- Cartas Diversas
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Devolva meu coração!
Ei, você pode devolver meu coração?
Deve estar aí no meio das suas coisas, perdido no fundo de alguma caixa, talvez aquela caixa que você guarda as recordações.
Aquela caixa que temos desde quando adolescentes, que até papel de bala tem lá dentro.
Igual aquele caderno enfeitado que a gente passava para todos os amigos registrarem uma dedicatória, um poema, uma declaração de amizade e que naquele momento era para todo o sempre.
Não sei a sua, mas a minha caixa é bem grande e colorida, guardo muita coisa, desde embalagem vazia de Toblerone, até umas folhas que eu ganhava de um menino que roubava do jardim da escola, só porque ele sabia que eu adorava o veludo das pétalas.
Em uma delas tem a data, mas o tempo desbotou. Não consigo enxergar, só imaginar que ano era.
Ah, tem também ingressos de cinema, do primeiro filme que assisti. E quantos bilhetinhos de correio elegante. Fofos.
Sabe aqueles acrósticos ? tem vários com meu nome, era moda fazer verso e prosa desse jeito, e como meu nome é curto, era facinho. Se bem que eu ganhei alguns até com meu sobrenome e nome do meio , esses tinham talento.
Só não tem algumas fotos que rasguei, em um surto dolorido de limpeza, e para falar a verdade, nem me lembro mais quais eram.
Só sei que chorei rasgando, e joguei fora.
Mas não consigo me lembrar mais da dor. Que coisa.
Estranho como nosso coração vai e volta..A gente dá, e a gente toma, ou pede , como faço agora.
E mais estranho ainda é admitir, não pensa você que tenho vocação para hipocrisia, é que eu também joguei uns corações alheios lá dentro, também recebi e não quis. Eu também já tive que fazer resgate. (ah, nem foram tantos assim) e devolve-lo ao seu dono.
Mas é que muitos vinham sem capricho, de qualquer jeito, meio atrevidos.
Na verdade eu nunca pedi de volta, sempre deixei o tempo se encarregar da reforma, Mas não é mais como na adolescência , quando eu tinha todo aquele tempo para esperar a reconstrução.
E também, vamos ser sinceros, é porque eu me arrependi de ter lhe dado. Do mesmo jeito que me arrependi quando dei aquele meu vestido de baile para uma secretária que depois, só depois fiquei sabendo, falou mal porque queria também os sapatos para combinar.
Ah, mas como a gente tem mania de projetar, e eu faria dessa forma, pode ser que você não o coloque em caixa bonita de recordação, como eu faria. Talvez você nem tenha uma! oras, que bobagem eu romantizar assim.
Aí lembrei que mais provável é que esteja caído atrás da máquina de lavar, ou da geladeira.
Suponho que seja mais capaz atrás desse móvel gelado mesmo, branco e intransponível, como da última vez que lhe vi.
Verifique por favor, não é que não tenha mais um coração, é que dos pedaços que ficaram a regeneração se faz, mas estou com pressa, quero ele inteiro do jeito que estava quando você o recebeu.
E o partiu..
Mas agora não é mais seu, e mesmo que ainda fosse um tiquinho, eu não quero mais dar para você. Larga de atrevimento, só quero que você tente imaginar onde ele pode estar..
Se conseguir imaginar, se sonhar e lembrar como ele era, vai lembrar também que quando eu lhe dei, ele estava embrulhado em papel cetim vermelho, com um laço de veludo do mesmo tom.
Um luxo! Pois é bem assim que eu o entrego para as pessoas que mais admirei, mesmo que ele já tenha voltado embrulhado em papel de pão.
Não tem importância, eu já fiz e refiz esse laço , arrumei outro papel cetim, só que agora, pensando bem, talvez de outra cor. Talvez eu reformule um pouco essa doação.
Estou pensando nisso, pois aprendi, meio tarde, é verdade, que não é prudente entregar nosso coração já de cara todo enfeitado da cor do amor.
Pra que tanto enfeite se ele pode voltar quebrado? Deixarei para enfeitar aos poucos, sem afobamento, de acordo com o merecimento. E sem pressa.
Vera Gallerani