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Maralah, o filho do corvo

Minha raça veio de longe. Muitas e muitas luas são contadas desde quando fizemos a longa travessia seguindo sempre as grandes montanhas brancas. Da travessia, só restaram velhas histórias envoltas em névoa e noites geladas; são como fantasmas assombrando nossas vidas. As pessoas mais antigas acreditam em todos esses fantasmas do passado, mas um deles está presente com maior intensidade nas rodas de conversa em volta da Grande Fogueira Sagrada.
     Antes de termos cavalos para a caçada dos búfalos e antes mesmo de qualquer olho índio avistar o primeiro branco, aconteceu o aparecimento do Corvo. Foi numa noite de ira do Grande Trovão.
     Mãe Velha conta que nessa noite de grande aborrecimento espiritual um corvo de tamanho gigantesco pousou sobre a aldeia dos pais de nossos pais, abriu suas asas enormes e abraçou todo o nosso povo formando um grande manto negro sobre a terra. Mãe Velha diz que o Grande Corvo assim permaneceu até que o Grande Trovão se acalmasse e a lua reaparecesse no céu. Então o corvo gigante se ergueu, olhou para a lua, depois para toda a aldeia e finalmente uma gota de sangue brotou de seus olhos, escorregou pelo bico e caiu sobre a terra de meus ancestrais. O Corvo se transformou numa fumaça negra que se dissipou no ar. Depois que a primeira estrela brilhou no céu novamente, o Grande Trovão já estava em profundo silêncio. A tempestade foi embora com os seus raios. Os antigos dizem que essa foi a noite onde o Grande Corvo chorou.
     No ano seguinte a isso veio Maralah...
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     Primeiro, Maralah foi um presente do Grande Espírito, depois guerreiro e grande líder. Também quis o destino que fosse curandeiro e conhecedor de magias de proteção para nossos índios, depois ele foi outra coisa. Viveu há muito tempo, mas a sua morte ninguém sabe quando.
     Sua mãe, Pé Cinzento, era uma índia de idade já avançada quando ficou viúva e o carregou no ventre. Tal índia posuía uma invulgar inteligência, grande bondade e disposição para o trabalho. Mas contam que durante essa tardia gravidez tudo mudou. Outrora compenetrada, ficou inquieta e passou todos os dias e noites da gestação a vagar solitária pelos campos e matas próximos à aldeia. Às vezes era vista entrando em sua tenda, vindo do meio das trevas da madrugada com jeito de caça que procura fugir do caçador. Uma ou duas horas depois disso ela saia de novo sem motivo aparente, embrenhava-se em algum esconderijo na mata e não havia quem a encontrasse. Raras vezes era vista conversando com alguém ou envolvida em alguma tarefa coletiva. Diziam que com a barriga viera a loucura e que o fato de ter emprenhado pela primeira vez já velha, ajudado pelo trauma da morte do marido, teria tirado dela a sanidade.
     Num amanhecer de vento forte todos acordaram com um suave, mas perceptível, tremor de terra. Curandeiros e feiticeiros entoaram preces e fizeram vênias à Mãe Terra para acalmar a sua ira. Ela estava furiosa e pedia aos seus filhos retratação por algum erro cometido. Cantaram. Deitaram seus corpos sobre Mãe Terra. Desculparam-se. Mãe Terra se acalmou. Maralah apareceu nesse dia...
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     Pé cinzento estava sumida há dois sonos. Um índio velho e decrépito, que pescava no lago do cervo, ouviu berros estridentes de recém-nascido.  O chefe Urso-que-Esmaga-Antes, quando avisado sobre o choro forte pelo índio velho, liderou a expedição que encontrou Pé Cinzento. Foi também ele quem primeiro avistou a índia e o filho. Eles estavam numa espécie de toca onde mal poderia caber uma loba e sua cria. O local ficava muito afastado da aldeia, no meio da floresta das grandes árvores. A toca ficava na encosta de um monte, o qual se estendia por cerca de dez metros até findar numa trilha pedregosa e sinuosa que levava a uma cachoeira cercada de pedras lisas como sabão.
     Uma árvore camuflava o abrigo, porém ela não se sobressaía das demais pela altura ou largura do seu tronco, mas sim pelo estranho desenho entalhado em sua casca, representando – nitidamente –  dois homens altos, magros e com cabeças muito grandes, desproporcionais aos corpos, vestidos com mantas que caíam até o chão. No desenho se portavam feito sentinelas, de maneira a proteger uma sombra de olhos vermelhos, a espreita para atacar. Não eram índios, com certeza. Bem acima desses seres sinistros com aparência de homens pairava um tipo de disco (tendendo ao esférico) do qual saíam raios de luzes a banhá-los; os braços de ambos estavam esticados para cima, apontando na direção de uma águia de asas abertas com treze estrelas brilhando sobre a sua cabeça. A ave ficava numa escala de altura equivalente a do disco, porém em sentido oposto. Intrigava sobretudo a precisão e riqueza de detalhes do entalhe que, àquele tempo e por qualquer mão entre nossa gente, não era costume e tradição realizar. Os índios daquela etnia eram mais afeitos à arte da pictografia quando queriam eternizar um feito importante, um ato de grande bravura ou ainda mensagens espirituais. Faltavam, necessário revelar, ferramentas que pudessem produzir tamanha sutileza no acabamento.
