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Voto redondo: o processo eleitoral na visão de um terraplanista

              Bertrand Russel, brilhante matemático e filósofo inglês, formulou uma intrigante analogia para ilustrar o já conhecido conceito de que o ônus da prova recai sobre o acusador, não sobre o acusado (no original: ’Ei Incumbit Probatio, Qui Dicit, Non Qui Negat’): existe uma chaleira de chá orbitando algum lugar do espaço entre a Terra e Marte mas ela é pequena demais para ser identificada por telescópios. Além de chocar pela bizarra especificidade da ideia, Russel mesmo dizia que a única forma com que alguém levaria uma afirmação não falsificável em consideração é se ela viesse ornamentada com evidências (práticas ou mesmo teóricas) e explicações, em medida similar à espetacularidade do pleito. Embora fosse um gênio, Russel não tinha que lidar com o Tweeter.
              Terraplanistas ‘plano afora’ testaram e ainda testam os limites da tolerância quando se engajam em discussões sobre a forma deste e de outros planetas. Quando apresentados a uma ideia, como por exemplo, de que em uma Terra plana não haveria massa suficiente para criar a gravidade que sentimos, os arautos retorquem: a sensação de gravidade existe pois o plano da Terra está acelerando, para cima, a 9,8m/s². Ao mudar o foco do pleito, o interlocutor precisa reorientar seus argumentos e desenvolver outro discurso para este novo destrambelho que, invariavelmente, será refutado com base em um despropósito ainda maior. Quando, cansado e frustrado com a conversa, nosso representante da ciência e do conhecimento humano se retirar para afazeres mais relevantes, o terraplanista seguirá, triunfante, para o computador mais próximo para reafirmar na internet que a NASA esconde corpos de extraterrestres.
              Se há algo que temos que aprender com terraplanistas é que, mesmo que odiá-los seja natural e fácil, é preciso pensar em como a situação pode chegar a este ponto, quais falhas se somaram no processo de transferência de informações a ponto de gerar resultados tão diferentes dos planejados. Tal reflexão já foi feita e já é quase consenso que a forma como ensinamos, para crianças, jovens e adultos, é falha, frequentemente incompleta, excessivamente mecanizada, descontextualizada e, tão importante quanto o resto, enfadonha. Grandes comunicadores da ciência, como Neil deGrasse Tyson e Brian Cox, entenderam isto e desenvolveram estratégias para solucionar estes problemas fundamentais e aproximar as pessoas da deslumbrante realidade do mundo. Entre estas técnicas, seguramente não está a ridicularização mas também não está o uso da racionalidade para combater superstições e fantasias. Argumentos, por mais sólidos e dotados de consistência interna, não são suficientes para dissolver nós forjados por crenças e engajar-se neste tipo de disputa, a menos que de forma esportiva, é contraproducente e tardia: a construção da solução começa décadas antes de uma discussão como esta sequer ser cogitada.
              Eleições, sim, eu não esqueci. A crença de que houve fraude (embora nenhum indício tenha mostrado qualquer possibilidade de que isto ocorreu) é inúmeras vezes superior às argumentações de que auditorias internacionais atestaram a lisura do processo. Quando confrontados com o fato de que a alegação X foi investigada e os resultados demonstram que nada de extraordinário aconteceu, estes resultados são questionados (pois supostamente fazem parte de uma conspiração ainda maior) ou são deixados de lado e se parte para o próximo pleito (de que extraterrestres foram vistos votando sem título de eleitor). O processo é o mesmo: pleitos importantes que prescindem de evidências para serem considerados de forma séria e, embora tantos deles sejam analisados, a produção de rumores sempre será mais numerosa que a capacidade investigativa. Não é uma jornada pela busca da verdade e da razão: os proponentes já chegaram lá, na verdade, sempre estiveram lá: são os outros que demoram para ver o óbvio. E agora, que eles desmascararam a farsa, nada mais coerente, sadio e até cidadão, do que subverter o processo e usar de todos os meios para garantir que todos tomem a pílula vermelha. Com exceção da referência a Matrix, acredito que Hitler, Stalin e tantos outros tiveram, em algum momento de suas trajetórias, diálogos internos deste teor: eles viam a verdade e eram caridosos o suficientes para compartilhá-la com todos, inclusive aos que se opunham a ela e os que não apreciavam o enorme poder de convencimento da tortura.
              Algo saiu fundamentalmente errado neste país e pode ter sido uma combinação fatídica e única de sol, Portugal, Estado Novo, ditadura, areias monazíticas, Sarney, redes sociais, Copa do Mundo, iPhone e o acidente com Césio em Goiânia mas este país tem um exército, de tamanho incalculável, capaz de marchar sobre os crânios esfacelados de ex-amigos e ex-parentes para honrar ‘a causa’. Para piorar, existe ainda outro exército, similar em tamanho, que se opõe ao primeiro mas por razões antagônicas, similarmente polarizadas e frágeis demais para serem escrutinadas com sensatez. No folclore da minha família, uma pessoa, já falecida, costumava dizer que não abria a porta dos fundos e da frente da sua casa ao mesmo tempo porque as torcidas dos times rivais de futebol da cidade se encontrariam e brigariam na sala. Não quero propor aqui uma maior representatividade da população esquizofrênica na sociedade mas parece que ele estava vendo alguma coisa ...
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Atualizado em: Qua 9 Nov 2022

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