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A escrevente
A escrevente
Dentro do cartórioO local de trabalho
Era um lugar sombrio, iluminado majoritariamente por luz artificial. Tinha as janelas sempre fechadas e protegidas por cortinas beges encardidas que combinavam com as paredes e teto de mesmo tom. Canos metálicos se agarravam de forma confusa a estas estruturas, conduzindo a energia elétrica. Não se podia ver o ambiente externo com suas tristes árvores misturadas aos carros de funcionários e ela sentava-se olhando para a parede com suas janelas cobertas. O que era permitido ver, no entanto, era um computador com duas telas sobre sua escrivaninha, máquina esta que lhe servia para trabalhar e fugir ao trabalho, àquele ambiente: por meio da máquina, ela podia ler e escrever, imaginar e construir outros mundos, outras realidades, embora escrevesse muito acerca do que lhe cercava, na tentativa de entender, de aliviar o tédio, a dor.
A sala era abafada, nunca se podia ligar o ar-condicionado sem que guerras fossem declaradas, ela não opinava mais nesta questão, aliás, não opinava em questão alguma. Tinha desistido de se expressar oralmente, de teorizar, de propor mudanças, de descortinar outras realidades, de fazer refletir. Sua voz era abafada por outras coléricas, intestinas, de gente que não tinha hábito de discorrer sobre ideias, apenas sobre pessoas e dinheiro. Ela acabou desistindo das pessoas, talvez por instinto de sobrevivência, quanto ao dinheiro que recebia, era sempre suficiente e só tinha gratidão para expressar.
Havia altas prateleiras cinzas, umas entupiam paredes não ocupadas por janelas trancadas, outras serviam para dividir a sala ao meio, separando a mão-de-obra do público que utilizava o serviço: a mão-de-obra não queria ver a clientela nem ser vista por ela. As prateleiras guardavam pastas de processos mortos e livros sem conteúdo algum – simplesmente reuniam papéis que expressavam a burocracia sem sentido. Tudo era coberto de pó. O chão cinza opaco colecionava pegadas de todos que passavam por ali.
As antigas escrivaninhas marrons abrigavam máquinas negras e vidas mesquinhas. Corações e mentes dominados pela segurança da vida medíocre, pelos pequenos desejos da classe média – em sua maioria de consumo –, pelo ódio à ralé, pela inveja aos que tinham melhor sorte. Informavam-se pelas redes sociais e por manchetes de jornal, reproduziam as opiniões massificadas, riam de coisas não engraçadas, suportavam-se na medida do possível.
As cadeiras azuis encardidas tinham o formato do corpo de quem nelas se sentava por quase oito horas seguidas – 45 minutos deste tempo eram reservados ao almoço. As cadeiras eram marcadas e marcavam os corpos: muitos exibiam corcundas e/ou barrigas salientes. Era permitido levantar-se das cadeiras para fazer um lanche frugal em um antigo banheiro desativado que servia de cozinha. Nesta havia uma prateleira cinza com utensílios esquecidos; uma bancada verde esmaecido com uma cortina suja que, juntas, serviam para esconder uma privada; a pia encardida era de banheiro antigo; na geladeira, restos de alimentos e marmitas, com um micro-ondas imundo em cima dela para aquecer qualquer coisa. Também era permitido sair das cadeiras para fumar sem questionamento algum, o mesmo tratamento era dado aos amigos quando queriam resolver assuntos particulares durante o expediente, entretanto, para os que não se enquadravam nestas categorias até para ir ao banheiro precisavam pedir permissão. Ela fazia parte deste último grupo, talvez sozinha, mas não obedecia à regra imposta: quando foi comunicada do trâmite para ir ao banheiro, ela fez uma tabela com os horários que iria deixar o posto para aliviar-se e entregou ao diretor, que não ficou muito feliz e continuou insistindo, até desistir diante da resistência, que ela deveria avisar oralmente ou simplesmente tocando em seu ombro. Ela não fez nem uma coisa nem outra, apenas ia duas vezes ao banheiro e pronto: uma pela manhã, por volta das 11h30, e outra à tarde, lá pelas 16h30. Sorte que nunca teve algum desarranjo gastrointestinal e nunca se descontrolou tomando água; mantinha a proposta evidenciada na tabela sem ajustes.
O serviço nos computadores versava sobre problemas que as pessoas lá fora não conseguiam resolver sem ajuda, ou porque não tentaram ou porque há muito mau-caratismo neste mundo. Muitas histórias serviam para fazer rir a mão-de-obra, demonstrando-se seu mau gosto na escolha por aquilo que faz rir. Ela não lia as histórias, tampouco ria com elas, para escândalo de seu superior e colegas, mas não errava no trabalho, pois fazia um tipo de leitura que apenas buscava as informações exatas para seu fazer diário. Tinha escrito um manual que utilizava na execução do serviço, se organizava de modo a medir tempo e movimentos, se posicionava perfeitamente à esteira fordista quase emperrada. Terminava seus afazeres muito rapidamente e com perfeição – embora com raros erros porque ainda era humana – sobrando-lhe tempo para o que lhe interessava: beleza e justiça de verdade. Reiteradas vezes pediu mais trabalho aos superiores, mas não lhe deram. Ela acabou desistindo de pedir e não fingia que trabalhava, fazia o que lhe cabia, não escondendo que se dedicava a afazeres alheios. Ninguém falava nada. Não havia o que falar. Ela se fizera mecânica, na tentativa de não se agastar, o ambiente a tornou um objeto, porque como pessoa incomodava demais. O pouco serviço e a falta de desafios cozinhavam sua alma, que buscava se elevar de outras formas, vencendo as imposições, a ignorância, a violência. Mesmo assim, sua mente refletia e seu coração temia, às vezes, que todo o corpo se tornasse uma prateleira, um computador, uma impressora, uma cortina velha, uma cadeira quebrada, uma mesa feia ... sorte que não tinha arquivo de escritório no local, senão já teria se assemelhado a ele como em um conto que lera há muito tempo. Sempre pensava nesta história. No entanto, para vencer a coisificação de seu corpo, vestia-se com cores vibrantes, blusas com estampas floridas, usava sempre batom vermelho e perfume francês, escolhido de modo meticuloso – La Vie est Belle – para não se esquecer das notas mais suaves da vida.
Olhava para os cadáveres de insetos que tinham ficado presos em teias de aranha nas paredes e percebia que havia vida e morte ali, constantes combates entre fortes e fracos, seria ela a aranha ou o inseto mais frágil? Talvez se inclinasse mais ao aracnídeo...
