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O defunto mais caro do mundo - CAP I.

Cortando as ruas madrugada adentro, um carro fúnebre e seus circunspectos passageiros levavam no féretro o finado mais vivo que esta urna jamais abrigara.
As ruas eram frias, o condutor do rabecão era friíssimo. Apesar dos postes alumiarem aqui e acolá, os espaços escuros eram extensos e a falta de gente na rua só agravava o odor de solidão daquelas longas avenidas. Era uma bairro residencial, de ambos os lados erguiam-se prédios e uma ou outra janela acesa de gente sem sono.
O rabecão curvou a direita, nos seus retrovisores via-se dois Buick Roadmaster, série 70 e pretos, com vidros fumê que não atendiam as ânsias de nenhum curioso de plantão pela vizinhança, as placas ambíguas pela escuridão menos ainda. E seguiram: direita, esquerda, em frente... Mas nunca pra trás. Conheciam aquele bairro como Deus conhece o homem, os impressionáveis seriam capazes até mesmo de afirmar que eles participaram na reestruturação do lugar, depois da guerra.
A tríade de quadro rodas seguiu o passeio lúgubre por mais meia hora ou menos, chegando em um estacionamento, de fronte a uma casa de dança de dois andares. Ao redor havia mercados fechados, um ou outro bar mal-encarado com alguns maltrapilhos tontos de álcool e uma delegacia abarrotada de jovens pelintras delirantes de derivados de ácido lisérgico.
Os Buick e seus condutores ficaram no estacionamento, o rabecão seguiu para os fundos da casa de dança de dois andares. As luminárias inconstantes da casa, de vez em quando, davam o ar da graça e iluminavam um letreiro que parecia dizer: "The nightwolf's lair".
Saindo do rabecão, motorista e passageiro, austeros, pontudos. Ambos de fedora, terno e casacos trespassados, ao melhor estilo Joe Bonanno. Em frente deles e do rabecão, um homem de olhar afiado, fedora impecável e charutos caros os observava. Estava acompanhado de uma mulher, ambos de preto. Ela com um burberry trench, ele com casaco esporte quadriculado e terno de três botões.
Não se pode dar maiores descrições do rosto da moça, encoberto em véu negro e com uma rosa ainda mais negra em seu cume. Diz-se que era alta, talvez pelo salto, mas não há como saber de certo. Não tão alta que chegasse a passar algum homem presente, mas alta. Tinha ares finos e severos, um rosto esnobe e óculos escuros que não deixavam ninguém ler seus olhos.
- Conferiram a caixa? - Perguntou o homem de casaco esporte.
- Sim senhor, a cada santo quarteirão. - Respondeu o passageiro do rabecão.
Junto de outros 3 homens, o motorista retirou o caixão e colocou-o em uma maca de metal.
- Vê com teus próprios olhos, senhor Cesare.
Cesare e seu charuto chegaram mais próximos do caixão, a mulher foi junto. Diferentemente dos caixões convencionais, este tinha olho mágico, mas de fora para dentro. Era cor de caramelo e pouco luxuoso, no centro tinha gravada uma cruz com uma argola acoplada. Com certo jeito particular, o motorista puxa a argola e a cruz se abre e deixa ver, por intermédio de um vidro, parte de um rosto pálido. Este rosto pálido ostentava óculos de lentes avermelhadas, entre o óculos erguia-se um nariz afilado e uma mecha lisa de cabelo escuro.
- Ótimo, vamos com ele lá pra cima.
Quatro homens, todos de terno preto e fedora branca, levaram o caixão para o segundo andar. Chegando lá, com um baque grave no chão, colocaram o caixão de pé. A sala do primeiro andar era luxuosa, a do segundo luxuosíssima. Castiçais dourados pendiam do teto, tapetes carmesim, com ar Real,cobriam o chão;  mesas chiques cobriam o resto do espaço. Dezenas de homens discretamente armados estavam ao redor, de olhos fixos no caixão. No balcão, o barman limpava seus copos com um delicado pano branco. O lugar inteiro cheirava a cigarro, os homens também.
- Vamos, abram o esquife. - Disse um homem enquanto trazia o fogo do isqueiro para o cigarro que estava em sua boca.
Na única mesa ocupada estavam Cesare e sua companheira, a única mulher no recinto.
