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Adílio

Matou a bola, que vinha enfurecida, no
peito. Amansou-a. E ela deslizou macia pelo ar se aquietando no chão, ao lado
do seu pé. Levantou a cabeça e viu o adversário chegando afoito, deu um leve
toque na pelota, fazendo-a trilhar um caminho por entre as pernas do apatetado
zagueiro. “Uh, uh, uh, receba!”. Gritos. Pegou-a do outro lado, acelerou com a “gorduchinha”
colada no pé de tal forma, que parecia até magia. Já estava na grande área.
Agora era só ele e a gigante muralha; o goleiro. Avançou com velocidade,
olhando com os olhos arregalados o “Golias” que defendia a meta. Estavam bem
próximos. Insinuou chutar no canto direito, o arqueiro acreditou e pulou com
todo seu corpanzil naquela direção, esticando os braços para abafar a bola.
Então, com muita classe, Adílio puxou a bola pro outro lado, por cima dela, com
a sola do seu pé. O goleirão passou batido. “Uh, tome!” mais gritos e risadas
foram emitidos pela acalorada platéia. Adílio deixou-o para trás e rumou em
direção às balizas desprotegidas e finalizou com um leve toque de chapa para o
fundo das inexistentes redes. “Golaço, que golaço!” Mais gritos eufóricos do
restante da molecada que estava de “linha fora”, a espera de poder jogar.
“Porra, Nunes, tu sempre cai nessa minha jogada” disse Adílio mangando do amigo
grandalhão que se levantava depois do humilhante drible.

Adílio era um moleque bom de bola, de
onze anos, branco, rechonchudo, baixinho e sorridente. Morava numa invasão no
bairro Santa Maria, mais conhecido como “Terra Dura”. Jogava bola todos os
períodos que tinha folga. Engraxava sapatos e lavava carros no centro da cidade,
as tardes, para ajudar a mãe. De manhã cursava a quinta série, sexto ano, num
colégio municipal no bairro Augusto Franco. Era bom aluno, aplicado e
inteligente. Tinha o sonho de ser doutor.  Não tinha pai, ou melhor, tinha, mas, nunca o
viu, a não ser por uma desgastada foto. As únicas coisas que sabia dele era o
seu nome, Arthur, e o fanatismo dele pelo Clube de Regatas do Flamengo. E era
por isso que seu nome era Adílio.

O campinho, de barro duro e desnivelado,
cheio de buracos, ficava em frente ao barraco que ele morava. Depois dos jogos,
Adílio ficava por ali mesmo, acompanhado dos amigos, se refestelando com os
frutos maduros das mangabeiras nativas que circundavam o lugar. “Isso sim é
coisa boa de comer” ele dizia sorrindo e mostrando os dentes sujos pela polpa
da fruta.

Um esganiçado grito estrondou no ar.
“Adílio, seu moleque safado! Já pra dentro, agora!”. Era a mãe dele o chamando.
Adílio levantou com cara envergonhada e falou para os amigos: “Peraí que vou
apanhar e volto já”.

Era sempre assim. Sua mãe, Dona Zica,
uma carcomida mulher de trinta e cinco anos, sempre descontava em seu filho suas
frustrações. No entanto, ele não a odiava por isso. Há muito tempo compreendia
as dores dela, e ele a amava com todas as forças, e também sentia pena. Além do
mais, as chineladas que ela dava já não doíam como antes, ela fazia aquilo mais
pelo hábito do que por maldade ou agressividade. Adílio estava acostumado.
Depois da sova, sua mãe sempre se arrependia e fazia alguma guloseima para ele
comer. Nestas horas ela acariciava o rosto dele e chorava pedindo perdão. Eles
se conheciam bem, compartilhavam a dureza e a angustia daquela sofrida vida, de
muitos dissabores e quase nenhum contentamento. Completavam-se de uma forma
inusitada. Adílio trazia com ele a juventude e a alegria e dona Zica carregava
a precoce velhice e a amargura. Dona Zica só não imaginava que Adílio tinha um
grande desejo de conhecer o pai, a quem ela só se referia como “aquele
cachorro”.

Astuto como ele só, Adílio descobriu o
endereço onde seu pai estava morando. Fazendo uma pergunta aqui outra ali,
sempre de forma informal, como quem não quer nada, para vizinhos, moradores
mais antigos do bairro e alguns parentes por parte de sua mãe que moravam pelas
redondezas.  Através dessa investigação acabou
sabendo que seu pai residia em Riachuelo, cidade situada a trinta quilômetros de
Aracaju.

