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Ateus praticantes

              Durante bastante tempo, pensadores e filósofos acreditavam no iminente fim das religiões, dado o avanço tecnológico e científico que o mundo vivia. Os anos se passaram e ficou evidente que tal previsão não havia se concretizado, embora as razões para isto não fossem óbvias. Da mesma forma, o avanço do desenvolvimento, a melhoria da qualidade de vida, da longevidade, a cura de doenças importantes, a descoberta de fatos científicos relevantes, é inquestionável: a repercussão disto é que trouxe resultados diferentes dos preconizados. Ato seguinte, outra profecia estava pronta para sair do forno: o fim das religiões não vai vir quando a ciência der todas as explicações, virá pelo natural desinteresse e irrelevância que as novas gerações conferirão ao tema. Assim, como uma vela - cujo combustível e o ar disponível se esgotam, previa-se que a religião iria sumir, num silêncio embaraçoso, sem respostas, sem pedidos de desculpas, sem assumir culpas, sem confessar e reconhecer erros. Fácil perceber que também esta teoria fracassou mas novamente talvez não pelos motivos mais óbvios.
              Cabe refletir, entretanto, as motivações e as expectativas para estas previsões: porque alguém se daria ao trabalho de profetizar o fim de algo que basicamente sempre existiu? Que mal poderiam fazer, argumentariam alguns, agremiações de pessoas que se orientam por determinado credo religioso e não por visões ‘unicamente’ humanas? E até antes do que isto, com que autoridade estes grupos seculares se permitem ventilar a existência de uma ética anti-clérica? Muitos destes questionamentos são difíceis de responder, sobretudo sem doses cavalares de opiniões pessoais, valores e uma moral fluida que não se encontra em nenhum livro sagrado, nenhuma pedra lunar ou encantamento. Sem esta base comum, quase todas as linhas de refutação parecem colocar uma opinião ao lado da outra, sem produzir um vencedor claro - o que claramente beneficia o time da casa.
              Recentemente, uma nova peça foi acrescentada neste certame: um procedimento de natureza científica, envolvendo sociologia e estatística: fundamentalmente, um questionário com perguntas abrangendo várias áreas, como moralidade, tolerância, empatia, bondade e casos mais práticos como a receptividade das pessoas frente a temas atuais como mudanças climáticas, casamento inter-racial, casamento de pessoas do mesmo sexo, etc. O fato interessante é que antes de começar a responder as questões, o sujeito precisava identificar a sua denominação religiosa (judeu, católico, muçulmano, budista, agnóstico, ateu, etc). O resultado não deixou margem para dúvida: diferente na narrativa costumeiramente aceita, de que grupos religiosos são sempre mais solidários, mais empáticos, mais bondosos, mais tolerantes, a pesquisa mostra que consistentemente o grupo de pessoas sem afiliação religiosa performou melhor, em todas as áreas pesquisadas. Sim, as pessoas que professavam fé em algum tipo de religião tiveram resultados piores e quanto mais intensa esta fé, pior o score. Por outro lado, quanto menos um pessoa usa preceitos morais originados na idade do bronze e mais cria (em conjunto com a sociedade) sua própria visão de mundo, melhores os seus resultados. Parece óbvio mas receber um selo de qualidade com rigor científico dá à ideia uma conotação de universalidade única.
              Sempre que se fala em religião, se pensa em auto-declaração: por exemplo, eu sou X porque eu me digo, ou me vejo, ou me entendo X. Não é necessário apresentar provas, documentação, cicatrizes ou marcas de qualquer natureza; não é nem necessário a realização (esporádica ou crônica) dos rituais requeridos. Assim, pode até haver um erro ao atribuir as respostas de uma pessoa ao grupo islâmico, por exemplo, só porque ela se diz islâmica. Uma outra forma de ver a questão é segundo as ações práticas e cotidianas de uma pessoa. Para tornar a comparação mais evidente, basta voltar uns 500 ou 600 anos na história. Imagine um momento em que as pessoas realmente temiam raios e trovões - pois sua causa era a fúria de uma certa divindade, quando era justo e certo matar, desmembrar e torturar pessoas por alegadamente ter pensamentos inapropriados e heréticos, um tempo em que o sofrimento e morte eram naturais, não ensejavam solidariedade e eram razoáveis consequências de pecados e crimes cometidos em gerações anteriores? Neste tempo, as pessoas não simplesmente se diziam religiosas, elas ERAM religiosas, elas viviam a religião com parte fundamental de suas vidas. Não era uma atividade de final de semana, ou um posicionamento que as pessoas só lembravam em momentos de ansiedade e medo. O fato de que as pessoas dedicavam quase todo seu tempo livre (aquele não exclusivamente dedicado a tentar escapar da fome e da doença) à rezar, expiar-se e flagelar-se, mostra que a resposta a ‘qual é a sua religião’ era fácil, simples, direta e coerente. As pessoas não tinham uma religião: a religião era o maior aspecto das pessoas.
              Uma situação muito diferente é responder a um questionário pela Internet com uma opção pré-cadastrada de religião e não viver aquela religião no quotidiano. É saber que a Terra tem mais de 6000 anos de idade, que Adão não morreu com 980 anos, é saber que Gênesis não é um relato histórico da criação, é saber que as Cruzadas não eram moralmente justificáveis mas mesmo assim, dizer professar aquela religião. De um lado, aprovar a pesquisa de células-tronco, ser favorável à ideia de que as pessoas tenham o direito de se relacionar com quem quiserem, mas, na linha seguinte, informar que é católico. Possivelmente, isto tem relação ao medo (quem sabe, à náusea) que as pessoas sentiriam se dissessem o contrário: eu, ateu? Claro que não, eu simplesmente não acredito em céu, inferno, pecado original, também acredito na Teoria da Evolução e sinto que a ideia da infalibilidade do Papa é ridícula mas É CLARO QUE SOU CRISTÃO!! A dissonância só pode ser explicada pelo medo da reprovação da sociedade e, porque não, pelo próprio medo de que, no final, possa estar errado e venha a queimar nas chamas do inferno por toda a eternidade, embora eu não acredite em inferno mas há o medo dele, em uma confusa espiral de horror e ranger de dentes. Mas tudo isto pode ser evitado ao selecionar outra opção: sou cristão. Ufa, de volta à segurança. Na prática, agnósticos; na teoria, religiosos: eu os chamo de Ateus Praticantes.
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Atualizado em: Ter 21 Nov 2023

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