     Era a Lua das Folhas Caídas, o outono dos brancos, a temperatura estava baixa demais durante esse período na mata das grandes árvores. Os índios só se aventuravam por lá durante os dias mais quentes, quando o sol forte banhava as florestas e abrasava as pradarias. Ninguém entendeu como Maralah sobreviveu sem qualquer pele de animal para esquentar o seu pequeno corpo. Pé Cinzento estava morta, não suportou o frio feroz, nem as privações daquele buraco, não suportou a vinda do filho à vida. Ela foi encontrada com um estranho sorriso no rosto pintado de amarelo, alguns disseram que era o sorriso do mal, mas foram logo calados. Quando foi encontrado, Maralah tentava, em vão, sugar o leite dos seios frios e murchos da mãe. Ele escorregava dos braços dela.
     A história do nascimento do índio Maralah foi repartida com toda a tribo e logo ganhou aura profética. Ele foi acolhido e aceito como um presente do Grande Espírito. Todas as mulheres que tinham filhos em idade de amamentar correram em socorro do indiozinho órfão,  o qual demonstrou grande fome e não recusou nenhuma ajuda para alimentá-lo. Sempre teve afeição de todos os seus pares e conforme crescia em tamanho e força, crescia também sua bondade e inteligência; não havia em toda a tribo, nessa época já bastante numerosa, criança mais altiva, alegre e com grande senso de solidariedade. Nunca se olhou ou sofreu como órfão, pois entendia que era filho da terra e da natureza, assim como os demais. Nunca alimentou ou mesmo se nutriu da ideia, que, aliás, recusou com veemência, de que era especial ou predestinado.
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     Muitos anos depois, em certa lua quente, naquela em que Caem os Chifres dos Gamos, agosto dos brancos, quando já haviam se encerrado os rituais sagrados em busca de visões aos pés das Montanhas Mágicas, Maralah, que já era chefe guerreiro, teve vontade de visitá-las com ardor. Naquele período do ano, a não ser que houvesse uma rara mudança no calendário espiritual, as Montanhas Mágicas ficavam sós e silenciosas. Salvos o vento que assobiava vindo do oeste, o coiote e a águia altaneira planando soberana sobre os Sagrados Picos, nada mais era visto naquela aridez.
      Maralah foi tomado por um transe tão profundo que ficou no mundo do sonho por três sonos sem que ninguém o tirasse de lá. Quando recobrou a consciência, contou que ficou o tempo todo sentado à beira de um pequeno lago, vendo através do espelho formado pelas suas águas o dia-a-dia de toda a tribo e ouvindo, atentamente, as instruções de uma grande cobra sobre como confeccionar e pintar uma roupa mágica para proteção especial na guerra (que logo viria, segundo profetizou a cobra) contra um histórico inimigo: a tribo dos vales gelados do Norte. Quando os outros índios contaram a Maralah que ele esteve em transe durante três sonos seguidos, ele, em contrapartida, explicou, aturdido, que – na realidade do sonho – esses três sonos lhe pareceram apenas poucas horas.
     Maralah não permitiu a nenhuma mulher, em acordo com a tradição, confeccionar a roupa mágica; ele próprio a confeccionou. Depois de pronta, ele a vestiu, então, depois disso, Maralah nunca mais foi o mesmo. Ele mudou... Mudou para sempre...
      Disseram que o espírito de Pé Cinzento se apossou dele. Os índios começaram a temê-lo, pois viram em seus olhos o ranço de um predador.
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     Como uma corrida de antílope, vieram as luas frias. Então sem mais nem menos, numa gelada e silenciosa manhã, cercada por uma grossa neblina que conferia à paisagem uma atmosfera sobrenatural, a tribo inimiga dos vales gelados do norte atacou ferozmente o nosso povo. Eram mais numerosos e nos pegaram desprevenidos; alguns de nossos melhores homens mal haviam acordado e muitos ainda dormiam. Os inimigos possuíam constituição física muito avantajada; ninguém se lembrava de serem tão grandes. Tinham força sobre-humana, muitas armas e disposição de feras. Não pouparam mulheres, velhos e nem crianças. Ao levantarem as machadinhas, os corpos caíam mortos; sangue e pedaços de cérebro se misturavam com o branco da neve, flechas atravessavam a neblina sem que fossem mostrados os atiradores fantasmas. De todos os lados saíam os demônios com suas caras pintadas de amarelo, enchendo a todos de horror. Mulheres e crianças fugiam desesperadas. Em vão tentavam sair do meio da carnificina. As pessoas que demonstravam maior bravura eram literalmente devoradas depois de mortas, como se fossem os assassinos feras famintas. Corpos jaziam sem braços, alguns sem pernas e outros, ainda, sem cabeças. Em poucos minutos não se podia ver mais o branco da neve no chão perto das tendas e o riacho raso que fronteirava a aldeia ficou espesso e viscoso misturado ao sangue dos índios que tomaram essa via como fuga. Algumas mulheres e crianças tentaram esconder-se sob a proteção das árvores da mata além do riacho, foram brutalmente estranguladas e em seguida estripadas.
