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Eximir-se: a primeira prestação do consórcio da ilusória supremacia moral.
Muitas pessoas criticam a raça humana (espero que não seja politicamente inadequado falar de raça) e apontam, com certa propriedade, inúmeros descaminhos, escolhas perversas, egoísmo, etc que macularam e ainda maculam nosso perambular neste planeta (sim, em grande monta, nossas trapalhadas até hoje se limitam preponderantemente à terceira rocha de quem vem da direção do Sol). O raciocínio é falho, ao meu ver, por dois motivos: primeiro porque a porta-voz da crítica escolheu à dedo as realizações humanas que são obtusamente embaraçosas, propositalmente deixando de lado um outro sem número de invenções, descobertas, boas ações, etc - que não serviriam para a causa do momento. Mais importante do que isto, elas falham em perceber que, na grande maioria das vezes, também fazem parte desta tal de raça humana e, por mera lógica, tem a sua parcela de culpa - seja na forma de ação ou omissão. Matematicamente, poderíamos atribuir oito bilhões avos de responsabilidade e autoria a esta pessoa (levando em consideração que parte dela também está na mão de entidades não-humanas (por vezes, desumanas), como corporações, países e igrejas. É aceitável que o argumento pareça abstrato e teórico mas o princípio parece ser válido.
Também há os que criticam o seu país, seu povo, sua cultura e, de igual forma, falham ao perceber que fazem parte deste país, desta sociedade, desta cultura, em um percentual que agora já não é de bilionésimos mas talvez de dezenas de milionésimos. A corrupção da sociedade, a má administração pública, o trânsito e até o mau gosto dos programas da TV aberta (inegavelmente preocupantes) são vistos como problemas de outros, de uma maioria (diferente de mim). O crítico, como Zaratustra, simplesmente é uma pessoa com uma lanterna procurando um homem honesto, que se aparta e distingue do mal e da corrupção, tendo sua moral como escudo e o semblante taciturno como armadura.
Como dizia Franco Montoro “é no município que a vida acontece” e, com efeito, os críticos agora miram sua artilharia para a vida quotidiana das cidades, dos bairros, criticando a praça mal cuidada, a falta de opções de lazer, a sujeira das ruas, a iluminação pública deficiente, as poucas opções de emprego, as enchentes, vendo nestas tragédias mais provas da decrepitude ética dos outros, do raquitismo intelectual das hordas, da patuleia, nas palavras de Elio Gaspari. Ele, por outro lado, flana por encima desta cornucópia de pobreza estética e, sem pudores, ainda permite-se ser agressivo, no melhor estilo professor inglês da época vitoriana, tendo a palmatória como ferramenta de trabalho. A situação agora começa a ficar desconfortavelmente próxima, a responsabilidade e a participação, inclementemente majorada, pois aquele cocô era do seu cachorro, aquele carro estacionado na vaga de deficiente lhe pertencia (não vou desfrutar do potencial da ironia, até porque, acho que não se usa mais o termo ‘deficiente’).
No ato final desta ópera bufa, na reunião de condomínio nosso crítico aluga os ouvidos dos vizinhos para divagar por 30 minutos sobre os problemas que decorrem do mau comportamento do grupo. Certo, são 24 vizinhos e agora já não é possível esconder-se atrás de números gigantescos, corporações poderosas ou políticos em brasília: alguém não tem separado o lixo. Mas ele não se deixa abater e salta de tópico em tópico até confundir ou cansar os já extenuados condôminos. Todo expediente é válido para impedir que se desnude a tácita verdade: a crítica feroz, contínua e desinformada não visa corrigir problemas. Por vezes, não visa nem justificar a hipocrisia das suas próprias ações. O objetivo é estabelecer de forma clara esta pretensa superioridade moral, dissociar-se do problema, isentar-se, eximir-se. De quebra (e só para dar a impressão de não ser muito negativo), as propostas de solução indicam a percepção e sagacidade dignas de gênio. Assim, não somente o crítico não faz parte nem tem culpa do problema como é generoso o suficiente para compartilhar com a escumalha (os reais e definitivos culpados) seus prodigiosos recursos.
Terminada a peça, o público já tendo se ausentado, recolhido na privacidade conspurcada do seu dejetório, nosso crítico se mira no espelho e busca, afoito e desassossegado, um culpado para responsabilizar pelos odores que tomam de assalto o recinto. “Malditos vizinhos ...” dirá ele, sem ao menos parar para refletir como se tornou esta submetralhadora de sentenças e porque ele tem esta necessidade contumaz de tentar se elevar mesmo que para isto seja necessário desprestigiar os demais.
Atualizado em: Ter 1 Nov 2022