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A opressão do Bipedalismo Normativo

              Milhares de anos atrás, um grupo de primatas (possivelmente pertencentes ao PP - Patriarcado Primitivo) resolveu alterar o padrão comportamental e de locomoção da espécie, com o claro objetivo de subjugar minorias e estabelecer uma hierarquia de comando e autoridade. Sob o falso pretexto que esta nova moda traria ‘vantagens competitivas’, o grupo começou a ativamente alterar o padrão de mobilidade, marginalizando cada vez mais as pessoas que tinham a tendência de andar nas quatro patas e não foi necessário mais do que alguns outros milhares de anos para que este movimento, sem o menor respeito pelos direitos das pessoas de escolherem sues membros preferidos para se locomover, triunfasse no seu intento supremacista. Felizmente, uma oposição sempre se fez ouvir, criticando a truculência da normatização do bipedalismo e trazendo a incontestável prova científica que não fomos feitos para andar no modo sp2: a dor na lombar. Indiferentes ao sofrimento de tantos e progressivamente mais famintos de poder e glória, o patriarcado do pé seguia, incólume, sua trilha sangrenta, argumentando que pequenas histórias pessoais - mesmo que trágicas - não deveriam ser argumentos para impedir o ‘progresso’.
              O tom pictórico da narrativa deveria ser suficiente para anunciar o real motivador deste texto mas caso você não tenha achado o parágrafo anterior, no mínimo, excêntrico, saiba que ele foi um exagero intencional. Um extraterrestre ou uma pessoa com suficiente distanciamento emocional da humanidade (eu, por exemplo), descreveria os anos recentes do desenvolvimento da nossa sociedade com menos palavras elogiosas do que a narrativa convencional oferece. É fácil colocar toda a culpa na Internet e nas redes sociais mas pode ser que tenhamos começado a espiral de decrepitude antes, no final da Segunda Guerra Mundial. Os horrores da guerra sempre sensibilizaram, em massa, antigos medos mas agora, com poupança doméstica e conhecendo a vida com um chuveiro de água quente, os adultos (historicamente os estandartes da sabedoria), começaram a mimar seus filhos - uma projeção de seus próprios receios de privação. Esta louvável iniciativa vicejou em campo fértil mas passadas algumas gerações, as pessoas começaram a enxergar as falhas que este arranjo ensejava e a gentileza deu lugar ao abuso, como sempre. Valores como trabalho árduo, paciência e tolerância à frustração transmutaram-se em atributos de menor prestígio, à medida que a complacência ao fracasso aumentava. Dentro deste caldo, começava a cozinhar uma nova estratégia para viver, uma que não exigia tanto dos componentes do passado (como dedicação e horas de trabalho incansável). Inventar um transistor é realmente uma obra prima de genialidade, inspiração, transpiração e colaboração mas falando assim sei que já alieno muitas pessoas, que se ofendem com a noção de que a sociedade só aprecia os frutos do trabalho de pessoas que não sabem dar valor à qualidade de vida. Abria-se assim um espaço de valorização a um trabalho novo, não necessariamente artístico, filosófico ou estético mas igualmente imaterial, tanto nos objetivos quanto nas estratégias e resultados. Partindo da premissa de que o mundo está errado (e assim é por deliberada ação de grupos mal intencionados), o novo papel - neste admirável mundo louco - não é, como você pode estar pensando, implementar as ações corretivas que vão contribuir para mitigar o problema: trata-se de simplesmente ser o porta-voz desta visão. Só isto. Não é necessário resolver o problema (aliás, isto obrigaria nosso personagem a buscar significado para sua vida em outro lugar e isto, sabemos, é muito chato!) e sim, falar sobre ele, de forma incansável, irritando a maior quantidade de pessoas possível e misturando tantas informações quanto possível, garantindo que ao final de qualquer discussão nosso herói saia vencedor - já que o interlocutor deve ter se afogado em um lamaçal retórico de pequenas desinformações, descontextualizações e uma visão limitada e ideológica das interações humanas.
              Em escala micro, esta situação não é socialmente relevante e nem traz consequências ao tecido social mas à medida que o tempo passa e mais e mais pessoas adotam como ‘profissão’ a defesa intelectual e abstrata das causas minoritárias e sociais como substituição a um objetivo de vida, neste momento começamos a sofrer, em conjunto, com a situação. E quando os grandes players (como a mídia) percebem o intrínseco valor que isto tem, inicia-se o processo de realimentação que explica a situação absurda na qual nos encontramos, em que não sabemos mais qual banheiro usar, onde vestir-se de mexicano é ofensa cultural, onde um ator heterossexual não pode representar um personagem gay em um filme. É no momento em que abrimos mão da crítica pessoal e confiamos no consenso do grupo e no suporte da mídia, é que os livros começam a ser queimados (analogia ruim, pois hoje em dia ninguém mais lê livros...). Não se trata somente do efeito manada e do efeito gosma: trata-se de uma forma de encarar os desafios da vida, da visão de nós contra eles, no desenvolvimento de uma intolerância que perversamente nasce sob o manto da tolerância, uma intolerância que não quer debater, não quer nem ouvir e acha que gritar seus argumentos lhe confere uma estatura de dignidade moral. O império da individualidade prepotente está dividindo 8 bilhões de pessoas em 8 bilhões de grupos e nós não temos a menor capacidade de sobreviver (na forma moderna) sem a cooperação em larga escala.
              Isto é um pedido de socorro.
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Atualizado em: Qua 5 Jul 2023

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