     Depois de pouco menos de uma hora, todos os meus irmãos índios jaziam desmembrados ou estripados sobre o corpo da Mãe Terra. Aqui e ali espalhavam-se pedaços dos corpos.
     Quis o destino que eu, à época uma criança de oito anos, fosse o único sobrevivente do terrível massacre para assim contar às gerações futuras o que os meus olhos viram com tanto terror, para dizer que o mal é malicioso, o mal veio das estrelas e se instalou na alma de Maralah e de sua mãe, Pé Cinzento.
     Eu estava no chão gelado com o corpo do já velho Urso-que-Esmaga-Antes esguichando sangue sobre mim quando vi, assombrado, aquele no qual acreditamos ser uma pequena centelha do Grande Espírito: o chefe guerreiro Maralah vestido com sua roupa mágica de guerra, ordenando implacavelmente a destruição daqueles que um dia o resgataram do buraco frio onde ele nasceu. Maralah segurava numa das mãos um cajado com um disco tendendo ao esférico preso na extremidade superior. A uma simples batida da peça mágica no chão eu podia ver os inimigos do vale do norte sumindo e aparecendo na minha frente, materializados e desmaterializados em meio à densa fumaça negra que pairava sobre toda a aldeia e da qual ninguém havia se dado conta. Talvez ninguém a visse de fato, bem como talvez não vissem Maralah e a defunta índia Pé Cinzento, estática ao lado do filho, com o mesmo sorriso diabólico de quando a encontraram morta na toca. Talvez somente eu os tenha visto, talvez somente a mim tenha sido permitido enxergar o branco dos ossos à mostra onde não existia carne no rosto pintado de amarelo da índia que um dia tomaram pelo nome de Pé Cinzento.
     Talvez nem mesmo eu saiba de muita coisa e só esteja repetindo o que as velhas lendas indígenas revelam.
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     O ano que vivo com meus filhos e que me proponho a escrever é 2018 da era de Cristo; sim, é fundamental dizer “a era de Cristo”, pois o tempo, o senhor tempo é muito extenso.
     A narrativa acima não é lenda, não é ideia passageira, mas sim sempre existente em minha mente, misturada às minhas mais antigas lembranças da vida na qual estou agora. Na verdade se parece mais com um sonho que se repete, se repete e torna a se repetir até se confirmar real. Hoje, sei que já vivi esse “sonho”. O relatado, meu bom amigo leitor, acredite-me, não é ideia gerada por uma mente sagaz e preparada, resultado de todo tipo de literatura romanesca em companhia de outros conhecimentos forjados ao sabor do tempo e que somente a vasta poeira de pesados livros saberia e teria o divino direito do testemunho seguro. Não... esse não é o meu caso. Tenho pouca cultura e parcos estudos, as pequenas letras que me acompanham, servindo-me de cão fiel, são fruto de reduzido talento conservado de vida passada e que, através de algum plano de Deus, ficou-me, ainda que sutilmente, carimbado em meu arquivo mental. Talvez estas linhas, e somente talvez, encontrem uma boa razão para justificar esse fortuito parêntese lançado sobre o véu do esquecimento. Ainda que não justifique, mas ao menos tragam alguma emoção àqueles curiosos e aventureiros leitores dessas lembranças da época em que andei sob as luas duma terra bela e distante, sob o sol do infinito. Caso não existam aventureiros, ao menos fez bem ao meu espírito por no papel minha vida mais valiosa.
     Hoje, chamam-me de Jeremias, mas já tive muitos outros nomes, tantos que somente o senhor das eras é capaz de revelar, sem prejuízo para si próprio.
     O nome que mais gostei e com o qual mais aprendi vem de uma língua remota, não mais é a minha; apenas vagueia pelos labirintos do meu cérebro. Contudo, ainda hoje, quando um vento invernal mais audacioso sopra e acaricia minha face, lembro-me do ímpeto daqueles invernos distantes, do açoite daqueles ventos gelados que sopravam das grandes montanhas brancas ecoando nos vales e deitando o capim daquelas vastas planícies; locais onde homens rudes eram confrontados a todo o momento com os extremos do planeta, com a iminência da morte. Lembro-me dos olhos vermelhos e faiscantes de um lobo a espreitar na noite, esperando o menor descuido para fazer sua presa sangrar, para fazer a respiração da mesma abandonar a vida. Lembro-me dos olhos também vermelhos de Maralah quando o vi pela última vez e jamais me esquecerei do sorriso diabólico no rosto de Pé Cinzento.
     Foi um tempo de homens fortes e destemidos, tempo de homens guiados pela honra e pela paixão, pela guerra e pelo vento da liberdade...
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Atualizado em: Qua 6 Jun 2018

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