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Porque você não olha para mim?
No caso de algumas espécies, o trabalho conjunto se mostrou mais eficiente que o trabalho individual, aumentando, como resultado, a probabilidade de sucesso na dificílima tarefa de sobreviver. Nossa espécie é um exemplo onde a colaboração produziu resultados importantíssimos que nos permitiu avançar eficazmente não só no nosso desenvolvimento mas na nossa capacidade de interagir com o meio em maneiras cada vez mais vantajosas, para nós. Culturalmente, isto forjou a noção de solidariedade, empatia e filantropia embora ao passar das eras, um viés intelectual/moral conectou este traço estatisticamente humano com a noção de valor ou qualidade do indivíduo. O que nasceu como uma vantagem adaptativa objetivando a majoração da sobrevivência da espécie tornou, mediante alguns contorcionismos filosóficos (e religiosos), sinônimo de selo de qualidade. Mais do que isto, a visão moderna deste traço comportamental perdeu contato com suas raízes e motivo de existência: não passar fome, não morrer, não congelar.
Sob esta ótica, o inato desejo humano de interagir com seu grupo é tão previsível e necessário quanto dormir ou fazer sexo. Á medida que o tempo passou, entretanto, as necessidades práticas mudaram, muito mais do que a nossa natureza e este descompasso traz problemas novos que apenas agora estamos começando a compreender mas ainda muito longe de conseguir antecipar. Ninguém conseguiu antecipar, por exemplo, que a adesão a redes sociais aumentaria o índice de suicídios entre os mais jovens, mesmo que tais redes não tenham sido construídas com este objetivo em mente (espero). Inteligentes que somos (até porque somos nós que definimos o padrão de inteligência), de tanto olhar este novo jogo de xadrez, em algum momento vamos entender as regras mas agora somos como focas curiosas observando uma cirurgia cerebral.
Há muito tempo, para contribuir significativamente para o sucesso e longevidade do grupo era necessário fazer alguma coisa, descobrir algo, ter uma ideia, aperfeiçoar um solução já existente. Então, você ia lá e descobria um novo elemento químico, uma forma de fixar nitrogênio nas raízes das plantas e aumentar a eficiência agrícola mundial em 30%, inventava um transistor, um foguete, uma forma de purificar a água. Como se poderia imaginar, as primeiras descobertas foram as ‘mais fáceis’, como frutas maduras em galhos baixos (na verdade, não. Descobertas e invenções são sempre rupturas benignas do saber e só acontecem quando oportunidade, criatividade e genialidade se encontram, mesmo que seja na invenção da roda). Hoje, que o próton, neutron e elétron já foram descobertos, sobram fugazes combinações de partículas mais matemáticas do que materiais, que aparecem quando as jogamos uma contra as outras a velocidades inimagináveis. Não dá para fazer isto na garagem de casa. Basta ver a demonstração de Andrew Wiles para o último teorema de Fermat: é incognoscível até para boa parte dos matemáticos. Todo mundo usa a internet mas aposto que 0,01% consegue ter uma conversa minimamente coerente sobre o cadeadinho que aparece nos browsers e confere a ‘segurança’ para as operações. Enquanto smartphones e smartTVs ficam cada vez mais capazes, nós, por outro lado, ficamos cada vez mais perplexos nesta selva enigmática e críptica de siglas e tecnologias indistinguíveis de mágica.
O desejo expresso na introdução, entretanto, não foi atenuado e a pressão da sua não satisfação soma-se aos demais motivos para o aumento da ansiedade e tensão na sociedade. Eu quero e preciso interagir com este mundo novo, que funciona com regras diferentes, para as quais meu esforço de adaptação parece estar trazendo pouco resultado. Além disto, histórias que envolvem ‘uma vida de sacrifícios’ não são tão cativantes quanto foram no passado e resultados instantâneos são almejados. Tudo isto redunda em uma estratégia simples (mas embaraçosamente eficiente). Se ganhar um prêmio Nobel é muito difícil (exige muito tempo, talento, energia e foco), é necessário buscar alternativas. Mas como sentar na mesa dos distintos e reverenciados se, em essência, não tenho o que é necessário para me colocar lá?
Antes de rejeitar a ideia que será apresentada por achá-la preconceituosa, elitista ou discurso de ódio, peço licença para incentivar o leitor a deixar as respostas prontas de lado e refletir sobre a perspectiva. Resumidamente: se não posso encantar pela inteligência, beleza ou ideias criativas, vou surpreender pelo choque, pela agressão ou pelos apelos exigentes de solidariedade. O ditado ‘se não pode ser inteligente, seja engraçado’ foi aperfeiçoado, para acomodar os não inteligentes e não engraçados e levado a extremos que tiraram totalmente o foco das primeiras categorias. Mas não é tão fácil quanto parece: se eu disser que me identifico com um ferro de passar (do ponto de vista de gênero), a narrativa precisa estar envolvida em outra, mais ampla, que explica que não tive opções e sou fruto da minha genética somada à minha história. Mais do que isto, preciso eliminar a pretensão do meu ouvinte a ter uma opinião sobre a minha questão e a melhor forma de fazer isto é partir para o ataque imediatamente (quem ele pensa que é para falar de mim, sem me conhecer? Ferro-fóbico não binário!).
Assim, visando visibilidade e reconhecimento (características inatas) mas afetado pela dificuldade da tarefa, as pessoas escolhem o segundo melhor (o choque) mas para isto, pagamos o preço da pretensão, do desrespeito e do desequilíbrio nas relações. Como sempre, não se trata de criminalizar ninguém mas precisamos deixar de lado o medo de criticar padrões de comportamento nocivos como este, pelo simples e óbvio fato de que não trazem benefícios para grupo.
Atualizado em: Seg 11 Jul 2022