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CUNHAPORA
- Vai ser muito bom, cara !, disse Eduardo, o Kadu, enquanto escolhia os trajes femininos, peruca e maquilagem entre risos e algazarra.Era a primeira vez que participaria do carnaval naquela cidade, incrustada no sertão, pequena e bucólica, com grandes praças e muita gente velha conhecida papeando animadas acompanhadas por um cãozinho e pouco trânsito de veículos. Ali o carnaval era comemorado de maneira muito particular, as pessoas "trocavam de sexo". Os homens travestiam-se de mulheres e as mulheres, de homens. Com esses trajes invadiam bares, restaurantes e ocupavam as ruas em grande folia. Era uma incrível catarse. Cada um procurava expor de maneira mais clara possível seu outro lado. Kadu estava na cidade em visita ao amigo de faculdade, João, que divulgava com grande eficiência o evento.
João já havia separado seu bustiê, uma minissaia, uma peruca de cabelos exageradamente encaracolados, uma sandália plataforma cor de palha. Fariam parte do grupo também outros amigos. A festa começaria na sexta-feira com churrasco e muita cerveja, onde também iria ocorrer a escolha da Lady do grupo.
Uma chuva fina parecia não colaborar para a plenitude das brincadeiras, embora ela não fosse impedimento. A cidade ia para as ruas de uma maneira ou de outra e para isso não havia idade, crianças e idosos contracenavam nas poucas ruas e se concentravam à beira do lago, onde quiosques e música os aguardavam.
Kadu produziu-se atentando-se a cada detalhe com a ajuda de Paula, irmã de João. Caprichou nas unhas, cílios postiços e preferiu colocar meia calça, já que tradicionalmente os homens nada colocavam por debaixo das saias, nem shorts, nem cueca...o objetivo era a provocação e a liberdade. Isso porém, sem conotação sexual, a diversão imperava, na mais pura zueira.
A cerveja começou a circular no grupo de amigos logo cedo, já devidamente trajados. João simulava trejeitos de madame em sua plataforma, rebolando e levando tapas na bunda enquanto passava. Aos poucos chegaram Thiago com um vestido de malha branca e flores azuis muito justo no corpo evidenciando todos os contornos possíveis, chinelos, peruca loura com uma flor de plástico velha e desgastada, como que arrancada de uma sepultura abandonada. Lauro apareceu trajando um "tomara que caia", em que todos rezavam para que não caísse e uma saída de banho, sandálias, peruca curta preta e maçãs do rosto extraordinariamente vermelhas. Adriano chegou com uma peruca Marilyn Monroe, vestido de decote e botinas.
Aos poucos outros foram chegando, surpreendendo com sua imaginação e deboche.
Em outra casa um grupo de garotas também se especializava no trato masculino. Porém, esse encontro somente aconteceria bem à noite, junto ao lago, onde todos iriam se reunir.
Entre palhaçadas e cerveja chegou o horário previsto para invadirem as ruas nas tradicionais celebrações de Momo. A alegria era contagiante, com muitas risadas e surpresas ao se depararem com os trajes dos colegas, engraçados e promovendo situações divertidas como beijar a namorada que possui farto bigode.
A chuva muito fina dava um aspecto de neblina, gradualmente ensopando a todos os participantes dessa farra. Kadu estava extasiado, muito bêbado, cantando e dançando, irreverente e despachado. Logo foi parar em cima do caminhão onde iria ocorrer a disputa da Lady. Foram doze candidatos, um mais escandaloso que outro exibindo seus dotes e "feminilidade", levando o público ao delírio. O corpo de jurados era formado por cinco mulheres de diferentes idades e "puramente" masculinas.
Após exibições e gargalhadas, o vencedor foi Kadu, como não poderia deixar de ser. Saiu carregado pela multidão, sendo lançado ao ar e regado com muito mais cerveja.
Entusiasmado lançou-se no lago e nadou até uma escultura feminina que emergia das águas, no centro do lago.
A festa prosseguia. Com o avançar das horas era comum as pessoas se atirarem no lago, incluindo alguns exageros que faziam com que algum corpo fosse encontrado no dia seguinte boiando nas águas. Também casais podiam ser surpreendidos na penumbra, entre árvores, movidos pelo desejo e efeitos do álcool.
Adriano, desde o churrasco, seguia Kadu com os olhos, estudando seu corpo, gestos e beleza. Aproveitou-se quando Kadu sentou-se na sarjeta para se aproximar. Embora surpreso com a investida do amigo não se recusou a desfrutar aqueles momentos. A noite os encobriria, ninguém ficaria sabendo. Dirigiram-se ao prédio da antiga Estação Ferroviária, agora abandonada.
A Estação ficava próximo à nascente que dava origem ao lago. Um lugar repleto de antigas estórias e lendas, inclusive a que deu origem a festa.
Antigamente a cidade era habitada por indígenas e o lago era considerado a morada de uma velha deusa chamada Cunhapora. Contavam que Cunhapora era de extraordinária beleza, nas noites de lua cheia caminhava às margens da lagoa e encantava os rapazes levando-os para um festim sexual no fundo das águas, de onde nunca mais retornavam. Todos os anos os aldeões ofereciam-lhe homenagens com flores, danças e um rapaz era escolhido e lançado às águas. Acreditavam que tal providência evitava que a deusa caminhasse pela aldeia e levasse consigo outras pessoas. Também evitava-se a propagação de doenças que a deusa lançava quando contrariada.
Aos poucos a lenda se metamorfoseou no Carnaval, pela coincidência de datas, persistindo a escolha do rapaz, que no início vestia-se com os trajes de Cunhapora. A deusa coberta de lodo e flores aquáticas deixava revelar seu colo, objeto de atração e desejo dos mancebos locais.
Entregue aos prazeres, os rapazes não viram que uma moça se aproximava. Kadu estremeceu ao avistá-la na penumbra, não pelo susto, mas por ter sido flagrado e sua reputação masculina abalada. Adriano fitou-a, tentando identificar afinal conhecia todas as pessoas da cidade. Seu olhar vítreo e hipnótico atraiu Kadu para si com uma profunda auto-confiança. O rapaz não vacilou aproximando-se a passos lentos da misteriosa mulher.
Adriano irritou-se e num misto de indignação e ciúmes abandonou a Estação para que os dois pudessem curtir o momento a sós. Atravessou as ruas escuras com lágrimas nos olhos, decepcionado e triste, rumo a sua casa.
Algumas poucas pessoas permaneciam no ritmo carnavalesco, muitos estavam estirados no chão esgotados. A chuva havia cedido espaço a uma noite calma. Não demoraria para o sol reaparecer.
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A tarde já avançava e muitas pessoas procuravam Kadu. Temiam que tivesse se afogado ou estaria em coma alcoólico em algum lugar. A pequena cidade movimentou-se na busca que todos sabiam infrutífera.
Mais um carnaval em que a Lady desaparecia e, certamente, celebrava no fundo do lago com alegria e prazer nos braços de Cunhapora. Caberia a João selecionar mais um belo rapaz para o próximo carnaval.
A tradição se mantinha e Cunhapora estava satisfeita, graças à Irmandade Abayomi, um grupo secreto que velava pelas antigas tradições e promovia o "alegre encontro" com a deusa.
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