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Democracia qualificada
Sempre que fala-se em democracia surge a imagem de um sistema perfeito, pronto, funcional e imutável, herança grega que prescinde de intervenções. Para Churchill, era a pior forma de governo - com exceção de todas as outras mas esta anedota traz uma mensagem de crescente importância: a democracia não está em perigo mas a eficácia da democracia, sim. Para ser preciso, a democracia também está em perigo sempre que invadida pelo populismo, sempre que pervertida por agendas ocultas mas neste momento quero me dedicar a outro tipo de perigo: o perigo de que mesmo funcionando à perfeição, a democracia não traga os resultados que a sociedade espera e demanda.
Recentemente, os ingleses foram convidados a escolher se queriam ou não continuar participando da UE. Ao longo dos últimos anos, teses de doutorado foram geradas tentando entender a complexa dinâmica da gestão e performance dos arranjos financeiros em larga escala, quais as melhores soluções, quais os problemas mais importantes, quais políticas de incentivo são necessárias, em um sem fim de ajustes críticos, invisíveis ao grande público mas cruciais para o seu dia a dia. Subitamente, entretanto, Arthur e Margareth foram convidados a tomar uma decisão cuja complexidade estava muito acima de seus conhecimentos mas cuja repercussão poderia mudar seus destinos, felizmente, de uma forma que eles não suspeitam. Depois das eleições, a segunda procura mais frequente na Google na Ingleterra era “O que é a União Europeia”. Mas como uma democracia esclarecida e eficiente pode se colocar nesta periclitante situação que ameaça sua própria continuidade? A resposta está no intransigente respeito ao entendimento de que todos tem direito a expressar sua opinião e que todas as opiniões contam. Ledo engano.
Tirando os filmes de Hollywood, quando o piloto do avião desmaia, não necessariamente o passageiro da poltrona A1 vai levantar e pousar o avião, quando a cirurgia precisa ser feita não queremos ouvir opiniões nas redes sociais sobre qual a melhor estratégia para remover aquele tumor no cérebro. Em momentos assim não queremos igualdade, não queremos privilegiar a sensação de importância das pessoas: queremos ter o problema resolvido, queremos ter sucesso na empreitada. E isto não é feito avaliando a solução mais frequentemente mencionada: é feito dependendo de anos e anos de conhecimento e técnica, forjados nas tentativas com e sem êxito, esforço continuado, solitário ou colaborativo, inexoravelmente se afastando do ideal de maioria e coletividade. Nestes momentos, queremos a elite.
O que nos remete ao problema fulcral: quais são os problemas que devem ser resolvidos com a participação da comunidade e quais devem ser geridos por minorias com conhecimento e perícia pertinentes ao problema. A solução grega (todos os cidadãos se reúnem na praça central e definem os novos rumos) funcionou durante bastante tempo, com problemas mais simples, técnicas menos elaboradas, sem internet. Agora, temos que decidir o que fazer com o estudo de células-tronco, temos que avaliar se estamos causando a ruína do ecossistema, precisamos avaliar se queremos continuar a escravizar outras espécies animais. Como decidir isto? De forma coerente, que leva em consideração dados, fatos, pesquisas, avaliações e dados confiáveis ou usando a jogada populista e covarde que simplesmente tenta se desfazer do problema colocando-o no colo do ‘povo’?
Democracia qualificada (ou mais especificamente democracia com representatividade qualificada por conhecimento) é uma sistema de organização social na qual todos tem direito a expressar suas opiniões mas estas serão ponderadas pelo grau de profundidade e relevância do conhecimento que a pessoa tem sobre o assunto. Assim, o meu voto sobre um assunto que envolve artes plásticas tem menor valor que aquela pessoa que trabalha com o assunto, tem formação na área, dispõe de informações qualificadas sobre o assunto. Em um contexto como este, todos devem ser encorajados a buscar a formação e o conhecimento necessário para que sejam ouvidos, não por que falam alto mas porque suas palavras contém valor. Pessoalmente, vejo isto como um sonho (que talvez não viva para testemunhar) mas um caminho de evolução e enriquecimento global da sociedade. Problemas não resolvidos para implementar a ideia não faltam, bem como reações conservadoras dos que acreditam que a vertente atual da democracia (que chamo de Democracia das Redes Sociais) é a versão máxima, definitiva, incorruptível, sagrada e perfeita desta forma de governo. Acredito que tenhamos pervertido a democracia nestas últimas décadas e estamos sendo explorados por populistas que ‘entenderam a regra do jogo’ e conseguem se beneficiar dele, às nossas custas. O jogo é nosso, o estádio também, além da bilheteria e arquibancadas: não venha me dizer que não podemos redefinir as regras.
Atualizado em: Ter 5 Jan 2021