O material ignorado
Há tempos, tenho me interessado pelo tema “Gestão do conhecimento”. Tive contato com ele, enquanto estudava para outro concurso e desde então, procuro ler a respeito. Trabalho em um local onde regras escritas abundam, mas as mais elementares do trabalho diário simplesmente são passadas de forma oral. Há volumes e volumes de normas da corregedoria, diversas mensagens eletrônicas nos chegam de tempo em tempo acerca do procedimento de algum expediente, mas todas estas normas são genéricas. O passo-a-passo de como fazer determinado documento, como funciona o trâmite processual no cartório, normas específicas e escritas que poderiam ser acompanhadas por algum novo funcionário ou mesmo para consulta de velhos servidores não havia até eu redigir um manual. Isso ocorreu entre novembro de 2016 e janeiro de 2017, enquanto aprendia a trabalhar no local.
Tentei sistematizar as principais rotinas de trabalho com o intuito de transformar parte do conhecimento tácito do cartório em conhecimento explícito, acreditando ajudar funcionários novos ou antigos do local. Entretanto, meu superior hierárquico nunca disse uma palavra a respeito quando teve contato com o material, talvez porque achasse melhor centralizar todo o conhecimento técnico em si para exercer melhor poder sobre as pessoas dependentes. Assim como meus colegas que receberam, mas que parece não o utilizar, posto que muitas dúvidas que poderiam ser dirimidas pelo manual são colocadas oralmente. Funcionário novo ainda não entrou. Talvez seja útil para este tipo de pessoa.
Duas coisas me motivaram a redigir um manual: uma foi o fato de que uma pessoa transmite uma informação diferente de outra sobre o mesmo ponto, até mesmo uma mesma pessoa informa de modo diferente, dependendo do dia ou do momento: o que ela disse de manhã não é ratificado à tarde. Outra foi o hábito de ter a escrita como uma auxiliar de minha memória: não perco meu tempo, guardando coisas chatas, e o grande volume de detalhes exige que se escreva o procedimento para não haver erro ou mesmo ficar perdida na execução do trabalho. Neste quesito obtive muito sucesso: consulto o manual diariamente; quando vou expedir um mandado de citação e intimação para audiência, por exemplo, localizo o item exato que trata sobre isso no manual, assim consulto a referência acerca do modelo a ser usado, bem como recorto e colo o texto padrão do manual para o documento que está sendo expedido no momento. Não perco tempo, tentando lembrar a numeração do modelo a ser usado, não preciso utilizar auto-texto (uma ferramenta do sistema com o qual trabalhamos), não preciso ficar perguntando quando surge alguma dúvida ou esqueço de algum procedimento. Desse modo, o manual para mim é uma “mão-na-roda”. Mas apenas a mim. Não sei o que deu errado.
Atualizo o manual sempre que surge alguma novidade e repasso para meus pares por e-mail. Trabalho inútil. Gostaria de investigar isso: o que faz um material ser bem aceito no ambiente de trabalho? Deveria ter feito uma pesquisa prévia para consultar a necessidade de um manual? Como usuária e aprendiz de novas rotinas de trabalho senti a necessidade de um material escrito, será que cada um deveria escrever seu próprio manual? Escrever não é uma habilidade comum entre as pessoas, portanto, nem todos escreveriam um material para si. Por que a oralidade e a dependência são mais valorizadas que a escrita e a busca de informação por caminhos próprios? O manual ficou ruim ou se tem preguiça de lê-lo? Por que a falta de feedback? Será que um material vindo de cima para baixo seria mais bem aceito?
Estou perdida, não tenho muitas referências de obras que poderiam ajudar-me. Como estudo o tema por conta própria, tenho uma impressão sobre o assunto. Será que o que tenho em mente é válido? Será que a produção de material, na tentativa de sistematização do conhecimento informal, faz parte de Gestão do Conhecimento? Sei lá...
A sensação de justiça
Minha filha de três anos tem usado a seguinte expressão ultimamente: “Isso não é justo!”. Usa a frase quando uma situação não lhe é favorável no seu entender. Sempre a indaguei sobre o que seria justo então. Nunca respondeu até ontem, quando ao colocá-la para dormir, ela pronunciou a famigerada sentença e, logo em seguida, sem mesmo ouvir minha pergunta, ela finalizou: “Justo é comer sobremesa!”. Fantástica a definição! Ela realmente compreendia a justiça em senso comum, dentro de seu egocentrismo: algo que desfavorece alguém é injusto e o que favorece, justo, independentemente das circunstâncias; algo que satisfaz sua necessidade mais grosseira, como o paladar e a predileção por alimentos doces, é justo, em detrimento daquilo que lhe seria mais conveniente e mais saudável, mas mais difícil de compreender e gostar.
Mesmo adultos continuamos a ver justiça desta mesma forma: se me favorece, houve justiça, senão, injustiça. Hoje uma colega trouxe uma portaria, expedida por um juiz há muitos anos, nomeando-a como escrevente de sala, mesmo que para isso não se exigisse tanto rigor, pois ‘escrevente de sala’ não é um cargo e, sim, um afazer do mesmo nível que qualquer outro do ramo. Ela se sentia orgulhosa pela deferência, mas magoada, pois nunca tomou posse de seu pseudocargo: mudou o juiz e o novo escolheu outro escrevente para o serviço. Ela tinha estudado, tinha feito tudo o que o juiz antigo lhe pedia, mas sofreu a “injustiça”. Fico pensando se houve ou não justiça no caso. Ela realmente estuda muito, mas parece que nunca aprende, é muito insegura, pensa muito pela cabeça dos outros, é muito ansiosa e atrapalhada. É bem competente na arte de puxar o saco também. Talvez essas características tenham sido notadas pelo novo juiz ou apenas que ele tenha ido mais com a cara de outro escrevente, escolhendo-o para ajudá-lo nas audiências sem maiores valorações e julgamentos.
A colega nunca analisou a situação desta forma e reiteradas vezes comenta sobre a injustiça sofrida, estas e outras mais, nunca vi pessoa tão injustiçada como ela. Tenho dó deste ser e medo de eu também agir com injustiça em diversas ocasiões ou de me vitimizar quando algo não me é favorável, perdendo a percepção de minhas próprias fraquezas e a capacidade de analisar mais friamente as situações. Somos levados, pela cultura do sucesso raso e da alegria sem fim, a acharmo-nos perfeitos, justos, dignos das melhores coisas, entretanto, a filosofia clássica nos ensina que temos aquilo que merecemos, que tudo nos é dado para crescermos enquanto seres humanos, enquanto almas imortais.
