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Aplausos Esquecidos no Tempo (parceria com Alex Lacoy)

Cinco, seis, sete, oito e parou de vagar pela casa.

Fechou a janela com a mão esquerda, apagou a luz com a direita. Andou cinco passos e já estava no banheiro. Inclinou-se ligeiramente para frente para apertar a descarga, o vaso empesteado de guimba de cigarro fazia feder ainda mais o ambiente. Andou até a cozinha, abaixou-se para conferir se não havia nenhum objeto minúsculo pelo chão. Após três horas, o apartamento estava completamente vazio, retomara sua condição de cubículo, com a remoção dos excessivos apetrechos com que Marguerite se valia para atribuir um toque de glamour àquela típica moradia do subúrbio francês.

Vazio.

Desta vez Marguerite usara de coerência e resolvera obedecer à ordem de despejo antes que a justiça interviesse com um mandato e a colocasse na sarjeta. Com os móveis amontoados na calçada, ela resolvera deixá-los ali mesmo, à deriva, que esperassem serem resgatados por algum desafortunado. Ela estava disposta a começar uma vida nova sem apegos, o que não seria um feito difícil de tolerar, pois vazios sempre pontuaram os grandes eventos de sua vida. Filha de missionários, nasceu nas terras desérticas de Kalahari. Ainda na juventude, uma grande epidemia dizimou sua família e, ao retornar para a França, não conseguiu se ajustar aos costumes europeus, o que contribuiu para que não fizesse muitos amigos. Em sua experiência com os vazios, somam-se quatro projetos de casamentos frustrados, as operações de vesícula e apêndice e os palcos que precisou abandonar após o acidente que comprometeu a firmeza nas pernas e que lhe valeu um ano entrevada na cama. Por motivos óbvios, este último parecia ser seu vazio menos aceitável, por ter ficado inválida, precisou sair da companhia de dança a qual pertencia, e com a saída, sonhos e sustento foram arrancados brutalmente de sua vida. Impossibilitada de trabalhar, abandonar os palcos foi muito mais do que uma interrupção em seus planos e logo o dinheiro acabou, se mantinha com a módica ajuda financeira do Governo e com os préstimos de uma vizinha anciã, que desaparecera sem notícias à cerca de um mês. Marguerite desconfiava que a mulher morrera ou se enfadara da caridade.

Um, dois, três, quatro e Marguerite encontra-se restabelecida de saúde o bastante para desocupar sozinha o apartamento. Podia sem ajuda sair de cabeça erguida diante da vergonha da desocupação involuntária do imóvel. Era hora de ir embora, para onde ainda não sabia. Três passos para o lado e baixou o cortinado, único objeto que ainda identificava a antiga decoração na saleta sombria. Rodopiava a mão para ouvir pela última vez o barulho das chaves, jogava o cabelo para frente, na tentativa de arrumá-lo e descer os andares com alguma dignidade. Em todos aqueles movimentos leves, podia-se ver a tensão da dor da perda. Com seu destino ameaçado, julgava inútil todo o resto. Fez questão de pisar cada degrau disfarçando a fraqueza da última derrota. Pelo corrimão, a mão deslizava ao mesmo tempo em que sustentava o equilíbrio. Como que descesse ao porão empoeirado de suas fantasias, Marguerite constatava que sua vida corria sério risco de extinção. Ainda sem destino e um próximo teto para se proteger da noite nevada, seu frágil corpo se desmanchava pouco a pouco nas ilusões, como uma nuvenzinha branca que se dissipa no chapadão de céu negro. E ao atravessar o saguão e passar pela porta de entrada, ameaçou alguns passos em direção à rua e não atreveu mais nenhuma ação.

A grande frustração estava ante ela. Há cerca de dois anos resolvera alugar um apartamento em frente ao teatro onde ensaiava com sua companhia de dança. Morando tão perto do trabalho, teria maior tempo para se dedicar à sua arte. Durante o período de reclusão, Marguerite esquecera completamente que ele continuava ali, imponente e ameaçador, inacessível para perdedores. Mesmo intimidada, percebeu que o lugar não mudara muito desde sua última apresentação. Pensou em atravessar a rua, no entanto logo desistiu, o teatro agora se tornara inimigo incondicional; como idolatrar um santo que nega milagres?

De repente, uma porta se abriu e a luz invadiu todo o foyer obscurecido. Eram os bailarinos saindo do ensaio da tarde. Entre eles, nenhum rosto familiar, nada lembrava o único passado seu que valia a pena. Essa ausência de raízes, de referências, foi como uma traição do tempo. Parecia estar confinada há décadas, onde só o corpo não obedeceu ao desgaste dos anos. Ao menos as recordações eram suficientes para revigorá-la em prosseguir algum rumo.

E no auge da sua incapacidade para lidar com os sentimentos em desalinho, desmaiou...

Um dos bailarinos ao vê-la caída, atravessou a avenida e a segurou em seus braços, precedendo algum socorro eficaz. Sentindo que ele a carregava no colo, Marguerite empenhou-se em buscar resquícios de consciência em seu estado de inconsciente, e lançou a imaginação longe, vendo-se aos rodopios em cena aberta, realizando um engenhoso duo com aquele que ao menos sabia se dançava bem.

Um foco de luz iluminava seus passos e a platéia aplaudia de pé aquele espetáculo. Ela com seu vestido branco parecia tão angelical e bailava levemente em harmonia com aquele jovem que a conduzia magistralmente naquele palco. Sentia-se tão livre e aproveitava cada gesto para expressar seus sentimentos. Por muito tempo esperou aquele momento e tudo saiu conforme sempre sonhou. Um bailarino que lia suas emoções ao tocar suas mãos e a fazia flutuar como se estivessem levitando. Nada mais importava, eram só os dois e a platéia vislumbrada com o desempenho deles.

