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A montanha da opacidade: a insurgência do ato consciente da vontade
POR IVONALDO LEITE
Como propriedade óptica da matéria, a opacidade impede a passagem da luz em proporções apreciáveis. Impenetrabilidade da radiação eletromagnética ou outros tipos de radiação. Material translúcido, mesmo quando a luz é visível, a sua passagem ocorre de maneira difusa, tornando as imagens irreconhecíveis.
A paisagem da existência humana, como fenômeno social, não poucas vezes é tomada, alegoricamente pode ser dito, pela opacidade. Ou é situada num cenário translúcido. Vidas sem sentido, de um esforço inútil e desafiadas pelo absurdo, do qual provavelmente, na perspectiva referida por Camus, não se poderá escapar, dado que a finalidade última de qualquer vida é a morte. O que é, para os existencialistas, um escândalo, ao qual se soma um outro: as pessoas morrerem sem conhecer a felicidade. Ocorre que a ordem natural das cosias conspira contra a felicidade, pois tal ordem marcha em direção ao perecimento. Nessa marcha o que se tem é um permanente bailado de máscaras com a repetição dos mesmos passos. O mito de Sísifo.
A mitologia grega nos conta que os deuses haviam condenado Sísifo a rolar uma grande pedra montanha acima, sendo que, após ter chegado ao cume, a pedra voltava abaixo, e Sísifo, num círculo sem fim, teria de levá-la ao cume outra vez, e em seguida recomeçar tudo novamente. Contudo, ao invés de desesperar-se perante essa absurdidade, na interpretação de Camus, ele opta por um caminho diferente. Sísifo se revolta contra o absurdo, e a sua revolta consiste em assumir, com obstinação, a absurdidade, dizendo “sim” a uma tarefa aparentemente sem sentido. A partir desse momento, o absurdo não perde a sua absurdidade, mas é vencido pela decisão de Sísifo de fazer do absurdo o seu destino e de aceitar esse destino.
No universo humano, a insurgência contra a “absurdidade do absurdo” consegue transmutar tal absurdidade em sentido, ao menos para quem está submetido ao absurdo. Isso, no mito de Sísifo, é paradigmático. Uma vez tomada a decisão consciente de assumir o absurdo, no repetido movimento de levar a pedra ao cume, ele sente-se feliz, e essa felicidade é a vitória da insurgência contra a absurdidade de uma condição imposta e imutável. A conquista de sentido no sem-sentido. No transcurso da vida, essa condição imposta e imutável é a morte. É preciso conhecimento sábio para, no acima e abaixo da montanha da existência, momentos conscientes emergirem com o Sísifo humano feliz.
A pandemia da COVID-19 é, no momento atual, a grande pedra da montanha da existência humana. Frente a ela, sob as nuvens da grande insônia do mundo, homens e mulheres buscam os fios de sentido com os quais se poderá tecer a salvação possível, mesmo que, a médio e longo prazos, a finitude seja o que nos aguarda.
Calha apropriado, na conjuntura presente, um antigo filme: The Hellstrom Chronicle. Nele nos é dado a conhecer a batalha diária pela sobrevivência, realçando-se que, dos milhões de espécies que povoaram a terra, apenas duas sobreviveram e aumentaram a própria população após várias hecatombes da nossa história geológica, quais sejam: os insetos e os humanos. O filme assinala que a sobrevivência dessas duas espécies decorre de uma especial capacidade de adaptação às mudanças ocorridas no planeta, e que, no futuro, sobreviverá quem melhor se adaptar às mudanças que ainda ocorrerão. Acontece que, intrigantemente, não estando vivos e nem tampouco mortos, os vírus se propagam “saltando” de um animal a seres humanos. Não estão vivos pois não se podem reproduzir por si mesmos, e não estão mortos porque podem entrar em nossas células, sequestrar sua “maquinaria” e generalizar a replicação, tendo intensa eficácia em burlar nosso sistema imunológico.
Deve-se lembrar, por outro lado, como se faz no referido filme, que insetos e aracnídeos são programados para agir em nome do todo ou da sobrevivência da espécie. Desse modo, são equipados com algo parecido com uma inteligência coletiva consubstanciada na total capacidade de trabalho especializado e em instintos mais afiados. Travam, assim, uma luta surda e incansável por seu lugar na terra. Mais que animais sociais, são como “milagres de engenharia” com seus precisos aparatos de caça, combate e defesa, além de todos os cuidados necessários para garantir segurança aos herdeiros. A batalha pela prevalência no planeta.
Seja como for, considerando os obstáculos da montanha da existência, a sua opacidade e a busca de sentido para persistir nela, mesmo sabendo que, no limite, nada restará, cabe por fim voltar a Camus: o sentido ou não sentido de uma vida não é imposto de fora. Quem faz o sentido é a própria pessoa. É ela, num ato consciente da vontade, que pode dar sentido à sua vida, e esse ato da vontade é o passo para superar qualquer absurdidade do destino.
Atualizado em: Sex 3 Jul 2020