Já li que o justo não serve nem para reinar nem para ser vítima, justo é sempre o caminho do meio. Tento exercer este preceito diariamente, mas não é fácil, o senso comum domina e a infantilidade em alma adulta é quase regra.
O diretor e a subordinada
Ela não tinha nome. Era chamada de esposa, minha esposa, quando era lembrada por ele em alguma conversa comezinha sobre banalidades domésticas. Ela era do lar e dele, uma posse, um objeto e, como tal, não tinha nome próprio perante os subordinados. Sabia-se que ela gostava de animais, talvez esta característica determinasse o sucesso do casamento duradouro. Ele também nunca falava dos filhos. Sabia-se que eram dois, com 10 anos de diferença, talvez o segundo fosse fruto de uma gravidez “indesejada”, pelo menos por ele, mas que servia, a ela, para reavivar sua função na vida familiar. O fato era que, assim como a esposa, os filhos recebiam bem pouca consideração do pai, que nunca tirava férias, nunca faltava ao serviço para acompanhar alguém no hospital ou ir a alguma apresentação bobinha de escola, ele nunca faltava ao serviço por nada, nada. Era o trabalhador exemplar, assim como havia de considerar a si como chefe de família e cidadão – o típico cidadão de bem. Quanto aos “seus” subordinados, estes eram chamados de funcionários, meus funcionários, mesmo que os servidores fossem do povo, pela condição de públicos. Gostava de pronomes possessivos.
Ele era “superior” pela canetada de outrem, havia prestado o mesmo reles concurso público que os demais do local, mas como tinha puxado bastante o saco, lambido bastante as botas de quem, por concurso, mandava mais, adquiriu postos. Justiça seja feita: era um bom técnico e ponto final. Achava-se melhor que os outros, a arrogância na fala e a péssima escolha de palavras revelavam sua consideração a si mesmo em detrimento dos demais. Um dia, ao ter suas explicações questionadas por uma subordinada, afirmou que fazia de tal forma para que eles, os subordinados, pudessem um dia chegar a seu nível, ou seja, considerava-se no topo da sapiência e do desenvolvimento profissional, sem considerar que suas explicações não eram enigmáticas, sábias, mas confusas mesmo e que não ajudavam em nada: tinha fala bem rudimentar, expressava pensamentos caóticos, por meio de frases grosseiras, usava os mesmos blocos de palavras para enrolar e ter tempo de pensar alguma coisa para dizer, mas nunca era totalmente feliz em seu mofino desenvolvimento discursivo.
Não sabia comandar, pois não sabia conversar. Nunca ouvia a opinião alheia, não queria ouvir nada que não fosse sua própria fala, restringindo ainda mais seu horizonte já limitado. Achava que tratando as pessoas como educava os filhos – faça isso e calado! – era um bom modo de atuação profissional.
Sabia gritar, principalmente com mulheres, nunca se ouviu gritos com homens. Em subordinada grávida e com duas semanas de serviço chegou a arremessar uma bola de papel, que quase acertou seu rosto, para evidenciar a inépcia na busca de uma informação. Sobre a mesma avançou um dia, pronto para dar-lhe um tapa por um insignificante erro que ela cometera na execução de um serviço. Este episódio causou espanto até de um funcionário antigo, que jamais questionou seus superiores em seus 33 anos de serviço na mesma instituição. Foi a última vez que se excedeu, pois recebeu de volta uma fala firme, imperativa, que fez recuar, também se seguiram a esta fala movimentos para ela deixar o local de trabalho, movimentos estes que ele deveria explicar ao superior maior e, como não teve coragem para dar tal explicação, tudo ficou em seu lugar, mas os maus tratos explícitos cessaram pelo menos. Ela não tinha medo dele. Ele tinha medo dela, muito medo.
Talvez, no conflituoso relacionamento, estivesse velada uma situação mais delicada, mais passional. Como era infantil, ele não dominava seus sentimentos e pensamentos. Ao ver-se tratado friamente, esperneava como uma criança contrariada. Queria chamar à atenção de alguma forma. Queria ser olhado novamente. Queria causar algum sentimento, mesmo que fosse de ódio, porém todos os esforços eram em vão.
Tudo começou quando, cansada de ouvir gracejos inconvenientes, ela, a mesma subordinada que questionava e que um dia esteve grávida, resolveu revidar as abordagens pouco profissionais, de forma mais sutil, mais perturbadora, que servisse para “exemplar”.
Todos os dias, ouvia gracinhas sobre seus sapatos, suas roupas, seus cabelos. Ela era notada como fêmea e ele fazia questão de evidenciar tal fato. Certa vez, ao se esbarrem à entrada do local onde trabalhavam, ela ouviu dele a seguinte frase: “pare de rebolar, senão vou contar para seu marido!”. Aquilo foi demais. Ela sentiu-se envergonhada, afinal de contas até seu modo de andar e sua parte traseira tinham sido notados e explicitados. Em termos legais, todas estas abordagens configurar-se-iam um quadro de assédio barato. Pois bem, sentar-se em banco de vítima não era sua postura, brigar não era seu estilo, apelar para terceiros resolverem seu problema tampouco, começou a encará-lo daí por diante. O jogo estava iniciado.
Em todas as oportunidades, ela media-lhe dos pés à cabeça. Sem dizer uma palavra, dominava-o só com o olhar penetrante, que perscrutava sua alma. Ele gostava da situação, sentia-se desejado. O caçador tornou-se caça. A audácia dele foi substituída por sua timidez. Ela o fazia corar, engasgar, calar, fazia-o contente, todavia. O grande problema é que este tipo de brincadeira criou mais complicação do que solucionou um caso. Ela começou a pensar nele como um personagem de história erótica e começou a escrever sobre isso. Talvez tenha passado a transmitir o que pensava e escrevia sobre ele pelo olhar, e ele percebeu.