Quase no final da dança ele a soltou e saiu nas pontas dos pés percorrendo todo o palco enquanto ela girava ao centro acompanhando-o com o olhar, ansiosa pelo reencontro. Ele a tomou pela cintura e inclinou seu rosto até ao dela, virando-se em seguida para trás e depois de joelho caiu a seus pés tomando suas mãos e mirando seus olhos, enquanto os aplausos ecoavam naquele grande teatro.

Agradeceram e saíram de cena. No camarim ele a tomou nos braços e a beijou deliciosamente. Marguerite ficou estupefata, mas cedeu seus lábios e os dois corpos se uniram. Ofegantes trocaram olhares confusos. “Você foi maravilhosa”. Ela agradeceu ao elogio e sorriu.

De repente Marguerite sentiu que seus pés não tocavam o chão, seu corpo parecia tremular ao vento, algumas pessoas vestidas de branco aproximaram-se dela. A realidade voltava aos seus sentidos e uma lágrima despontou apressada de seus olhos. “Quem é você?” Indagou ao homem que a socorrera no momento do desmaio.

- Meu nome é Rodolfo. Sou bailarino da Companhia de Dança Movimento. Ao sair do teatro vi você ao chão e te trouxe até o pronto socorro.

Tiraram-na da maca e a colocaram num leito. Sentiu aquele cheiro hospitalar invadir suas narinas, olhou a paredes claras a lhe aprisionar, a dura realidade lhe assombrava. Quis se levantar, mas lembrou-se que não tinha pra onde ir e nem forças para continuar sua jornada, curvou-se então diante da dor, reverenciou os devaneios que lhe trouxeram momentos de alegria e antes que o médico viesse examiná-la desfaleceu reiniciando uma viagem ao seu submerso inconsciente.

O chofer abriu a porta da limusine e Marguerite surgiu com um vestido branco esvoaçante e pisou sobre o tapete vermelho estendido e seguiu ao encontro de Rodolfo que lhe esperava para mais uma apresentação. Ao olhar para os lados percebeu que estava entrando numa igreja. Os convidados viraram para trás e contemplaram seu belíssimo vestido de noiva. Uma daminha lhe entregou o buquê de rosas vermelhas contrastando com toda ornamentação que era verde com branco. Sentiu um calafrio. Parou. Lembrou-se dos outros casamentos desfeitos. Rodolfo sorria à sua espera. Ela olhou os convidados e foi se afastando lentamente com os olhos rasos d’água. Tirou os sapatos e saiu correndo de volta para a limusine. Abriu a porta e percebeu que entrara num velho fusca vermelho e quem estava no volante era seu primeiro marido. Desesperada saiu pela rua e um guarda de trânsito segurou seu braço quando ia entrar na frente de um ônibus. Agradeceu e ficou assustada ao perceber que era seu segundo marido. E nesse frenesi deparou-se com o terceiro marido lhe pedindo esmolas e o quarto lhe queria assaltar. Aturdida ela retornou à igreja, mas o noivo já havia ido embora. Tomou um táxi e foi até o teatro. Estava escuro. O Segurança lhe deixou passar. Rodolfo estava sentado com a cabeça entre as pernas no centro do palco. Ao vê-la levantou-se, abriu os braços e a chamou para junto dele.

Marguerite pulou em sua cintura e o beijou suavemente. Pediu desculpas e disse que ali é que se encontrava. A arte estava em seu sangue, a dança era sua vida, sua força, seu tudo... Ali ela se sentia completa. E juntos dançaram a noite inteira...

Quando acordou Rodolfo segurava firme sua mão.

- Você está desidratada. Vai ficar boa.

Ele se levantou e ainda olhando seus olhos continuou:

- Amanhã preciso acordar cedo para mais um ensaio. (Caminhando em direção à porta de saída virou-se novamente para ela) Quer que eu avise alguém que você está aqui?

- Sim. A mim mesma, pois é tudo que tenho.

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Atualizado em: Sáb 8 Maio 2010

Comentários  

#22 Juarez_do_Brasil 27-05-2010 07:23
Obrigado Pamaro. Seu apoio é muito importante. Um abraço.
#21 Pamaro 26-05-2010 15:26
Já tinha lido o conto na página do Alex Lacoy. Gostei da história, muito bem escrita, narrando o drama de uma artista, comum de acontecer na vida real. Parabéns aos autores!
#20 Juarez_do_Brasil 24-05-2010 08:06
Obrigado Giba. Foi uma grande honra fazer esta parceria com o Alex.
#19 Giba 22-05-2010 20:56
Juarez, se esse foi o aperitivo fico imaginando como será o prato principal.Nós leitores
estamos esperando por sua obra, vá em frente.
#18 Juarez_do_Brasil 21-05-2010 07:42
Valeu Paola. Agradeço a visita.
#17 PaolaRhoden 21-05-2010 00:02
Conto emocionante e lindo. Estrelado.
#16 Juarez_do_Brasil 20-05-2010 07:29
Obrigado Cerson. Marguerite também me encantou com seu bailado e a parceria com Alex me fez bailar nas letras. rsrs
#15 Cerson 19-05-2010 20:51
Parabéns aos colegas por tão iluminadas inspirações. Texto detalhista, leitura apreciável - senti Marguerite rodopiar à minha frente; vislumbrei sua aparência: linda. Abraços.
#14 Juarez_do_Brasil 17-05-2010 15:21
Estava com saudade de suas visitas meu caro. Obrigado por nos prestigiar neste conto. Valeu.
#13 Juarez_do_Brasil 17-05-2010 15:17
Fiquei muito contente com seu comentário, lisonjeado pra dizer a verdade. Valeu.

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