Depois de uma longa baforada, o homem com isqueiro perguntou - E então, padrinho? Ainda não entendi porquê trazer esta "peça" em um caixão. O que o senhor queria, intimidar o coitado?  Ainda que assim fosse, para quê tanto? Dá pra ver a delegacia desta janela mesmo, um caixão aqui não é abusar da boa vontade deles?
- Meu filho, hoje em dia as esquinas tem olhos, ouvidos, e os notórios curiosos. - Disse Cesare, e continuou - Param os velhos, os caminhoneiros, as mulheres, os jovens e os pais de família. Tudo é passível de uma apalpada, uma olhada, ou qualquer verificação de rotina; menos os carros fúnebres. A audácia policial sempre esbarra na incredulidade e é na sombra dela que nós passamos nossa mercadoria. A receita para a discrição: mescle o banal com o excêntrico. Todos olham o rabecão, mas pará-lo seria um disparate.  Ele leva um santo, um morto.
O homem do cigarro tinha um sorriso de satisfação no rosto. - Pra mim serve, padrinho.
Assim que terminou estas palavras, abre-se o ataúde. Diante de dois homens, de ambos os lados do caixão, cai um corpo pálido, e ouve-se o som oco do encontro da sua cabeça com o macio tapete.
- Ora, mas que diabo é isto? - Disse um dos homens.
- Anda, maltrapilho, levanta-te - bradou o outro.
O homem não levantava, parecia mesmo ter entrado no personagem.
- Pega nele desse lado, vem, vamos leva-lo.
E, levantando-o pelos ombros, carregaram o pálido até a mesa onde o casal estava, próximo da janela que dava para rua.
No canto da sala, motorista e passageiro do rabecão estavam boquiabertos. Dentro do caixão ficaram três grades de metal, duas coleiras também metálicas, uma mordaça  e algumas cordas. O homem ainda carregava em seu corpo duas algemas, uma nos pulsos, desatada de uma das mãos, e outra na perna, que também só estava atada a uma delas.
Ele viera preso por cordas, correntes de metal, coleiras de choque e algemas da melhor qualidade. Viera, mas já não estava.
- Então ele é mesmo o tal mágico, desgraçado. - Disse o passageiro que o trouxe, tentando esconder sua cara de bobo.
O motorista ficara zangado, sentiu-se passado para trás.
O escapista lá ia, apoiado-se nos braços de seus sequestradores. Colocaram-no na cadeira, do lado oposto do casal. Ele continuava com o ar sonolento, senão morto. Era branco, pálido. Usava um blazer que um dia fora também branco, mas hoje a cor mais adequada para descrevê-lo seria "surrado". Camisa vermelha e calça bege à moda antiga, luvas negras e desbotadas. No rosto, pendiam mechas de cabelo pela testa, mas não tinha cabelos longos, apenas era adepto do caos capilar, ou não tinha pente. Abaixo do afilado nariz aparecia um fino lábio ressecado e acima dele um óculos fundo de garrafa com lentes avermelhadas. Parecia de altura mediana, sentaram-no desajeitadamente e ele não fez questão de se corrigir, parecia dormir sentado, com os olhos pro chão.
- Buona notte, Aires. - Disse Cesare. - Gosta de vinho?
- Gosto, - Disse, com uma inesperada gravidade na voz, o sonolento nomeado de Aires - Mas por hoje, bebo fumaça.
Rapidamente, com uma destreza pouco esperada de quem veio de uma viajem intercontinental, Aires retira da algibeira um isqueiro, e de trás da orelha um cigarro. Era um Camel. O motorista que lhe trouxe pôs a mão na própria algibeira e notou, para sua muda fúria, que o isqueiro e o Camel eram os dele. Aires pareceu desferir um olhar irônico para o motorista, mas as lentes avermelhadas não deixavam ninguém ver o seu interior.
- Então, não é que pegamos mesmo o senhor! - Falava com externa felicidade Cesare. - O homem mais procurado do mundo inteiro, que mais vezes foi capturado, que mais vezes fugiu. A miragem inalcançável, o ouro vivo.
- Se sou quem você diz, - replica Aires - a minha índole já arruína teus esforços e o destino te condena como mais um fracassado. Ou seria o senhor a gota de chuva que me tirará o ultimo suspiro de liberdade? Aquela única, dentre todas as milhares, que findou de afogar meu pulmão em líquido.