Certa vez, a escritora deu uma carona a seu personagem. Ele adorou, mas usou de forma errada suas pífias palavras, deixando transparecer que ele acreditava que ela estava agindo como agia por interesse no que ele representava: “superioridade” em relação a ela. Ele era diretor dela e, em sua visão míope, ela queria aproveitar-se de seu status. Isso realmente não era intenção dela e deixou bem claro: escreveu, sob forma de narrativa, o episódio da carona e o descontentamento dela em relação ao comentário infeliz, e mandou-lhe por e-mail. Ele ficou mudo por uns três dias, mas respondeu que tinha de voltar “às origens” para entender os sentimentos dela e usou outras expressões toscas ininteligíveis. Aproveitando a ocasião para revelar a trama e encerrá-la, ela mandou-lhe algumas outras histórias que tinha escrito durante meses, as quais expressavam o caso de uma paixão proibida em que ele pudesse se descobrir personagem. Ele, por sua vez, escreveu-lhe dizendo que continuasse a escrever, pois gostava muito de ler: óbvio, sua riqueza vocabular revelava tal fato sem sombra de dúvida. Em resposta, ela disse que não escreveria mais histórias com aquele teor e que se dedicaria a contos infantis, dando um basta na situação, colocando fim à história fictícia.
Ela resolveu o caso inicial de certa maneira. Nunca mais ouviu gracinhas a seu respeito, mas a fúria dele veio de muitas formas: gritos pelo menor erro que ela cometia, exposição vexatória perante usuários do serviço que prestavam e até um quase tapa. Ela solucionou um problema, porém criou outros, inclusive consigo mesma. Como escritora, deixou-se dominar por sentimentos vis, inferiores, por pensamentos sórdidos, luxuriosos, que contrariavam sua conduta ética, criou uma história e entrou nela e, apesar de agir apenas com olhares, pensamentos e palavras escritas, não se sentiu bem. O personagem também foi prejudicado, pois não soube lidar com a situação, certamente sentiu-se rejeitado, com expectativas frustradas, contrariado na alma por não exercer, como queria, poder sobre uma mulher subordinada.
A escritora fez um ano de terapia, leu muitas coisas e escreveu outras para entender sua situação/ação, chegou a conversar com o marido alguma coisa, propondo separação pela vergonha que sentia. O divórcio não foi aceito e ela só conseguiu amenizar o imbróglio no entanto: de sua parte, passou a agir com frieza em relação ao personagem, da parte deste, só raiva, ciúme, medo e intolerância passaram a ser evidenciados.
Sem conversa entre as partes para amenizar o conflito – como já posto, ele não sabia conversar e ela só tinha palavras para oferecer ou a total ausência delas – este só se arrastou ao longo dos longos dias de trabalho.
Uma coisa é certa, a imersão em fantasias é viciosa e cria desejos nunca antes imaginados que, quando alimentados, avolumam-se em proporções assustadoras, fazendo do sapo, príncipe, da comédia, tragédia; afastar a fantasia é tarefa árdua e gera conflitos, conflitos estes que devem servir para tornar hábil um escritor que em seu trabalho precisa edificar-se, nunca se identificando com a destruição, com os sentimentos rastejantes, com seus personagens de caráter mal formado.
O funcionário padrão
Era débil e fazia culto à debilidade. Vangloriava-se em fazer nada, em comer pelas bordas, em observar e fazer críticas mesquinhas às pequenezas das pessoas com as quais convivia e daquelas que sequer sonhavam com a sua irrisória existência. Tinha prazer em fazer comentários inconvenientes e acreditava-se ácido, irônico, perspicaz. Achava-se inteligente a ponto de dizer isso em bom som. Cria que um diploma garantia conhecimento, seu parco e vil conhecimento. Era bacharel em Direito!
Menosprezava as pessoas, principalmente as que demonstravam alguma sapiência. Destas reparava-lhes até no fio de cabelo fora do lugar para, por óbvio, deliciar-se com dizeres maliciosos. Não raro gastava seu tempo com pessoas de mesmo espírito que o seu, fazendo o que mais gostavam: comentar a vida alheia.
Seu corpo era franzino. Sua pele, acizentada. Tinha uma tosse crônica, meio forçada, que revelava um velho de seus 80 anos, porém só tinha metade disto. Almejava reconhecimento e, para isso, fazia-se amigo de pessoas que tinham algum cargo. Queria um cargo. Julgava o seu pouco para sua tamanha grandeza. Não procurava mais trabalho, mais desafios, mais crescimento, apenas um cargo para ganhar mais. Sua má sorte – vinte anos no mesmo cargo – era debitada na conta alheia: considerava-se mal compreendido. Sofria com o erro de análise alheia, segundo seu ponto de vista, e analisava epitelialmente tudo e todos, menos a si em grau algum.
Dinheiro era também um assunto dileto. Tinha casas de aluguel. Devia ter uma ou duas, mas já se achava do ramo imobiliário. Acabara de ser premiado pelos vinte anos na mesma instituição pública, maldizendo o Governo por cobrar-lhe imposto de renda, como um carrapato que reclama do sangue do cachorro e deseja a morte do animal. Juntava sem motivo: ainda morava na casa da mãe; comia da comida da mãe, esperando sua morte para herdar a casa e o singelo mobiliário e, antes disso, já brigava com os irmãos pois, em sua diminuta visão, seria ele o único e merecido herdeiro, já que estava “cuidando” da velha. Chegou a namorar sete anos uma abençoada de Deus e, esta, cansada, terminou o relacionamento e logo engravidou de outro cara; da criança, diz aos quatro ventos que ajuda a cuidar, mas sabe-se lá o que a mãe passa para cuidar da filha pelo pai abortada. Ele queria os louros da paternidade alheia, mas deixava dúvidas se desembolsava algum centavo em prol da causa.
Todo mês de julho, era mandado para o setor de atermação do cartório onde “trabalhava”, a fim de substituir um servidor que tirava férias neste mês. Por esta época, o que era pouco, reduzia-se mais ainda: gostava de agendar as atermações, então se rareavam os processos no cartório. Dificultava a vida de quem não podia pagar por advogado pois, como dizia, detestava pobre. Ao fim de sua missão, chegava palrando sobre seus melhores dias fora dali, longe da chefia: tomava sol de manhã e à tarde (sim, durante o expediente); conversava bastante com as estagiárias – adorava mulheres bem mais novas, não se sabia se por causa da beleza natural ou porque eram as únicas a não desconfiar de sua inteligência –; podia ir para o trabalho com a mesma roupa que tinha ido à academia; chegava meia hora depois e saía meia antes de seu horário devido; o horário de almoço de quarenta e cinco minutos que, todos os dias ocupava uma hora e vinte, nestes dias, então, virava duas a três horas. Com tudo se deliciava, achava-se esperto. Tinha até planos para dar cabo do funcionário que substituía para poder ficar por lá o ano todo.
E assim termina esta tentativa de narrativa ainda pela descrição, pois nosso personagem não age, não surpreende, nada muda em sua vida, não há clímax, apenas a morbidez de sempre.