Ele tinha arquitetado um plano que
consistia em ir até a cidade num fim de semana e fingir ser um estudante
fazendo uma pesquisa com os moradores da cidade para um trabalho escolar.
Elaborou um questionário com quinze perguntas. O que ele faria depois não
conseguia imaginar, embora tenha idealizado mil e uma cenas de abraços
apertados e sorrisos de felicidades.

 O
plano seria colocado em prática no próximo domingo.

No dia tão esperado ele acordou cedo e
saiu antes da mãe se levantar. Chegou à rodoviária nova faltando vinte minutos
para as sete.

As sete e quinze o ônibus de uma
cooperativa de transporte estacionou, ele mostrou o bilhete ao cobrador e
entrou. Escolheu um lugar na janela, na penúltima fileira do lado direito do
ônibus.  Meia-hora depois chegava ao seu
destino.

Desceu numa praça e se dirigiu a uma
padaria, pediu café com leite e pão com manteiga. Aproveitou a ocasião e
perguntou para um dos funcionários da panificação onde ficava o endereço que
ele veio procurar: “O senhor sabe onde fica este endereço?”. O rapaz pegou o
papel, leu e informou: “É logo ali, no fim da praça”.

Adílio terminou o café e caminhou
calmamente até seu destino. A casa era boa, muito melhor que o barraco que ele
vivia. A frente da casa era toda gradeada e tinha um carro popular seminovo
guardado na garagem. As paredes eram pintadas de vermelho.

A cada passo que ele dava se aproximando
da residência, mais forte seu coração batia e o frio na sua barriga crescia,
deixando-o nauseado. Esticou o trêmulo dedo indicador da sua mão direita para
tocar a campainha e; desistiu. Perdeu toda a coragem que o levou ali. Não
conseguiria fazer. Voltou e sentou num banco da praça, embaixo de um pé de
figo, e ficou lá contemplando uma velha foto do desconhecido que era seu pai. Ficou
assim por várias horas.

Lá pelas tantas, com o sol a pino, e a
sombra da árvore não amenizando o calor, resolveu ir embora. Quando partia, viu
o portão da casa abrir e duas meninas, que pareciam ter seis e três anos,
saindo lá de dentro. A mais velha segurava firmemente a mão da pequenina.  Adílio foi atrás delas, sem que elas
percebessem. Elas foram até um mercadinho da esquina, compraram um refrigerante
e voltaram para casa. Adílio se entusiasmou, a possibilidade dele ter duas
irmãs o deixou muito empolgado e com a coragem renovada.

