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Ovelha em pele de lobo

              Desde sempre, um pequeno percentual da população gerou conhecimento de qualidade a ponto de influenciar os demais, em geral, de uma uma forma não violenta, baseada na razão e no convencimento. Os chamados intelectuais sempre tiveram a capacidade de observar e reportar de forma crítica, criativa e não convencional os caminhos mais eficientes, as estratégias mais propensas ao êxito e as ações mais estúpidas. Nós (os não intelectuais) sempre nos valemos destas gotas de sabedoria e sempre pudemos sorvê-las, segundo nossa necessidade e interesse.
              Do outro lado do rio, já há alguns anos, começou a se reproduzir em excesso uma espécie diferente de não conformista. Um olhar mais desavisado pode ter dificuldade de distinguir as abissais diferenças que separam estes ramos. Eles são os gurus, os líderes de áreas que acabaram de criar, os que se julgam os únicos capazes de resolver os problemas, os encantadores de plateias, os que dão significado novo a palavras velhas, os que sequestram conceitos e os escravizam para que sejam outra coisa, os (args!) coaches, aos quais me referirei simplificada e não jocosamente, de guroaches (se pronuncia ‘guroutches’). Comecemos pelas semelhanças: estes ‘pregadores de shopping centers’ também tem uma verdade, que precisa ser apresentada ao resto da tribo, eles também trilharam um árduo caminho que os levaram a este estado de conhecimento e estão dispostos a compartilhar os atalhos com você. Fim.
              Agora, as diferenças: o intelectual chegou no seu estágio do domínio de certa área do conhecimento mediante um penoso processo de investimento de tempo e energia, acúmulo de informações, pesquisa, pensamento crítico, debate, lapidação de ideias, tentativas frustradas, até chegar à inevitável conclusão que não chegou a lugar algum, que o conhecimento é inesgotável e o processo de adquiri-lo é exatamente isto: um processo. Nas palavas de Descartes: ‘daria tudo o que sei pela metade do que não sei’. Por outro lado, o guroache já chegou lá, já transcendeu, não tem mais dúvidas e tem a certeza que seu conhecimento é tão vasto quanto precisa ser, não tem questões não respondidas, não tem implicações conflitantes nem em seu discurso e nem na sua filosofia. Enquanto o intelectual participa do jogo da ciência (crítica, revisão, coerência), o guroache encabeça o solitário jogo do messianismo: completo, perfeito na sua completude. O intelectual trabalha horas, semanas, anos, em torno de ideias e, se as considera dignas, apresenta-as à sociedade de forma concisa, coerente e didática (o que é ótimo pois assim não temos que dedicar a mesma quantidade de tempo e energia que eles) mas ele não o faz a partir da bondade do seu coração: ele sabe que é a única forma da sua ideia ser ao menos considerada válida, crível. Ao negar-se a fazer isto, ele coloca-se no mesmo nível do pesquisador que descobriu que diariamente, bilhões de criaturas invisíveis percorrem o mundo inteiro e fazem as flores desabrochar de manhã e se fechar ao fim da tarde: são os pixies. A falta de informações sobre a natureza, origem, necessidade e razoabilidade da ideia nos obriga a jogá-la na lata de lixo das ideias (o que não deveria ser problema algum). O guroache, entretanto, usa e abusa desta estratégia. Ela cria conceitos, tão absurdos quanto pixies, e os usa como base para ideias ainda mais disparatantes, em uma cornucópia de desatinos que, em algum tempo, se transformará em anúncios para você, que é especial, que tem o dom de ver o que os outros não veem. É neste momento que você compra a água milagrosa, o óleo essencial, a sequência de mantras que, ditos na frequência e ordem certa, trarão especificamente o objetivo genérico que você deseja (quer você saiba, quer não). Não tente voltar a sua atenção para o processo, para a origem dos exercícios mentais, para o motivo da quantidade de limões que a receita indica você comer ao acordar: você está simplesmente se opondo ao ‘processo de cura’. Talvez você não esteja pronto, talvez você tenha feito algo de muito errado em vidas passadas, talvez o seu planeta de origem esteja condenado ou talvez você simplesmente vibre em uma frequência magnética que distorça o espaço quântico da felicidade. É preciso reconhecer que é difícil conseguir fazer uma frase que use um vocabulário real, concreto e útil para dizer algo tão vago, confuso e non sense. Esta é uma diferença importante: o intelectual pode até não gostar do seu questionamento sobre a teoria econômica que ele apresenta mas ele entende que é seu direito usar de ceticismo para checar a solidez da sua ideia e, ao cabo, para ele, esta é a oportunidade de argumentar em favor do seu trabalho ou, de forma trágica mas honrosa, detonar os explosivos que mandarão a sua nobre ideia para o céu das ideias ruins.