Dia festivo ou licença-nojo
- Pessoal! Sexta o diretor vai trazer bolo salgado e ficou pra gente comprar os refrigerantes e um bolo doce pra comemorar os aniversários do mês de agosto. Vai ficar oito reais pra cada um.
- Não quero participar, obrigada!
- Mas por quê?
- Estou de luto nesta semana!
- Ah...para de graça, por que isso agora?
- Porque meu pai morreu ontem.
A exclamação foi geral. Em uníssono foram perguntando o que estava fazendo no cartório, que ela tinha direito à licença-nojo, etc.
- Estou aqui, ué! Não quero ficar em casa.
Mas como explicar que mesmo uma filha que não tinha em seu registro o nome do pai – frisemos: aborto paterno sempre foi e sempre será permitido – também tinha pai e que um dia ele morria. Não provava filiação, mas tinha sido feita por um homem e uma mulher que transaram um dia e que agora o homem tinha deixado esta vida e ela tinha sentimentos. Era muito para a cabeça daquele povo, tão acostumado à burocracia cartorária, oriundo de famílias tradicionais do interior de um estado qualquer.
Ela estava triste demais e não gostava de se explicar. Estava cansada de falar com pessoas que investigavam a vida alheia para ficarem tecendo comentários pelas costas, na verdade, faziam isso sem qualquer investigação mesmo.
- Ah, mas se você não participar vai ficar mais caro pros outros!
Meu Deus, quanta nobreza de espírito! Uns cinquenta centavos mais caro para cada um estavam sendo colocados em questão, apesar do luto de uma pessoa. De fato, aquilo não valeria uma discussão, então acrescentou:
- Ok, participo.
E foi logo dando sua parte do bolo para não correr o risco de esquecer-se se deixasse para mais tarde. Cairia na boca do povo, mais do que já estava.
Ela era uma criatura muita esquisita naquele meio. Não participava das rodinhas de fofocas, almoçava sempre sozinha, aliás, almoçava com pessoas de fora do cartório, preferia ler a estabelecer qualquer conversa fiada. Não reclamava do serviço, fazia-o sem alardes, sem valorizações, não puxava o saco de seus superiores, ou seja, vivia num mundo particular, muito curioso a olhos alheios.
Na sexta festiva, mandou uma mensagem de texto para sua chefe, dizendo que abonaria naquele dia. Era a licença que precisava. Acordou e, como de costume, levou a filha à escola e nadou; depois voltou para casa, assistiu a um filme do Truffaut, almoçou em um delicioso restaurante japonês, comprou uma garrafa de vinho e visitou um amigo, já aposentado, com quem discutia assuntos literários. Na volta para casa, ouviu Nelson Freire tocando Chopin, revigorando, assim, a audição, os músculos, a mente, o paladar, a alma.
Viveu o dia!
Quando chegou em casa, vomitou até não sobrar mais nada no estômago. Não era nem a comida nem a bebida que ingerira que lhe tinham feito mal, mas a lembrança da festa no cartório: falas e risadas altas, bajulações, bocas vorazes comendo “bolo” salgado (pão de forma com maionese, frango desfiado, ervilha, batata-palha, sim, pão com batata), tomando refrigerante e arrematando com bolo de verdade (dulcíssimo). Quanto gosto pelo mau gosto!
A doutora estagiária
Estou bem de saco cheio de conviver com pessoas maniqueístas, que julgam a tudo e a todos, colocando cada coisa numa caixinha própria, perdendo a gradação, as tonalidades, a complexidade, principalmente das pessoas. Para este tipo, ou você é bom ou você é ruim. Sou sempre ruim para elas, pois mesmo sofrendo alguns contratempos, não me sento em cadeira de vítima e revido, me havendo diretamente com aquele que me provocou. Consenso geral: sou uma pessoa ruim.
Como me cansa este tipo de julgamento. Desde pequena me colocam na caixa das pessoas ruins. Minha mãe já fazia isso. A Lena é ruim. Por quê? Porque eu a respondia quando não concordava com alguma coisa. Sempre fui boa na escola, sempre trabalhei dentro de casa, não dei sequer um dissabor para minha mãe até sair de casa com 23 anos. Continuei não criando problemas para ninguém depois disso. Tenho 34, só tive dois empregos nesta minha vida, saí de um para entrar em outro que julguei melhor, não por outro motivo. Nunca fiquei desempregada. Peguei dinheiro emprestado duas vezes (uma para comprar uma casa melhor para minha mãe e outra para conseguir passar o mês até receber meu primeiro salário) e paguei tudo dentro do prazo com seus encargos. Na verdade, pago tudo o que tiver de ser pago. Retribuo tudo que me dão, para o bem ou para o mal.
No trabalho, meu serviço está sempre em dia. Não costumo fazer fofocas, tampouco intrigas. Não atrapalho ninguém a trabalhar com conversas desnecessárias, mas sou considerada uma pessoa ruim. Tive de ouvir isso esses dias. Por quê? Porque sequer olhei na cara de uma ex-estagiária quando, sem ocupação na vida, veio nos fazer uma visita de 4 horas durante o expediente e não parou de falar 1 minuto sequer. Prolonguei meu café da tarde neste dia, tomei um chá ao invés de café, mas minha angústia pela sua presença ficou evidente. Realmente não gosto de tal ser, não de graça: quando iniciei neste trabalho, ela já era estagiária por aqui (ela ficou 7 anos como estagiária!, ou seja, uma estagiária com quase doutorado em estágio!), então ela se ocupava em todos os dias se aproximar de minha mesa e falar com a colega ao lado a frase: “Não gosto dessa menina...”. Ora, nunca tinha a visto na vida antes de trabalhar ali. Como ela poderia não gostar de mim tão de graça assim? Será que minha cara já evidenciava minha maldade? Todos os dias ela fazia isso.
Nunca lhe indaguei o porquê, estava grávida na época e não tinha disposição para questionar ninguém. Certa feita, ao sair do prédio onde trabalhávamos, cruzei com ela numa quina da construção. Levei um susto, pois ela estava de moto em lugar inapropriado e eu não estava esperando encontrar alguém motorizado naquele ponto. Minha barriga ficou até dura por algum tempo. Pensei que minha filha tivesse morrido, pois nunca tinha sentido aquilo e nunca estive grávida antes. Senti muito desconforto. Ao ver-me assustada, a criatura desatou a rir, uma risada muito alta, muito humilhante: risada para comemorar o susto numa grávida! Bem... coisas de pessoas boas, acredito eu. Nunca mais olhei na cara da referida. Não contei para ninguém, mas minha reação só foi interpretada como se eu tivesse birra gratuita da pessoa. Coisa de mulherzinha. Pessoa cheia de hormônios, coisa para louca mesmo, ou melhor, coisa de gente ruim.