Esperou alguns minutos, respirou fundo,
e tocou a campainha da casa. Uma menina, a mais velha, abriu a porta da casa e
ficou em pé ao lado da porta entreaberta. Adílio perguntou do lado de fora:
“Seu pai está aí?”. “Está sim” disse a menina. “Pode chamar ele pra mim?”.
“Pai” Gritou a menina sem se virar pra trás, olhando curiosa para Adílio. Com a
demora a menina gritou de novo, dessa vez o berro saiu mais alto, ainda assim,
não tirou os olhos do menino. Adílio pediu que ela fosse lá dentro chama-lo.
Ela entrou fechando a porta. Pouco depois um homem apareceu. “O que você quer
menino?”. Adílio ficou petrificado olhando para o rosto do homem. Era ele, não
tinha dúvidas. Estava mais envelhecido e robusto, mas, era o mesmo homem da
foto. “Meu pai!” pensou. “Tà se sentindo bem, menino? Você ficou amarelo de uma
hora pra outra.”. “Tá tudo bem sim” respondeu Adílio com voz hesitante. “Então
o que você quer?”. “É..., é que...” gaguejou nervoso. “Desembucha guri, que eu
quero almoçar” “É que estou fazendo uma pesquisa social com os moradores de
Riachuelo para um trabalho escolar. É bem rápido, não levará nem dez minutos.
Tudo Bem?”. “Tudo bem, se não for demorar e se eu não tiver que colaborar com
algum dinheiro no fim da entrevista, eu aceito” “Não vai demorar nada e o
senhor não precisa pagar nada” disse Adílio. Então vou começar as perguntas:
“Qual o seu nome?”, “Arthur Bispo Rosário”. “Qual a sua Idade?” “Quarenta e
quatro”. “Qual a sua Profissão?”, “Motorista da Prefeitura e faço bicos de
mestre de obras”. “Estado Civil?”, “Casado”. “Tem filhos?”, “Sim”. “Quantos?”,
nesta hora Adílio levantou os olhos, que antes olhavam apenas para a prancheta
com as perguntas, e fitou os olhos do homem. “Dois” respondeu. “Quantos?”
perguntou Adílio. “Dois. Duas meninas”, “Tem certeza?” insistiu Adílio. O homem
olhou pra ele com cara de poucos amigos e falou irritado. “Que isso moleque, tá
surdo, eu já disse que só tenho duas meninas. Tá querendo brincar comigo é, seu
‘cabrunquento da peste’”. “Não, não quero brincar não, me perdoe” se desculpou
Adílio com visível constrangimento. “Já acabou?” “Sim, já acabou” respondeu
Adílio encabulado, numa voz fraca, quase inaudível. “Então, passe bem” e a
porta foi fechada com violência na cara do menino. Adílio ainda ficou lá uns
instantes, não sabia o que fazer e como reagir àquela inesperada situação. Não
esperava aquilo, não esperava mesmo. Sempre achou que ele teria dito que tinha
outro filho e que não o via há muito tempo por causa das dificuldades da vida e
cosias e tais, e bebebê e bababá... Ele sempre teve esperança. Mas, agora ela
se dissipou por completo. Ele era sim o seu pai. Era o mesmo homem da foto e
sua mãe não era nenhuma vagabunda para não saber quem era o pai de seu filho.
Disso ele tinha certeza. Seu registro tem só o nome da mãe e pai desconhecido,
mas foi ele quem colocou o nome de Adílio no menino, só não o registrou depois,
“aquele cachorro!”.

 Adílio demorou a voltar pra casa naquele dia.
Desceu no terminal da rodoviária velha, no centro da cidade, e perambulou por
lá pelo resto do dia. Pensando na vida, no baque que sofreu, no tanto que
aquilo o amadureceria. Também refletiu seriamente sobre entrar na justiça com
um pedido de exame de paternidade para que ele pudesse receber o que era de
direito. Sim, ele faria isso, decidiu. Igualmente decidiu que por enquanto, sua
mãe não saberia de nada.  

Na “Terra Dura” Dona Zica já não sabia
mais por onde procurar e a quem interrogar se tinham visto o seu filho. Ele não
estava em lugar algum e nenhum amigo sabia dizer onde ele pudesse estar. Ela se
encontrava na porta do barraco, desesperada, pensando no pior, quando Adílio
chegou.  “Meu filho, meu filhinho, onde
você se meteu?” falou ela chorosa e correu para abraçá-lo. “Desculpe mãe, eu
perdi o horário, fui fazer um trabalho do colégio no centro da cidade e depois
fiquei por lá com meus amigos.”, “Por que não me avisou que ia sair menino?
você me deixou nervosa, nunca senti tanto medo em minha vida. Adílio, não faça
mais isso, está me ouvindo?”, “Tudo bem mãe, não farei nunca mais, eu prometo”.
“Agora entra logo em casa seu moleque safado.” ela falou com aspereza. Adílio
sorriu e entrou, já esperando pelas justas bordoadas que receberia, contudo,
não apanhou. Quando entraram em casa, sua mãe foi arrumar a mesa para o jantar,
e não pegar a sandália para bater nele. Ele olhou estranho pra ela, chegou
perto e perguntou: “hei mãe, não vai me bater?”, “Não meu filho, nunca mais vou
te bater, também é uma promessa que eu te faço” falou isso e deu outro forte
abraço no menino. “Agora senta aqui e vamos jantar.” Disse dona Zica. Adílio se
sentou. Dona Zica serviu seu filho, enchendo um prato fundo, com duas conchas
cheias de sopa de legumes. Fez o mesmo em seu prato. “Tá gostosa a sopa, meu
filho?” Dona Zica perguntou, “Uma delícia mãe, e tem até carne.” respondeu
Adílio com um grande sorriso nos lábios.  

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Atualizado em: Ter 19 Fev 2013

Comentários  

#2 EXTREMOFILO 28-02-2013 11:59
Lindo conto camarada, sem os tenebrosos finais. Parabéns!
#1 Arnoldo 26-02-2013 15:57
Um conto emocionante , parabéns. Entre meus favoritos.

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