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Dialética do nada: o colapso da crítica tradicional, a universidade e a urgência de um novo progressismo
POR IVONALDO LEITE
(Pós-doutorado em Sociologia, Universidad de la República; Professor da Universidade Federal da Paraíba)
Na atilada apresentação que fez da 13ª edição de Raízes do Brasil, Antônio Cândido, logo de início, colocou em realce algo paradigmático ao enfocar a histórica magnum opus de Sérgio Buarque de Holanda: A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair na autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se, a princípio, diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época. Então, registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar.
Poderíamos relacionar as palavras de Antônio Cândido com as que foram escritas por Norberto Bobbio de maneira autobiográfica em seu O Tempo da Memória, encadeando então a abordagem sobre o tema que é objeto deste texto. Diz Bobbio: é um ato de sabedoria olhar sem muita indulgência para o passado, não confiar demais no incerto futuro e, quanto ao presente, ano após ano, subir mais alto por sua arquibancada, para então se ter um panorama.
A par de tais perspectivas, observar o Brasil que, do ponto de vista político no campo progressista, emergiu com a Nova República a partir de 1985, é uma das condições para a devida análise dos impasses nos quais esse campo mergulhou nos últimos tempos e para que se tenha em conta a urgência de se construir um novo progressismo. Não parece existirem dúvidas quanto a alguns fatos que marcaram e têm marcado o âmbito da esquerda no pós-1985. Por exemplo: a histórica promessa e a esperança em torno de Leonel Brizola na condução de um projeto de nação, tendo este projeto não se concretizado e ele enfrentado injustiças no interior do próprio campo progressista; a hegemonia do PT e a estruturação do lulismo; as reconfigurações no PSB, com Miguel Arraes e posteriormente com Eduardo Campos; a cisão e as reformulações no PCB; a reafirmação do espaço do PC do B em democracia (a maior parte da existência do partido é na clandestinidade); as defecções no PT, resultando, de uma delas, o PSOL; os governos Lula e Dilma e as suas indeterminações; o novo protagonismo do PDT e o fator Ciro Gomes, etc.
Apesar dessa diversidade na esfera da esquerda, consolidou-se um “modus operandi” que se tornou hegemônico em seu âmbito, acompanhado de uma visão política que “monopoliza” o campo progressista (envolvendo diferentes orientações/organizações), com isso tendo reflexos sobre o que são consideradas “ideias avançadas”, práticas, o significado do que se entende por emancipação, etc. É essa perspectiva que está no centro dos impasses vividos pela esquerda hoje no Brasil, e que se tem revelado incapaz de aportar respostas à altura dos desafios postos pela conjuntura. Os seus porta-vozes continuam a fazer “discursos críticos”, mas, não poucas vezes, estes não têm substância. Dessa forma, funcionam mais como agência de publicidade de slogans para lives em redes sociais. Uma dialética do nada. Trata-se do que pode ser considerada uma crítica política tradicional que, por sua limitação, provavelmente seja até mesmo mais prejudicial do que útil ao campo progressista.
O predomínio desse discurso crítico caótico no interior do mundo universitário tem incidido sobre um conjunto de dimensões que, por um lado, limitam a capacidade analítica esperada da instituição universitária e, por outro, recaem sobre esferas que são utilizadas como dispositivos de retroalimentação, mas que, paradoxalmente, evidenciam o colapso das bases do referido discurso. Como exemplos de tais esferas, podem ser referidos o sindicalismo universitário, com atividades marcadamente burocratizadas, esvaziadas e insuficientes em oferecer respostas técnicas ao debate no interior da universidade brasileira; a menção à ideia de diálogo e de respeito à pluralidade, sendo que, na prática, é habitual se negar isso com posições preformatadas, impositivas e “aparelhistas” da falta de ética de bastidores; a referência à noção de transformação, negada na realidade, contudo, com visões que se limitam a reproduzir teses geralmente de forma panfletária; a invocação ao conhecimento científico, mascarando-lhe, no entanto, com véus ideológicos, ignorando a necessária distinção, como a fez Nicos Poulantzas, entre ciência e ideologia, assinalando que a última tem por função, ao contrário da primeira, ocultar as contradições reais e construir sobre um plano imaginário narrativas relativamente coerentes ao vivido pelas pessoas.
Do quadro aqui descrito, uma ilação básica que sobressai aponta para a urgência de se construir um novo progressismo no Brasil. Este novo progressismo deve ter em atenção três marcos fundamentes: um projeto nacional, a concepção de povo brasileiro como elemento estruturante do Estado-nação e a compreensão segundo a qual a educação básica é o princípio de tudo. Como desdobramento, há de se ter presente um tipo de regra fiscal que permita a intervenção contracíclica do gasto público, a percepção global da matriz identitária nacional – reconhecendo o seu caráter misto oriundo de diferentes povos, ao mesmo tempo que supera o equívoco da fragmentação de identidades - e o papel da escola como dispositivo de equalização. Estas metas talvez possam ser consideradas ambiciosas, mas já há quem esteja pugnando por elas e procurando levá-las adiante. Sinal de que não são inalcançáveis.
Certa feita Olof Palme disse que “a realidade é o maior polemizador”, e, de fato, é ela quem está a polemizar a esfera política no Brasil demandando um novo progressismo. Se assim ocorre, é porque esse progressismo é factível, visto que, como pontua a filosofia da práxis, a realidade, em determinadas circunstâncias, só costuma colocar questões para as quais ela já aponta uma possibilidade objetiva de resolução à prática social.
Atualizado em: Qua 27 Maio 2020