Realmente, não sei o que é ser boa... nem sei se quero aprender...
A falta de serviço: “Sossegadinhos” x “Assoberbados”
Por que as pessoas que fazem pouco querem sempre fazer menos? Se o volume de trabalho aumenta um pouquinho, prontamente querem delegar para outra pessoa sua obrigação e, se não tudo, pelo menos parte. Caçam aquele que, segundo elas, está “sossegadinho” para repartir o que tem de fazer, dividindo a esmola para dois. Não enxergam que a pessoa que está “sossegadinha” talvez tenha trabalhado com mais afinco e concentração para poder estar tranquila, enquanto o “assoberbado” enrolou, distraiu-se com mil e uma coisas alheias ao seu dever, ou simplesmente teve o azar de naquele momento estar com algum trabalho a mais - nada que precise ser objeto de operação coletiva, nada que envide vários esforços. Este tipo de pessoa não enxerga que a “sossegadinha” resolve problemas sem a dependência de outra, por saber pensar, por escrever ou ter internalizado os conhecimentos necessários para cumprir suas obrigações, o que ajuda na fluidez do serviço; que se concentra enquanto trabalha, evitando o retrabalho; que não deixa nada para depois, resolve o que tem de resolver prontamente; que organiza seu tempo, seu espaço físico, suas ferramentas de trabalho e isso aumenta a agilidade de sua ação; que organiza seus pensamentos, assim como sua rotina. Estar tranquilo exige esforço, mas muitos não enxergam isso.
Onde trabalho, todos têm pouco trabalho real. Há os que dramatizam, super-valorizando suas ações; alguns não compreendem bem seus afazeres; a maioria não possui boa organização propositalmente; poucos fazem o que têm de fazer sem alardes, ordenadamente, sem delegar nada a ninguém. Estes últimos têm perfil destoante e são chamados de “sossegadinhos”, mas considerados pelos “assoberbados” uns folgados, mesmo que estes tenham mais serviço que eles. O fato de os “sossegadinhos” não se mostrarem assoberbados faz crer que possuem menos serviço, nunca que trabalham melhor e, portanto, podem colher frutos de suas ações, tal como a tranquilidade. Os “assoberbados” não se importam que os “sossegadinhos” trabalhem sempre mais e mais, mas estes não são burros e, não raro, ficam em estado de inação diante de algum pequeno caos que venha a se instalar na rotina; agem apenas se requisitados por seus superiores, que também não enxergam a diferença entre “assoberbados” e “sossegadinhos”.
Tenho o perfil de “sossegadinha”, quem sabe também considerada “folgadinha”, “preguiçosinha”, “protegidinha”, “a-que-tem-o-serviço-mais-fácil” ou sei mais lá o que que fervilha na mente de meus colegas. Já ouvi reclamação, pela via hierárquica, de que eu não atendia a balcão com frequência. Ora, se o grosso do serviço está em andamento processual, se há 10 finais de processo, 4 escreventes, se fico com 4 finais, outro escrevente com 3 e mais processos físicos (escassos e todos em via de extinção), outro com os 3 restantes e a remessa da lauda de publicação para o diário (serviço de alguns cliques), fica outro só para fazer alguns procedimentos administrativos; este último não poderia atender mais balcão? Os que têm 3 finais atender mais que aquele que tem 4? Pareceria óbvio, mas não é. Como assumo a postura da justiça, recebo olhares e comentários de “sossegadinha”, “folgadinha”. Não consigo entender isso: ou quem me julga é mau caráter ou simplesmente lhe falta compreensão para analisar as próprias ações e as de outrem. Prefiro acreditar na ignorância, embora tal situação esteja me cansando.
Gostaria de trabalhar em um lugar com mais serviço para ocupar-me mais, não trabalhar mais que outros, pois isso não é justo se recebo o mesmo salário. Na verdade, sou bem ocupada, mas com coisas alheias ao serviço, visto que este está rigorosamente em ordem. Mas o fato de não estar o tempo todo trabalhando em coisas afetas à minha obrigação (pelos motivos expostos) e de não me mover para trabalhar bem mais que os demais tem-me feito alvo de más considerações. A minha tranquilidade é mal vista, como se me proporcionassem isso, não que seja algo que eu mesma conquisto. Tais reações causam-me maus pensamentos: acabo sentindo raiva dos “assoberbados”; penso em também fazer sempre menos para me igualar aos demais; acabo acreditando que eficiência, eficácia e efetividade são coisas ruins, anti-producentes no sistema em que me insiro. É claro que, no fundo, sei que tudo isso é bobagem; que tais reações não devem me afetar; que tenho de fazer meu trabalho como acredito e ficar bem comigo mesma; que não devo me contaminar. Entretanto, não é fácil nadar contra a corrente.
Olhando-me no espelho?
Não entendo pessoas que gostam de falar da vida de outras pessoas que não conhecem de verdade. Acho que não entendo pessoa alguma, visto que tal prática é tão corriqueira. No âmbito forense, escreventes amam falar acerca de alguma intimidade ou mesmo algo público que tenha acontecido com juízes, advogados, diretores, chefes ou sei mais lá quem. Sabem da vida alheia pelo Diário Oficial: há quem leia o diário todos os dias com esta finalidade. A pessoa nem busca informações usando apenas seu nome – pois vai que haja alguma publicação inesperada – a pessoa LÊ o diário de cabo-a-rabo! Parece coisa de outro mundo, mas não é. Tudo bem que a Justiça e toda sua parafernália acabam se distanciando da população, criando-se um minimundo entre as grades de um Fórum, mas não precisava tanta esquisitice: não sei por que a vida de um “superior” é tão interessante a ponto de tomar tempo de leitura e de conversa. Deve haver explicação psiquiátrica para tanto, eu é que não conheço, caso contrário, não haveria tantas revistas de fofoca sobre celebridades, tantos realities shows e mais tantos outros passatempos esquisitos por aí. Talvez a pessoa que comente a vida da outra sinta-se com determinado poder sobre a mesma do tipo: olha, eu sei da sua vida. No fundo, acho que gostariam de possuir o lugar da outra, mas como não conseguiram, tecer comentários, por vezes maledicentes, seja uma forma de ocupar tal lugar. Ou a vida levada é tão insignificante que qualquer outra vida mostra-se mais atraente.
