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Democracia. Mas acompanha fritas?
Recentemente, um comentarista político norte-americano de tendência conservadora (Matt Walsh) produziu um documentário sobre um tópico atual e complexo: a questão de gênero. Sua estratégia desarmava seus interlocutores, tanto pela simplicidade quanto pela originalidade e focava-se em fazer as perguntas mais simples, fundamentais e necessárias. Desta forma, ao adentrar em uma passeata pelos direitos das mulheres, ele simplesmente perguntava: ‘o que é ser mulher’, enquanto registrava, ao melhor estilo Sacha Cohen, as respostas zangadas de uma multidão de ofendidas. Não acredito que, de fato, as pessoas não sabiam a resposta para as perguntas: elas simplesmente não queriam admitir que a resposta óbvia implodiria o castelo ideológico onde elas há tanto moravam e, por receio de virar um sem-teto de utopias, melhor partir para o ataque.
No brasil de hoje vivemos os temores de que retrocessos políticos coloquem a perder liberdades pessoais que temos como tão caras. Neste certame, costumamos invocar um conceito quase místico, omnipresente e todo-poderoso mas paradoxalmente frágil como um floco de neve: a democracia. Algo acontece que nos dá medo e já apelamos para o mantra ‘ameaça à democracia’, ao mesmo tempo em que cremos que é a democracia que vai nos salvar do destino miserável planejado para o gigante da américa latrina. Com boa vontade até dá para entender a origem da confusão mas o melhor remédio, no caso, é seguir a receita de Walsh e antes de perguntar ‘o que a democracia pode fazer por mim?’, indagar ‘o que exatamente é a democracia?’. Fácil: um sistema de governo onde o povo tem direito de tomar as decisões administrativas ou (corolário salvador) apontar representantes que o façam. É isto e só isto. Não garante que as decisões tomadas sequer estejam no interesse deste povo (embora a constituição faça ingênuas promessas à respeito): simplesmente delibera sobre o processo de tomada de decisão. Assim, quando deputados se reúnem e decidem que as verbas do relator serão secretas, é a democracia em seu mais alto estágio, funcionando à perfeição. Não sei se isto seria digno de aplauso mas é esta mesma democracia que é mencionada e lembrada de forma quase ritualística, como um mantra de proteção. Scricto sensu, a ideia parece meio frustrante, limitada, necessária mas nem de longe suficiente. A perspectiva que também importa (que envolve dignidade, liberdade e cidadania para uma população) vem sempre condicionada a fatores externos, temporais e os políticos vendem uma sensação de resignada acomodação frente a isto, que a imprensa compra e revende barato. Se a nossa versão de democracia limita-se às eleições, até que ponto podemos dizer que somos um país democrático? Faz sentido em um discurso na OEA ou no churrasco na laje mas e a tal da realidade, como fica? Se as práticas do governo estivessem representadas na constituição, o clientelismo seria o primeiro e mais importante parágrafo. Democrático? Uma carga tributária incompatível com os serviços disponibilizados e com o mínimo de bom-senso, uma habilidade administrativa infantilmente intransigente e retrógrada: nada disto soletra democracia. É o problema do parágrafo anterior: gostamos da noção que somos um país democrático (muito melhor que era o Congo Belga) e temos dificuldade em revisitar o que justifica esta assertiva com clareza, mesmo frente aos mais inegáveis dados de realidade. Pessoalmente, acho que isto não é uma democracia (latu sensu), mesmo que consigamos repetir alguns rituais que as democracias estabelecidas tem. Paradoxalmente, talvez o único ato desta ópera bufa que realmente funcione seja o voto eletrônico (muito mais, por exemplo, do que a representatividade dos políticos ou o show que somos obrigados a assistir a cada dois anos). Votar no mais popular, no ator mais bonito, no candidato com o cabelo melhor, no que promete as coisas mais deliciosamente impossíveis: isto é democrático? Na visão de muitos, sim, e segundo a Wikipedia, também. O conflito advém do fato de que quando falamos em democracia, implicitamente imaginamos direitos iguais, oportunidades iguais, responsabilidades iguais, deveres iguais, justiça e considerando isto, fica muito difícil não constatar que o rei está nu. E morto.
O que teria acontecido se a invasão do Capitólio tivesse ‘dado certo’ e Trump se mantivesse na presidência? A democracia teria acabado? Da forma como falamos, ela voltaria, triunfante, solitária e indestrutível, para recolocar as peças no lugar. Não creio: talvez o povo americano fizesse isto, talvez as instituições fossem usadas para que pessoas chave conseguissem reorganizar o celeiro. A democracia não é um fim em si, não é sequer um objetivo: é o resumo de milhares de ações, coerentes com alguns pressupostos. Muito mais do que um selo de qualidade, é um espectro, digno de gradação, fugaz, elusiva, mais ou menos como a sua balança: você não busca encontrar um peso menor (ou pelo menos não deveria) mas faz sentido buscar hábitos que levem a isto. Uma contraprova? É só parar de fazer exercícios e comer direito que o peso adequado vai embora, tão rápido quanto a democracia em um golpe de estado. No nível pessoal, é possível fazer a comparação com a felicidade: não é um objetivo ou um destino: é o simples resumo de como encaramos cada um dos incontáveis momento que formam a vida. Perseguir a democracia é tão vazio de significado como perseguir a felicidade - não porque a democracia não tenha inúmeras virtudes (em comparação a outros regimes) mas porque é fácil perder-se em um quarto escuro na busca de um objeto que não está lá. Além de não achar nada de concreto, perde-se tempo que poderia ser bem melhor empregado em outras coisas. A democracia, como um atributo descritivo de um sistema, é muito válida mas não é o final da jornada - muito mais precisa ser criado e administrado para que os objetivos de desenvolvimento e qualidade de vida sejam atingidos. Chega de perder tempo com miçangas.
Atualizado em: Dom 31 Jul 2022