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O primata doente

              Durante incontáveis eras, doenças com potencial de óbito foram a lâmina cruel que moldou as espécies. Juntamente com mudanças ambientais, as espécies se lançaram nesta corrida frenética de adaptação a qualquer custo visando a sobrevivência (imediata) e a descendência (futura). Por incontáveis vezes, um acidente menor (como uma pata quebrada) antecipava um agonizante fim e mudava os ‘planos’ do indivíduo. Até que um certo primata faz-se um questionamento sofisticadíssimo: “e se houvesse algo que pudéssemos fazer para evitar a morte ou mesmo procrastiná-la e mitigar seus efeitos?” (não imagino que alguém tenha respondido: procrastinar e mitigar são palavras difíceis) e começava ali uma épica jornada de coleta e processamento de dados, que levaria milhões de anos, muita experimentação, muita observação, muita paciência, frustração, controvérsia, conclusões equivocadas até descobrir o que são germes e que lavar as mãos antes de comer é recomendável.
              O caminho não foi fácil, a cooperação, escassa. Embora todos se sentissem encantados pela proposição (combater doenças e evitar a morte), nem todos usavam o mesmo método para chegar neste fim. Possivelmente o pensamento mágico foi a primeira resposta a este desafio, que evoluiu e sofisticou-se em encantamentos e rituais. Tardaria muito até que outro primata grunhisse “placebo!”, tentando explicar que o claudicante sucesso do pajé tinha relação com outros efeitos, ainda pouco entendidos. Pela primeira vez, algum organismo vivo erguia-se além e acima das fronteiras da aceitação estoica e questionava o seu fim - depois de muito tempo do simples aceitar que ‘sic transit gloria mundis’. Mas a entidade que regeria os destinos do mundo não poderia, ela, ser mundana: teria que se extra-tudo. E então milhares de anos foram dedicados à satisfazer, apaziguar, honrar, entreter e bajular um plantel de seres míticos que ninguém nunca viu que, além de se responsabilizarem pela condução do mundo, preocupavam-se com a individualidade do ser e eram capazes de subverter a ordem natural das coisas. Isto era ótimo pois por um lado não sabíamos exatamente qual era a ordem natural das coisas mas pelo menos tínhamos certeza que usando algum método previamente desenvolvido, poderíamos invocar a participação de uma entidade que poderia subverter esta ordem, em nosso favor. Um esquema complexo, sem dúvida.
              Henry Ford trabalhou muito até produzir o primeiro carro comercial: antes disso ele queria realizar o sonho dos seus clientes: ‘cavalos mais rápidos’. Finalmente, ele percebeu que ‘o sonho estava errado’ e não se realizaria. Vários primatas anteriores a Ford suspeitavam que os mecanismos que regiam os processos que queríamos entender (para poder influenciar) eram mais mundanos que se poderia imaginar. O sonho precisaria ser sonhado de outra forma - se quiséssemos que ele se realizasse. John Snow viu as pessoas morrerem de cólera na Londres de 1850 e com afinco, inteligência e coragem, provou que as pessoas estavam sendo contaminadas por coisas que comiam (ou bebiam, neste caso), coisas invisíveis, cujos nomes só seriam designados 30 anos depois quando a teoria microbiana foi finalmente comprovada cientificamente. Fácil antecipar a atitude de incredulidade dos demais primatas, sobretudo quando o ‘bom senso’ da época afirmava que a causa era miasmática (partículas de doença flutuam no cheiro de comida podre e esterco de cavalo).
              Hoje vivemos um mundo diferente, novo, sofisticado e vibrante mas mesmo assim, estamos sendo fustigados por mais uma pandemia. Embora hoje o sofrimento humano seja incomparavelmente menor que nos tempos da peste negra, hoje temos mais pena de nós mesmos e quase nenhuma tolerância para admitir que somos distantes parentes daquele primata do primeiro parágrafo. Os vírus, germes e a rigor todos os outros seres vivos, não sabem disto e não dariam a menor importância se soubessem. Continuarão a sofrer mutações e especializar-se para sobreviver, sem preocupação com quem irão infectar. Talvez um ou outro germe escreva um artigo provocador em alguma revista de germes mas no geral, tudo seguirá como d’antes.
              Não nos iludamos: se o assunto não tivesse sido sepultado pela irrelevância, teríamos ainda hoje pessoas discordando de Snow e dizendo que a cólera não se transmite pela água. Possivelmente as mesmas que são contra vacinas (terão uma ótima chance de demonstrar coerência e comprometimento com a causa em breve) e também as que usam palavras como vibrar, energia e quântico em contextos metafísicos. Elas estão por aí e não há indícios que estejam ficando menos numerosas ou mais silenciosas. No momento em que lidamos com doenças com aspecto tão social tão grande quanto esta, comportamentos divergentes e negacionistas ao nível individual representam uma ameaça ao bem estar e sobrevivência do grupo e o viés democrático que nos faz desviar o olhar e não falar sobre isto pode revelar sua identidade real: uma solução covarde de curto prazo. Talvez alguns direitos de expressão e liberdades pessoais tenham que se submeter a direitos sociais de maior envergadura, limitando-os ou reduzindo seu escopo de aplicabilidade. É um debate novo, para o qual teremos que amadurecer muito para poder travá-lo - haja vista a forma ‘futebolística’ de como debatemos assuntos polêmicos hoje em dia.
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Atualizado em: Seg 19 Out 2020

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