Outra característica deste ambiente que não entendo é a subserviência. Muitos se regozijam quando conseguem trocar algumas palavrinhas com um juiz, mesmo que vazias, oriundas de um não assunto, só pelo prazer de puxar-o-saco. Há quem resolva problemas pessoais de juízes ou de qualquer que esteja acima da pessoa na hierarquia, enfrentando até filas em banco para pagar as contas domésticas do superior. As pessoas que assim agem devem sentir-se melhores que as outras, já que foram dignas de “confiança” de um superior; não se sentem “escravinhas”, “capachos”, ilegais – já que elas devem servir à população, à instituição exclusivamente, não a uma pessoa da hierarquia em particular –, sentem-se privilegiadas até, já que o serviço que deveria ser feito é deixado de lado para fazer coisas alheias à sua função: o trabalho obrigatório pode parecer sempre mais árduo que qualquer outro.
Doutor é um pronome de tratamento neste lugar, não uma titulação acadêmica, basta a graduação na faculdade de Direito que qualquer sujeito torna-se doutor! Ele mal consegue redigir uma petição inicial e já possui o título daquele que fez graduação, mestrado E doutorado, defendendo TESE. Além do pronome, o tratamento também é diferenciado se comparado com o restante dos usuários da Justiça (usuários, termo comumente usado para designar aqueles que fazem uso de drogas...). Os serventuários esquecem-se de que todos ajudam a pagar seus salários por meio de seus impostos, sejam nóias, advogados, traficantes, juízes, promotores, os próprios serventuários, etc., todos deveriam ser tratados com a mesma deferência.
Neste minimundo, também é prática a fofoca, considerando ser esta sempre para prejudicar a imagem do outro. Até assunto de processo cai na roda de fofoca, contrariando toda a ética que deveria ser perseguida pela pessoa que tem acesso à informação para dar andamento a seu trabalho. Todos julgam. Bastam poucos indícios e a pessoa já recebe sentença condenatória. Não é preciso audiência, instrução nem debates, aliás, debates só por aqueles que fazem parte da rodinha e de forma bem superficial, nada reflexiva.
Outra peculiaridade deste mundo é a demência que acomete parte daqueles que conhecem e lidam diariamente com os trâmites processuais: quando diante de procedimentos que envolvam políticos, tecem os mesmos comentários daqueles que não conhecem os trâmites! Exemplo: é aberta uma investigação sobre a conduta do político X, ele é chamado para depor, o comentário ouvido é – “Fulano tem que sair preso da delegacia!”. Isso se o político for de esquerda, porque se de direita, todo e qualquer engavetamento é legítimo. Meu Deus, quanta burrice!
Talvez eu, neste texto, não esteja sendo tão diferente daqueles que critico; talvez eu, pela convivência, já não saiba ver a beleza nos seres com os quais trabalho, beleza em suas atitudes, não consiga relevar as coisas; talvez não consiga perceber que o cotidiano é alienante e o homem, fraco; talvez minha formação seja um pouco diferente e veja um copo d’água pela metade, meio vazio; talvez em outros ambientes na mesma instituição as coisas sejam diferentes; talvez um dia as coisas melhorem ou melhore meu jeito de enxergá-las; talvez, talvez...
Fora do cartório
Meu destino dourado
No Fórum, trabalham muitas pessoas singulares, com as quais alivio meu tédio. Hoje, quando voltava do banheiro, parei para conversar um pouco com um colega do trabalho. Falamos muito sobre tudo e nada como sempre. Desta vez, no entanto, ele resolveu ler as linhas de minha mão – não me condenem, o serviço é pouco e as horas, muitas – e saí da conversa com uma sensação de felicidade ou sei lá o que poderia definir o riso na alma, porém não atravessei rua alguma, contive a felicidade e sentei-me para escrever esta história.
No começo, não levava este colega muito a sério, mas com a convivência passei a observar sua beleza e virtudes: é alto, forte, possui voz retumbante, cabelos e olhos que fazem lembrar uma águia; é imponente; conhece as histórias que escorrem pela construção e outras que chegam da capital; presta atenção às coisas do mundo manifestado e do não manifestado; conversa sobre assuntos da patuleia e da alta filosofia. É um homem inefável.
Minhas linhas diziam que eu era uma pessoa bem sentimental. O que não se contesta. Sinto muito as coisas. Não as evidencio em ações, não sangro para ninguém, mas em meu íntimo sinto deveras. Também indicavam que eu era uma pessoa com muita capacidade intelectual. Muitos dizem isso, talvez eu tenha que produzir mais para me convencer realmente desta capacidade. Que as coisas na minha vida vinham com certa facilidade. De fato, nunca tive muitas dificuldades em conquistar o que desejei, embora eu deseje pouco, deseje coisas que só dependam do meu desenvolvimento interior. É claro que tive muitos reveses, mas sempre acreditei que não era para ser e segui em frente. Nada demais. Também as linhas mostravam que eu teria uma situação financeira muito positiva por volta dos 42, 45 anos. Não sei, faltam uns dez anos para isso acontecer, mas fiquei feliz com esta “premonição”, todo mundo quer ter uma situação financeira favorável, pois isso pode evitar algumas complicações de ordem prática, além de podermos beneficiar pessoas amadas. Entretanto, resta dúvida, pois não faço nada para ganhar dinheiro, não persigo a conquista em dinheiro e como todos sabem: nada cai do céu. Outra visão foi a de que também ficaria muito apaixonada por alguém que não meu cônjuge. Como podemos mudar nossos destinos com nossa ação, talvez meu destino seja sempre apaixonar-me, nunca viver paixão alguma, além da que tenho por meu marido. Com ele tenho projetos de envelhecer ao lado, na tranquilidade de um amor pacífico, na segurança de companheiro leal, sensato, honesto, justo.
Resolvi escrever este ocorrido para eu relê-lo quando completar 45 anos. Será que estarei numa situação financeira muito boa? Talvez, se comparado à maioria das pessoas de meu país, sim, mas nada demais, nada que ultrapasse as comodidades comedidas de uma classe média baixa. Será que minha capacidade intelectual será evidenciada a ponto de eu ser convencida da mesma? Talvez não, porque o conhecimento, alimento do intelecto, é como uma ilha, quanto maior sua porção de terra, maior seus limites para o desconhecido. Sem cometer o sacrilégio de comparar-me a Sócrates, mas reconhecer que nada sabemos é algo muito bom para nos impulsionarmos para a busca de conhecimento. Será que me apaixonarei a ponto de revisar meus projetos? Dominar as paixões é algo que busco para não ser títere na mão do destino. Ou será que não serei eu mais uma Macabéa da vida?