              As diferenças, contudo, vão além do conteúdo: elas abrangem também a forma. Em geral, a mensagem do intelectual é árida, complexa, difícil de digerir, exigindo esforço para ser aceita e mais esforço ainda para ser colocada em prática. É como tentar dizer que passear com seu cachorro sem coleira em áreas públicas é falta de cidadania, desrespeito com os locais e perigo de acidentes de vários tipos. Você até pode entender a lógica dos argumentos e, com certa resistência, pode até incorporar o pensamento mas na hora que o sabujo quer correr livre, você o solta e a imagem borrada do intelectual se apaga na mesma velocidade com que o Bisteca persegue o gato do vizinho. Já a mensagem do guroacche é vívida, otimista, encomendada no meu número, na cor que gosto, é imediata e meu cérebro as recebe com uma chuva de endorfinas. Por certo, partes do meu cérebro terão que ser caladas mas existem métodos aperfeiçoados por milênios para garantir que a última fronteira seja vencida e os exércitos do norte tomem a cidade de assalto. Assim, um tem um comprimido eficaz e útil - mas precisa ser tomado ao longo de anos, é quadrado, cheira a peixe podre e tem 3 centímetros; o outro tem um comprimido em formato, sabor e cheiro de M&M, suave e amanteigado na intensidade adequada para ser ingerido mais fácil que uma mosca, dose única (embora você vai voltar implorando por mais). Francamente, quem se importa se o M&M vai me ajudar a resolver o meu problema de glicemia? Eu estou feliz e esta felicidade, por certo, está me ajudando. Durma com um barulho deste!
              Pessoalmente acho que tudo se resume ao velho e bom mercado, oferta e demanda, marketing e suas oleosas fronteiras éticas. Quero parar de fumar: existem programas para isto. Quero ser enganado: existem programas para isto. Quero ter mais entendimento sobre o funcionamento do universo: existem programas para isto. Receita do fracasso: tente vender compêndios astronômicos para a pessoa que quer parar de fumar ou pacthes antitabaco para quem simplesmente quer ser enganado. É trágico, admito, reconhecer que existam tantas pessoas querendo ser enganadas, afirmando que o que acontecem em Tunguska não foi um meteoro que explodiu na reentrada, ainda acima do solo: foram ET´s cuja nave se aproximou muito e, para evitar colisão, deu um ‘cavalo de pau espacial’. Estas pessoas querem acreditar nisto e tem o inato direito de fazê-lo (só não tem o direito de exigir que eu tenha respeito por isto). É preciso parar o bullying contra a estupidez pois ela é uma forma de expressão - e das mais expressivas e autênticas.
              Cada um pode e deve tomar partido: eu fico do lado dos intelectuais e vejo a surra que eles estão tomando. Já passou da hora de abandonar o academicismo, a retórica fluente e as deliciosas ferramentas que os intelectuais adoram em prol de visibilidade, penetração, influência ou pelo menos, likes. O grupo Monty Python certa vez criou um sketch que apresentava uma partida de futebol entre duas potências da filosofia: Alemanha e Grécia. Depois de muito aquecimento, ótimas ideias e estratégia, o apito inicial é dado e virtualmente nada acontece. Olhares pensativos e mais elucubrações se sucedem até os minutos finais (cheque na íntegra em https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=voUuSsELOvg). Existe uma batalha sendo travada e as armas não são mais exclusivamente a eloquência, pertinácia e argúcia. Está rolando um pouco de puxão de cabelo, dedo no olho e gira teta e esta parece ser a estratégia vencedora. Esta na hora de tomar uma atitude, nem que seja mudar de jogo.
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Atualizado em: Seg 19 Out 2020

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