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Meu ditador malvado favorito

              Embora tenham características em comum, nem todos ditadores são iguais e, como um esporte olímpico, podemos usar algumas métricas para ver quais os que mais se destacaram no cumprimento de suas missões divinas. Sim, em geral a retórica usada por um ditador sempre busca respaldo nas instituições religiosas locais, como forma de evidenciar a superioridade moral de suas aspirações. Ao passo que no passado este tipo de regime era a norma, o passar dos anos tem nos mostrado que os regimes ditatoriais tem sido menos numerosos, menos influentes e, de certa forma, menos intensos. Ou assim pensávamos.
              Atualmente termos como fascista, nazista e até ditador perderam, nem senso comum, sua identidade de significância e passaram a ser simplesmente xingamentos, por vezes intercambiáveis - para aflição dos historiadores e cientistas políticos. Em suma: um ditador é aquele que administra um regime ditatorial que, por sua vez, pode ser descrito pela inconteste predileção pela centralização, desmantelamento sistemático da oposição, controle austero de aspectos da sociedade, como imprensa, política, economia e justiça. Etimologicamente, a palavra ditador vem do Latim pelo verbo ‘dictare’, no sentido de dizer repetidamente e quando a República Romana se encontrava em situações de agrura, os cônsules nominam um ditador, que assumiria o governo até que a situação voltasse à normalidade. Não por acaso (mas obviamente sem conhecimento de causa), a cantilena ditatorial começa com a necessidade de medidas extremas para combater um mal iminente e termina - eventualmente - quando nenhum outro perigo se apresenta e o poder pode ser devolvido à sociedade. Obviamente, o próprio ditador garantirá que a situação nunca volte ao normal, justificando a manutenção do sistema de exceção e ainda vendendo a ideia do messias salvador. Alguma similitude com a nossa história ? No célebre filme ‘Tanga. Deu no New York Times’ Henfil satiriza magistralmente esta classe taxonômica em especial: o ditador sul-americano.
              Como é medida a capacidade de um ditador ou o tamanho do legado que deixa à sociedade, às relações internacionais e mesmo à História? Em geral os critérios são a intensidade da repressão a opiniões divergentes, os métodos de coação física, a interferência na justiça, a manutenção no poder a qualquer custo e os milhões de mortos. Em 1969 Muamar Al-Kaddafi tomou o poder e condenou à morte qualquer pessoa suspeita de tentar formar um partido político, Pol Pot exterminou 25% da população do Camboja em 4 anos, Robert Mugabe comanda o Zimbawe desde 1980 e tem na sua conta 5 milhões de mortos e em 2009 lançou a nota de 50 bilhões de dólares - o que dá uma dimensão do seu comando sobre a economia. Na nossa américa latrina não podemos esquecer de Pinochet mas seus números estavam em outra liga (3 mil mortos e 30 mil torturados). A série A da Liga dos Ditadores conta com figurinhas carimbadas como Hitler, com 17 milhões de civis, entre os quais 6 milhões de judeus mas, ao contrário do consenso leigo, não foi o mais eficiente em sua posição. Stalin, o Homem de Ferro, matou 14 milhões de agricultores na União Soviética, meramente por teimosa incompetência administrativa. Hor concour, efetivamente, foi Mao Zedong, líder comunista de ironicamente Democrática República da China, que matou 5 milhões de pessoas no seu próprio país nos primeiros 5 anos de governo mas que ao total atingiu o imbatível número de 78 milhões de mortos, resultado de violência, repressão, incompetência e fome. Com justeza, até hoje é herói para certo extrato da sociedade chinesa.
              Decerto você acredita que, no lugar de Stalin, teria feito melhor, teria mantido a supremacia política sem violência, sem expurgo e sem pogrom. Você, que deve ter-se em alta conta, não cometeria os mesmos equívocos de Saddam Hussein, Mussolini, Idi Amin Dada ou Papa Doc e teria inaugurado uma página inédita na vida política deste planeta. Você seria o bom ditador, justo, sensível, incorruptível, transparente, hábil e enérgico. Más notícias para você, então: todos os listados anteriormente se achavam (ou se acham, como Mugabe, ainda no poder) os pais do país, os defensores da verdade, os iluminadores do caminho, paladinos da justiça, defensores na moral. Qual nada!
              Antes que se pense que esta ladainha pantanosa é anacrônica e que não entrou no século XXI, cabe lembrar que neste momento, 49 regimes ditatoriais estão em andamento (18 na África Subsaariana, 12 no Oriente Médio e Norte da África, 8 na Ásia, 7 na Eurásia, 3 nas Américas e 1 na Europa). Sou também culpado de, diante deste embaraço para a espécie humana, focar minha preocupação no único exemplar europeu. Bem, é a Bielorússia de Luckashenko e ao seu lado, na Eurásia, temos a própria Rússia e seu parceiro asiático China. Uma coisa é ler nos livros de História os desmandos autoritários de reis, usurpadores da Idade Média e conquistas de países como se fosse o jogo War, outra é ver que nos dias de hoje, este tipo de arranjo político ainda existe, pessoas ainda morrem às pencas por isto, famílias são marcadas para sempre por morte, prisão, envenenamento, tortura ou simples desaparecimento. São pessoas, como você e eu, estatisticamente a não mais de 6 graus de separação de nós, que choram, riem, lutam, vivem.
              Colocando os fatos desta forma pedagógica e ligeiramente sensível, fica mais fácil entender a reação de tentar arrancar a cabeça da pessoa que fala ‘o que o Brasil precisa é a volta da ditadura’. Nem toda ignorância merece ser perdoada. Putin é um ditador moderno, que prefere fraudar eleições a suspendê-las, invadir países autônomos sob pretextos de salvar o povo (aprenderam isto com os americanos, claro), resgatar laços históricos (de usurpação e invasão) e trabalhar lado a lado com uma oligarquia obscenamente rica que lhe dá apoio em troca de favores escusos. E não está sozinho. O sonho democrático, que fique bem claro, não é um presente das estrelas: é uma conquista. É frágil, frugal, transparente e silencioso. A melhor receita para perdê-lo é enxergá-lo como indestrutível, omnipresente e resistente a decisões ruins.
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Atualizado em: Seg 14 Mar 2022

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