Olhares distintos
Os olhos se cruzaram. Ela, dentro de seu carro no estacionamento, tentava meditar, mas pensamentos sobre a política de seu país tomavam conta de sua mente, inviabilizando a atividade tentada. Ele, do lado de fora, à frente de seu carrinho, conversava com um transeunte que parara com sua bicicleta. Todos ouviam uma música alta, norte-americana, que ele pusera em seu veículo: sua caixa de som era potente.
Em seu carrinho havia três bandeiras do Brasil, símbolo jogado na lama por quem naquele momento venceu nas urnas. Ele talvez pudesse ter predileção pelo fascista ou ter pego as bandeiras jogadas no lixo para enfeitar seu instrumento de trabalho, poderia usá-las para expressar sua esperança e amor por seu país ou simplesmente para estar na moda: bandeiras e camisetas da seleção brasileira confeccionadas no Paraguai ou na China adornavam a maioria daqueles que saíram às ruas contra a corrupção de um único partido.
Ela estava triste por seu povo ter sido tão manipulado, não ter conseguido identificar e analisar os reais problemas do país, por ter expressado tanto ódio e concretizar isso nas urnas, elegendo um fascista: talvez com menos colhão que os originais, mas ainda sim fascista. Ela tinha pena de pessoas como ele que historicamente sempre levavam o chicote no lombo. Mas esta era a visão dela, que era xingada por seus pares de comunista, como se ser comunista fosse algo terrível, fosse um xingamento. Talvez na visão dele, apenas seus ancestrais tivessem sido escravos, ele não, ele era empreendedor e patrão de si, pois puxava alegremente seu carrinho por toda a cidade, ouvindo músicas do estrangeiro, à procura de materiais que não serviam mais à população.
De fato seu trabalho contribuía para o meio-ambiente, era um trabalho importante como qualquer outro, mas que a sociedade não enxergava, não valorizava. Junto às bandeiras podiam se ver vassouras e rodos gastos, galões de plástico pendurados, além de outros materiais no interior do carrinho que faziam pesar – vide o esforço dele ao puxar o carrinho – mas que não podiam ser vistos por ela. Era um homem forte, de estatura mediana, jovem e bonito, embora sua beleza não interessasse ninguém, por não ser fruto do mundo de consumo. Usava chapéu marrom, fumava elegantemente, usava uma camiseta Nike, bem gasta e suja, bermuda escura, chinelos.
Talvez conversasse sobre política com o outro homem. Talvez comemorasse a vitória do candidato vencedor, sem saber que este o considerava tão animal a ponto de ter seu peso pesado em arroba; que dizia que o trabalhador ou tinha trabalho ou tinha direito, igual na época da escravidão que talvez não existisse mais por aqueles tempos; que a vida sexual ou a opção religiosa de uma pessoa devesse ser mais observadas que a política econômica do país, dado que esta já estava posta; que era adepto à liberação da posse de arma pelo cidadão comum, não refletindo ser ele (o que estava à margem da sociedade consumista) o alvo principal; que, dentre outras ideias pífias, acreditava que o cidadão que já não vivia devesse trabalhar até os 75 anos ou mais para ter direito a uma aposentadoria de fome, se contribuísse para a previdência durante toda a vida, é claro.
Ela estava triste por todas estas questões. Ela queria que sua vida média fosse estendida a todos os seus irmãos. Ela não acreditava no que estava em voga. Ela tinha outra visão, mas qual seria a visão dele? Eles se olharam, ela sorriu, ele não retribuiu, talvez o sorriso tivesse sido interpretado como deboche ou algo bem estranho quando direcionado a ele. A conversa acabou e ele foi embora, puxando seu carrinho, fumando seu resto de cigarro, ouvindo a música em língua inglesa, todo orgulhoso, todo patriota. Ela voltou ao cartório, pois tinham acabado os quarenta e cinco minutos de almoço e meditação.
O almoço
O almoço era realizado no refeitório claro. Lá se reuniam vários trabalhadores, de várias varas ou funções: estagiários, escreventes, motoristas, faxineiras. Todos os dias havia um assunto diferente em pauta. As estagiárias costumavam falar de suas lutas ferrenhas na vida universitária, com seus professores tiranos ou com suas paixões de van, e na vida mundana, travadas com os pais ou com seus cabelos nunca disciplinados o suficiente. Os escreventes colocavam-se na posição de sábios da montanha, tentando dar conselhos, lições de vida, falando sobre filosofia, psicologia, política, além de outras “Coisas que nóis não entende nada...”. Havia o motorista intelectual que ainda nos dias hodiernos mantinha carteirinha em biblioteca pública. As faxineiras falavam desde a infância violenta até suas viagens com as amigas pelo litoral; uma, em particular, expressava seu sonho de Cinderela, queria ser percebida por um juiz de BMW, queria viver um grande amor e ser cuidada por ele, o qual a ajudaria a realizar todos os seus desejos estéticos.
Eram momentos divertidos e ricos, de muita troca, que ajudavam a alimentar a alma. Mesmo sendo difícil cozinhar, devido ao tempo escasso fora do cartório, o qual procurava dedicar exclusivamente à sua família e amigos, Lena preparava sua marmita para dividir o tempo do almoço com aquelas pessoas. Quando não podia, frequentava um restaurante no centro da cidade, onde travava conversa com o manobrista do estacionamento, com o ancião que pesava sua comida, com a dona do restaurante que fechava sua conta, porém estas conversas eram muitíssimo menores que as do refeitório, posto que o tempo tinha de ser repartido com o trajeto também.
Havia beleza nas pessoas, no cotidiano. Todos mantinham a esperança em dias melhores, todos lutavam contra suas dores, todos faziam seu melhor. Talvez a claridade e o espaço aberto, somados ao horário em questão, ajudassem a captar estas singularidades, estas minúcias. Lena fazia desta hora, a sua hora mágica, a melhor hora para captar as melhores imagens para sua literatura, entretanto, não se perfazia nem em 60 minutos, daí a compreensão do porquê as imagens menos felizes tomarem conta de sua escrita: infelizmente nos deixamos dominar pela face sombria do mundo profissional.
Fim.
Atualizado em: Sex 2 Nov 2018