A mulher, com apaixonada curiosidade, perscrutava o óculos de Aires, que durante todo o discurso olhava para a fumaça produzida pelo seu camel. Ela queria decifrar aquela alma de feições silenciosas, mas profunda como as cavernas do inferno.
Soltando um irônico riso, respondeu Cesare - Não, não senhor! Não cheguei onde cheguei sendo ingênuo ou arrogante. Meus desejos voam baixo, só lhe vim pedir um humilde favor, que lhe será pago em quantias muito pouco modestas, e muito menos ainda humildes.
Com a algema ainda presa em um de seus pulsos, Aires olhava desatento para a fumaça.
- Quero que me diga tudo, nada escondes de mim. O cumprimento do dever só depende do alvo, e... - Neste ponto foi interrompido por Cesare.
- Eu sei como o senhor opera. Ademais, tudo que precisa saber está aqui.
Lhe passou um envelope vermelho, com o selo roxo da casa: "Nw".
Aires pegou, abriu o envelope e leu a primeira linha, que dizia:
"Boiarina de Moscou."
- Se acha que eu sou capaz de arrancar a vida de qualquer um, o que protege sua cabeça de mim?
Cesare estalou os dedos e brotaram dois pequenos revolveres na cabeça de Aires, eram dos dois que o tiraram do caixão.
- É uma questão de velocidade, Sr. Aires. O que chega mais rápido, as suas artimanhas e truques, ou o projétil da Ruger que está ao seu lado?
Aires, colocando os olhos sem Cesare, disse: 400 milhões, no trem em Singapura, no dia 12 de novembro. Me dê 6 meses para o trabalho.
- Daria-te um ano. - Replicou Cesare, e os homens recolheram suas armas a escuridão de seus casacos outra vez.
- Passar bem. - Concluiu Aires, enquanto se levantava.
Fez uma vênia para o casal, baforou o cigarro e foi-se encaminhando para a porta por onde entrara.
- Ilusionista, não esqueceu de algo? Qual é a garantia de que eu vou lhe pagar?
- Quanto vale os seus 30 anos restantes de vida, meu bom senhor?
- Justo. E quanto ao envelope, não tem curiosidade do resto?
- Já o li, fique.
Aires desceu as escadas, que subiu carregado dentro do caixão. Lá fora havia um carro esperando por ele, não era o rabecão. Entrou no banco do passageiro, e o motorista perguntou o destino.
- Largo no estacionamento.
O portão da saída começou a subir, dois homens tiravam o stinger da passagem, estavam comumente vestidos, como todos na casa. Fedora, terno preto, sapato pretíssimo. Tinham em mãos duas metralhadoras giratórias e encaravam o carro e seu passageiro.
O carro deu a volta na casa e deixou Aires no estacionamento, que dava para a parte onde estivera conversando dantes.
- Aqui está bom, obrigado.
- Aqui? - Disse o motorista.
Aires já estava fora do carro e espreitava pela esquina.
O motorista ajeitou a fedora e meteu-se por entre os quarteirões, o trabalho terminara.
Cesare olhava por entre a janela, começava a chover.
"Nosso projétil já saiu do cano." - Pensou.
A mulher, que até pouco estava com ele, tinha ido ao banheiro. O pensamento, de Cesare ao barman, ainda estava no pálido defunto vivo que por ali passou. O dela mais que o de todos.
Aires já ia a um quarteirão, deu a mão para um táxi que passava e entrou no banco de trás.
"Para onde, senhor?"
- Rússia, para a Rússia.
- Nunca te procuram para uma rixa de vizinhos.
- Não é de todo o mal, viajar me agrada.
O cigarro virou cinzas e a noite amanhecia, Aires tirou do bolso a carta que Cesare lhe entregara.
Cesare, já sozinho no segundo andar da luxuosa casa de dança, olhando o nascer do sol e tomando o seu vinho das manhãs, pegou o envelope vazio que Aires deixara na mesa, quando sentiu um volume estranho.
Colocou-o de cabeça pra baixo.
Caíram vinte e duas pequenas cápsulas de Ruger.
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Atualizado em: Qui 12 Jul 2018

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