person_outline



search

O umbigo de Adão

              Recentemente o ator Bruce Willis foi diagnosticado com demência frontotemporal, uma variante de Alzheimer que acomete pessoas em estágios mais jovens da vida. Sendo um tipo de demência, não tem cura ou tratamento conhecido e reconhecido pela medicina tradicional e por isto sua família optou por uma solução alternativa: usar as redes sociais para fazer uma votação sobre o tratamento mais adequado para o caso. Com milhões de seguidores, a ideia de partilhar este aspecto tão íntimo da vida com a multidão que, de certa forma, lhe conferiu o sucesso profissional, pareceu razoável - sem contar que tira da equipe médica o peso de ter que decidir em torno de uma questão tão complicada.
              Obviamente, o que esta ideia tem de idiótica, tem de irreal (isto não aconteceu) pois quem em sã consciência terceirizaria de forma tão irresponsável uma decisão técnica desta magnitude, sobretudo colocando-a na mão de uma horda disforme de ignorantes na área, cujos interesses convergem tanto quanto os de um bando de gatos ateus? Se você acompanhou o raciocínio até agora, não conseguirá esquivar-se do desconforto que advém do fato de que decisões igualmente relevantes (no espectro político) são tomadas exatamente usando esta métrica: a velha e boa popularidade. Tomemos o mais recente exemplo: a taxa de juros. As teorias econômicas, a análise da dinâmica das finanças em nível global, as experiências passadas, o refinamento das estratégias, todos estes recursos ficam eclipsados e empalidecem frente à ideia de que a decisão possa ser tomada na base da maioria, exatamente como no caso do nem tão velho Bruce. Quais as vertentes acadêmicas que ligam a taxa de juros, através do crescimento da atividade econômica à taxa de desemprego? Em uma obra prima do cinema sobre um futuro distópico, Idiocracy mostra como um joão ninguém americano viaja para o futuro e se depara com uma crise global, em todas as áreas, literalmente ‘salvando a lavoura’ ao convencer os políticos a parar de regar as plantas com energético (pois eles tem eletrólitos e eletrólitos são bons, como 10 anos de propaganda inculcaram no anêmico imaginário coletivo). Da mesma forma como a decisão do curso do tratamento não deve ser feita seguindo as simplórias regras de um concurso de beleza, a taxa de juros (e inúmeras outras decisões) não podem sofrer o achaque da polícia do politicamente correto, que demanda a inclusão e representatividade em todos os aspectos e ambientes. Não, não precisamos de uma pessoa cega no board of directors da Petrobrás, não mais do que precisamos de um flamenguista vesgo ou de cadeirante gay. Precisamos de pessoas hábeis, com conhecimento, honestidade, experiência e energia, para tomar as melhores decisões, independentemente de quaisquer outras características ou identificações.
              Não fosse isto suficientemente difícil de colocar em prática (o óbvio fato de que as melhores decisões são tomadas pelas pessoas mais capazes na área), precisamos nos deparar com a situação de que embora testemunhemos a mesma realidade, nossas percepções são diferentes, muito diferentes. A neurolinguística começa a desvendar porque nossas preferências antecedem nossas convicções, porque são os nossos desejos que moldam a fina camada de intelectualização que usamos para justificar nossas motivações. Complexo? Pois sim mas cada vez mais relevante e assombroso dar-se conta que talvez não estejamos na posição do motorista neste bólido caótico de desejo e incoerência que chamamos de personalidade. Assim, talvez as pessoas não tenham liberdade de fazer as suas escolhas (pelo menos não na monta que julgamos ter), ou nas palavras de Shopenhauer, ‘o homem é livre para fazer o que quer, mas não pode querer o que quer’. O exemplo final retoma a proposta do título: qual o sentido de que Adão tenha umbigo, posto que esta é a cicatriz do parto (evento pelo qual ele não teria passado)? Este questionamento pode tanto servir para o argumento evolucionista, dizendo que o relato não passa de uma história simplista restrita ao conhecimento fanático e supersticioso da idade do bronze, quanto para as hordas eclesiais, que afirmam que embora não tivesse funcionalidade, o umbigo tinha que estar presente em Adão pois não faria sentido que os demais humanos fossem diferentes do primeiro. Tudo depende da verdade que você já adotou, antes mesmo que a discussão tivesse começado.


Pin It
Atualizado em: Ter 21 Fev 2023

Deixe seu comentário
É preciso estar "logado".

Curtir no Facebook

Autores.com.br
Curitiba - PR

webmaster@number1.com.br