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O Bolsonaro dentro de cada um de nós

              É praticamente impossível definir um ser humano: uma quantidade quase infinita de facetas que se sobrepõe e mutam constantemente faz com que o gênero humano seja um surpreendente enigma: um milagre químico que sonha, como dizia Alfredo Conde. Entretanto, seu comportamento coletivo é paradoxalmente mais previsível, embora nos esforcemos intensamente para nos desvencilhar da imagem de primatas.
              Desde a predileção por alimentos gordurosos e ricos em energia, passando pelo sexo e indo até a proclividade em economizar energia, não há traço comportamental humano que não possa ser reduzido à uma essência primitiva, moldada em uma evolução agonizantemente longa, temperada por constante experimentação. Claro que sofremos do viés do vencedor, pois não vemos os incontáveis 'erros' que nosso gênero produziu e nem podemos contar os milhões de corpos a eles atribuíveis. O que é inegável, entretanto, é que o que era útil 20 mil anos atrás, pode ser, além de inútil, inconveniente nos dias de hoje e, por mais que tentemos racionalizar nosso comportamento, certas matizes são, por assim dizer, mais fortes que nós mesmos.
              A tribo: a família estendida, o primeiro agrupamento, cuja definição era tão simples quanto útil: nós e os não-nós, sobrevive em diversas línguas até os dias de hoje (por exemplo 'deutsche', o povo, a gente). Cedo se viu que existiam outros, fora do grupo e temê-los era a obrigação de facto daqueles tempos. O que eles estariam fazendo ali? Intercâmbio cultural? Com certeza estavam ali para roubar a nossa comida, capturar nosso povo ou simplesmente extravasar a tensão matando a todos. Temê-los era só o início: ativamente combatê-los era a palavra de ordem, sem questionar, sem preocupar-se sobre quais seriam suas reais intenções, sem 'safe spaces', sem 'triggers'. Este é um ótimo exemplo de uma característica que foi vital para a sobrevivência no passado e que hoje, é pouco relevante na melhor das hipóteses e contraproducente na maioria dos casos. Da mesma forma, entretanto, que não conseguimos racionalmente desligar genes relacionados a demandas do passado, não conseguimos, de forma imediata, nos livrar por completo de certas pedras angulares que forjaram nossa existência por tanto tempo. Longe de mim ter qualquer aspiração antropológica sobre o tema mas parece que temos o que é necessário para sermos explorados de uma forma embaraçosamente tosca, quando alguém, premeditamente ou não, usa destas referências trogloditas que tanto eco tem na parte mais antiga de nosso cérebro.
              Embora alguns sejam capazes até de arregimentar argumentos eloquentes para redarguir as ideias mais bárbaras, é preciso aceitar que a dialética do nós versus eles toca de forma profunda o nosso entendimento de nós mesmos, assim como a ideia de supremacia (seja militar, intelectual, esportiva). Não é de outra forma que os grandes ditadores capturam o imaginário de um povo, apelando para aqueles sentimentos menos evoluídos, menos sofisticados, mais simplórios, que prescindem de adjetivação pois podem se fazer presentes e claros pelo tom de voz, pela agressividade do discurso, pelo projetada imagem de superioridade. Algo dentro de nós vibra quando ouvimos um som com esta frequência, mesmo que não saibamos explicar, mas tenhamos presentes que algumas pessoas conseguem tocar uma música inteira com estes tons, que encantam aquela parte mais animalesca que cada um porta dentro de si, um eco desengonçado de uma tenacidade antiga, mistura de tragédia grega com Tarzan das selvas.
              Não é razoável pensar que em curto prazo este estado de coisas irá mudar radicalmente - eliminar este apêndice cultural será obra da evolução - mas não é impossível identificar esta característica, que hoje funciona como uma limitação, e pelo menos mitigar esta fragilidade de forma que não sejamos explorados por esta faceta tão humana e ao mesmo tempo, tão anacrônica.
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Atualizado em: Sáb 2 Jul 2022

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