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Excessos democráticos
A seguinte história foi narrada em uma série de palestras promovidas por uma empresa: um importante e altamente eficaz funcionário começou a se sentir ameaçado por uma nova contratação: outro funcionário altamente motivado e criativo. A sensação inicial de estranheza e desconforto entre os dois rapidamente deu lugar a uma competitividade nociva e culminou, de parte à parte, em ódio. A simples presença do recém criado adversário já era suficiente para tirar o outro do sério e em certos casos, a menção do seu nome causava reações similares. Como a situação só se agravava, a empresa resolveu pedir que ambos fizessem apresentações em um ciclo de palestras mas um deveria apresentar o outro.
O funcionário mais antigo começou sua introdução: “o palestrante que vai subir ao palco agora é um grande profissional, experiente, ágil, criativo e motivado: sem dúvida, agrega um valor inestimável para nossa empresa. Pessoalmente, devo confessar que ele me amedronta e no início, não entendia o motivo. Suas qualidades, de certa forma, são complementares às minhas, ele é bom em coisas que eu não sou, ele tem experiência em áreas que eu não tenho e cada vez que o vejo trabalhar, entro em contato com um certo desespero, uma necessidade de preencher lacunas no meu currículo, na minha forma de falar, de ouvir, de produzir. Acabei me dando conta que minha primeira reação em relação a ele parecia ser de azedume mas no fundo era mesmo constrangimento em relação a atributos meus que eu gostaria que melhorassem. Por fim, me dei conta que a presença dele me ajuda a identificar meus pontos fracos e esta é a única forma de iniciar um processo genuíno de aperfeiçoamento. Com vocês, meu colega de trabalho.”
A história aqui foi propositalmente resumida mas na verdade demorou tempo e muita reflexão para que o funcionário compreendesse seus próprios sentimentos, a origem do que parecia ser antipatia gratuita. Nos dias de hoje, poucas pessoas conseguem (ou mesmo tentam) fazer isto: é necessária uma honestidade intelectual temperada com argúcia para olhar para dentro de si e permitir-se concluir que suas próprias fraquezas podem ter relação com a gênese do problema.
Corta para as eleições de segundo turno do brasil. Possivelmente nunca tivemos dois candidatos tão despreparados para a assumir a presidência de um país mas, no entanto, uma maioria barulhenta tem total certeza de que seu candidato é claramente melhor que a alternativa, a ponto de manifestar isto publica, agressiva e perturbadoramente. Entretanto, 9 em cada 10 eleitores (esta pesquisa não está registrada no TSE), quando perguntado o motivo pelo qual irá votar no seu candidato, responde citando a longa lista de defeitos, erros de julgamento e envolvimento em casos de corrupção do seu adversário. Ninguém cita que vota em X porque X é bom, X é limpo, X é inteligente. As pessoas justificam seu voto argumentando que Y é ruim, Y é sujo, Y é burro. Não é que estes argumentos não sejam válidos e realistas: possivelmente são descrições acuradas destas figuras mas tão verdade quanto isto é que a origem deste voto é a mesma do funcionário apresentado na introdução: provém do medo, provém do pavor que a outra figura suscita em mim, da minha incapacidade de me posicionar sobre situações difíceis. Felizmente (no caso da empresa), o funcionário teve méritos suficientes para identificar a origem pantanosa dos seus sentimentos e conseguir orientar suas ações por sentimentos mais nobres e úteis do que o medo primitivo. Por outro lado, infelizmente (agora para o povo brasileiro), o eleitorado exerceu seu ‘livre arbítrio’ sem tirar o cabresto do ódio que impede contemplar o cenário. Naquele momento solitário na frente da urna eletrônica, quando imaginávamos uma situação democrática e libertária, o que aconteceu foi equivalente a um viciado indo comprar o objeto do seu desejo, da sua necessidade, da sua compulsão, sem crítica, sem entendimento, sem cidadania. Claro que não se pode falar em culpados pois a essência do processo democrático é exatamente esta: deixar as pessoas tomarem decisões de forma autônoma. Vamos continuar aplicando esta fórmula, pois, afinal, ela tem funcionado tão bem ao longo destes anos.
Atualizado em: Ter 1 Nov 2022