país mesmo) ou estaremos fadados ao eterno atoleiro.
Minha experiência recente foi o Canadá mas quase todas as conclusões aqui se aplicam a outros países, que já cruzaram seu Bojador, já são capazes de olhar para si mesmos com um orgulho real, não fantasioso e provinciano. Há que se separar governo de sociedade: em geral, estas sociedades acreditam em si mesmas bem mais do que acreditam em seus governos (parece que criticar governo não é um esporte restrito aos subdesenvolvidos). Parto da seguinte premissa: é caro viver nestas paragens. O frio traz vantagens interessantes - sobretudo para tirar fotos - mas viver com ele durante meses a cada ano exige preparação, planejamento, trabalho constante, recursos financeiros e humanos, em uma guerra constante contra um inimigo implacável e pouco disposto à negociação: o tempo. Tudo isto, o leitor poderia argumentar, deveria ser uma âncora para estes países, que partem em irônica desvantagem quando comparados aos paraísos tropicais onde, em que se ‘plantando tudo dá’ e o desconforto térmico exige colocar usar um blusão a mais. Experimente plantar um tomate e explicar para ele que vai nevar durante 3 meses, com a possibilidade de ventos quentes que elevarão a temperatura para 30°C. No entanto, estão disponíveis para compra em mercados comuns, junto com bananas, melancias, uvas, peras, etc. Cada uma destas variedades viajou mais quilômetros que um brasileiro médio e, mesmo assim, chega, todos os dias, a um preço razoável - considerando sua procedência. Novamente, é fácil perceber a vantagem natural dos países que desfrutam de um clima mais ameno e podem plantar a bananeira no quintal de casa. A energia gasta para manter as moradas em uma temperatura minimamente confortável é enorme, na forma de eletricidade, gás, óleo, com a adicional necessidade de promover ações para diminuir esta enorme pegada de carbono. A infraestrutura, em geral, é maior do que a necessária - o que custa caro, sem dúvida, na forma de estradas, pontes, aeroportos, estacionamentos, disponibilidade de serviços. Cada sensor de incêndio, cada regra sanitária, cada eletrodoméstico, cada regra de trânsito, cada escola: tudo é feito para funcionar, durar e exigir a menor intervenção manual possível. A luta, me permito dizer, continua! Sempre, incólume, alheia aos desejos de conforto e economia.
Baseado neste relato, países com clima frio não deveriam ser mais do que aldeias de esquimós fritando peixe em banha de baleia, o que contraria a realidade. Algo nesta dificuldade inerente à terra desenvolve e fortalece uma musculatura organizacional que transcende as medidas que visam a sobrevivência. O aprendizado que estas condições árduas proporcionam se estende a diversas outras áreas, também porque aqui o comportamento relapso é castigado com a morte - e não é exagero. Saia para acampar nas montanhas sem a preparação adequada e corra o risco de morrer de hipotermia. Deixe de construir tantas hidroelétricas quanto necessárias para gerar a energia que as cidades precisam e pessoas seguramente morrerão. Permita que o processo de liberação ambiental para a construção deste oleoduto seja envolve por camadas e mais camadas de corrupção e o resultado será ter pessoas queimando madeira dentro de casa, para sobreviver. O frio é um professor silencioso e implacável e, enquanto cultura, os países tropicais não tiveram esta aula. tivemos outras, claro, mas não esta e, ao meu ver, ela é fundamental. Em 2001, dois economistas americanos apresentaram s seguinte tese (corroborada por dados entre 1960 e 1990): quanto mais dias com temperaturas inferiores a zero, maior o PIB de um país (https://www.alert-online.com/br/news/health-portal/desenvolvimento-economico-e-condicionado-pelo-clima) - o que é lamentável, pois achei que tinha tido, pela primeira vez, uma ideia realmente criativa e original.
Nem só de organização e planejamento fóbico vive uma sociedade. O nível de compaixão, disponibilidade, correção e respeito de uma pessoa para a outra (sobretudo desconhecidos) parece ser, também, um dos resultados de viver em um ambiente difícil, em que todos conhecem os obstáculos e sabem que, em conjunto é mais fácil passar por eles. Isto significa parar para dar informações ao turista que não sabe onde está, não jogar lixo no chão e separá-lo em 34 tipos (mesmo sem saber que destino será dado para cada um deles), é pagar os impostos devidos - mesmo a contragosto, é ser capaz de negociar em um cruzamento de ruas com carros vindo em 4 direções, respeitar as vagas para idosos, estar atento ao ambiente, contribuir para o silêncio e higiene. Enfim, tudo o que você consideraria atos de cidadania. A diferença é que eles não se limitam a só falar sobre o assunto: eles vivem estas orientações de forma prática e até trivial. E finalmente chego no meu ponto: a regra frio-desenvovimento tem suas exceções (Mongólia e Coreia do Norte no lado frio e Austrália no lado quente) e isto abre espaço para uma mudança de consciência e comportamento, com efeitos macroscópicos visíveis. A natureza não nos ensinou a estocar madeira e comida, no melhor estilo da formiga das fábulas de Esopo mas se podemos seguir o trio elétrico por três dias seguidos, parece razoável pensar que temos o potencial para aprender coisas novas, úteis. Um pouco mais colaboração e diligência, iniciando dentro do seu coração, passando pela sua cozinha e timidamente se estendendo até o seu vizinho, para ao passar do tempo, constatar que somos uma grande família e se para você for necessário invocar o espiritual, esotérico, religioso, metafísico, que assim seja. O passo seguinte é dar escala ao padrão de comportamento e exigir (ou pelo menos esperar) reciprocidade, eleger vereadores que abracem esta ideia, depois deputadores, senadores e quem sabe um dia, um presidente. Mas não podemos esquecer que há uma pressão de tempo: ouvi falar que o sol vai engolir a Terra em 5 bilhões de anos e lá, temo, não vai ter mais frio.
Atualizado em: Qua 14 Fev 2024