- Artigos / Textos
- Postado em
O dia em que o YouTube parou
Durante anos os economistas de várias matizes se digladiaram em torno de formas de alcançar o santo graal da macroeconomia: o pleno emprego. Nele, a grande maioria da população economicamente ativa está empregada mas frente à dificuldade de alcançar este objetivo um grupo de economistas, políticos e ex-jogadores de futebol percebeu que seria mais fácil redefinir o problema e o critério de êxito. A ideia até que era boa: substituíram ‘economicamente ativa’ por ‘digitalmente ativa’ e a consequência disto é que ocupações até então fúteis, inúteis ou até claramente nocivas ganharam o status de respeitabilidade equivalente às posições mais tradicionais. Mais do que isto, os incentivos financeiros direcionados a estas modalidades começaram a estimular as pessoas a ingressar neste mercado. O sucesso foi rápido, ou pelo menos assim os resultados foram apresentadas ao público.
Por ironia do destino, foi exatamente no YouTube onde detectou-se os indícios do que mais tarde se revelaria uma tragédia, quando as métricas de desempenho da empresa começaram a se deteriorar. Engenheiros de software, peritos em transmissão e compressão de video, experts no design de sistemas distribuídos de alta performance, enfim, o cerne intelectual da empresa, paulatinamente começou a deixar seus postos de trabalho para se dedicar ao novo emprego-tendência do momento: a criação de um canal para divulgar suas ideias. Infelizmente (mas previsivelmente), faltou gente para manter a lojinha aberta.
Padrão semelhante se repetiu em vários segmentos da economia dita ‘real’: finanças, varejo, petróleo e gás, todas sucumbiram à falta de pessoal e os que ficaram passavam o dia olhando videos de pessoas que antes trabalhavam e agora contam suas experiências, dificuldades e traumas. Em um piscar de olhos, ‘fazer’ foi obsoletado por ‘falar sobre fazer’ e esta obsolescência desencadeou um frenesi que deixou a reação ainda mais rápida. Em pouco tempo, a energia elétrica estável era um luxo, conseguir uma consulta médica era virtualmente impossível - pois todos os médicos estavam fazendo vídeos, ironicamente, sobre como é a vida de um médico. Forças policiais se desmantelavam enquanto cresciam os canais sobre defesa pessoal e ordem pública. Entretanto, possivelmente foi no agronegócio e na logística onde o efeito se fez mais presente: itens básicos de alimentação sumiram, na mesma velocidade em que canais sobre viver só da luz do sol se multiplicavam. E quando tudo parecia perdido e sem solução, veio o golpe final: dificuldades técnicas, administrativas e financeiras fizeram com que o site com uma receita superior ao PIB da China, pela segunda vez em sua história, ficasse fora do ar (a primeira foi em agosto de 2013 e ficou 3 minutos fora do ar, o que reduziu o tráfego de internet do mundo em 40%). Como um todo, podemos dizer que a sociedade recebeu a notícia com a maturidade e controle emocional de um bebê de 20 dias: pânico e caos em todos os níveis trouxeram a dinâmica das cidades à era da barbárie e só não foi pior porque já fazia tempo que ninguém mais saía na rua. A saída óbvia (um app que implementasse brutalidade policial) não pode ser usado, por questões óbvias.
Muitos anos se passaram até que a maturidade da sociedade voltasse aos níveis de 1800, grande parte da produção técnica, intelectual e filosófica foi perdida (2030 foi o ano marcado pela digitalização de todas as obras já produzidas) e a solução de buscar a sabedoria da geração mais velha não foi particularmente útil pois esta mesma geração aprendeu a resolver conflitos em sites de simulação de relacionamento interpessoal. Usando palavras do jargão médico: o procedimento foi um sucesso mas o paciente morreu.
Atualizado em: Ter 1 Fev 2022