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Um Tempo Superficial

Para Luciano, foi mais uma noite difícil...

Estava dentro de um sonho recorrente, quando se deparou com a sensação de que faltava pouco para ter as imagens diluídas... Sabia que estava prestes a acordar, e sabia disso porque era tudo exatamente igual, sempre.

Como ultimas imagens do sonho, uma familiar pista de corrida, onde um cronômetro disparava, e, onde ele, feito louco, saia em disparada, parecendo um atleta testando seus limites.

Antes de ultrapassar a linha de chegada, olhava para um lado, para outro, e depois para trás, mas não via ninguém. Não havia qualquer pessoa competindo com ele, e era aí que se dava conta de que seu único adversário era o irritante e agressivo tic-tac de um cronômetro que insistia em tocar cada vez mais alto...

Ficava confuso. Não entendia o porquê de tanta pressa. Sentia nas pernas um grande peso, o que ia lhe obrigando a desacelerar, ao passo que o tic-tac do cronometro ia acelerando cada vez mais, de forma alucinada, o que lhe obrigava a tapar os ouvidos com as mãos, e os pressionar com força, tentando impedir aquele barulho ensurdecedor e insuportável.

E então vinha o grande susto:

TRINNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNN... disparava o despertador.

Luciano saltava na cama, e seu corpo se debatia, sacudia de um lado para outro, procurando a tecla que faria parar o alarme implacável do relógio, enquanto sua alma, ainda desorientada, levava alguns segundos para reconhecer o próprio quarto.

Na sequência outros alarmes soavam, e Luciano ia desarmando todos os relógios que programou na noite anterior, um monte deles... não queria perder a hora.

Esse é Luciano. Um homem com mania de relógios. Tem relógios de corda, de bolso, de parede, de pulso, a prova d água, de todos os modelos e estilos diferentes, do esporte ao social, todos de alta precisão, ideais para alguém como ele, que não pode perder tempo. Ele sofre da síndrome da urgência.

Quando acorda, sua rotina é a mesma. Levanta-se, faz uma rápida higiene matinal, se veste elegantemente, e se despede da esposa e da filha “jogando” na direção delas um beijo silencioso... E em seguida deixa o lar. Passa pela sala de jantar com pressa, vê a mesa posta, mas não há tempo para o café.

A pressa sempre foi a inimiga da perfeição, já diziam os antigos, e Luciano até que já ouvira essa frase por algumas vezes, mas nunca teve tempo de refletir sobre ela... Tudo que faz ou sente tem sempre uma urgência em demasia, e por esse motivo não pode se envolver ou aprofundar-se em nada. Sua meta é sempre obter resultados rápidos, e por esse motivo os colegas já o apelidaram de “o homem superficial”, mas ele não sabe disso.

Quando é questionado, justifica sua pressa alegando um bom motivo: quer ter uma fração de tempo economizado para interagir com a família e a natureza. Mas a verdade é que, nas poucas vezes que conseguiu um tempo extra, acabou desperdiçando-o por não saber exatamente o que fazer com ele.

Também não tem tempo para se dedicar as amizades, e, se acontece em algum minuto do seu dia lembrar-se das pessoas que lhe eram próximas, logo chega a conclusão que eles é que são os ausentes e ingratos, pois jamais se preocuparam com ele de verdade. Mas não sente raiva, isso não. Não tem tempo para perder com uma bobagem dessas...

E assim Luciano passa seus dias, pressionado por compromissos e horários, numa frenética rotina profissional. Corre atrás de um futuro que não chega nunca, e sequer sabe o que deseja encontrar nele.

Depois de um dia cheio ele volta para casa. Lá encontra a esposa, mas lhe falta o animo para abraçá-la. Apenas beija-lhe a testa, se queixa do quanto trabalhou e se sente exausto, e comenta sobre um vazio no peito, que ainda sente, mas que não sabe explicar o porquê.

Para quem tem um dia cheio assim, o vazio não deveria existir - pensa a esposa. Mas ela sente muita pena do marido, e por isso fica vulnerável... pois quem tem pena é assim, facilmente manipulada. E por isso ela cuida então do marido, do jeito que ele pede. Faz-lhe a massagem que mais gosta, e ouve dele todas as queixas. Em algum momento até se distrai. Chega a pensar em ter com ele uma noite de amor, pois eles não tem um momento de intimidade completa há muito tempo... Mas que nada. Luciano anda muito cansado para perder tempo com o amor. E lembra-se que das outras vezes tudo foi muito rápido e superficial, pois ele tem sempre um compromisso importante no dia seguinte e precisa dormir cedo.

- Desculpe amor, mas estou cansado e tenho um compromisso logo pela manhã – dizia ele para a esposa, como se pudesse ouvir os pensamentos dela.

Decepcionada, mas compreensiva, ela sorri. Beija-lhe a boca suavemente e manda que relaxe e durma, enquanto continua lhe fazendo carinhos suaves, esperando que ele adormeça. Ela sabe esperar, é paciente. Trabalha fora e tem jornada dupla, mas encontrar tempo para fazer um carinho no marido nunca foi um problema para ela.

E assim mais um dia termina...

A esposa percebe que também tem uma rotina a seguir...

E depois de velar o sono do marido, se rende ao próprio cansaço. Deita-se ao lado de Luciano, acomoda a cabeça sobre o coração dele, e, sem se dar conta do perigo, adormece ouvindo o tic-tac daquela bomba relógio.

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Atualizado em: Dom 29 Nov 2009

Comentários  

#4 Laurindo 13-02-2010 21:18
Adorei. Muito bem escrito. Simplesmente surpreende a reflexão final. Muito bem sacado. Entrega-nos uma outra reflexão, relativa ao futuro. Boa literatura, aquela que nos faz pensar.
#3 Nadi 17-01-2010 23:04
Nossa vida é uma maneira egoísta de sobreviver.
Para reler e refletir.
Bjs estrelas.
#2 Cilas_Medi 04-01-2010 15:58
Adorei! Apesar da síndrome da urgência e dos relógios bombas. Estrelado!
Parabéns.
Abraços.
#1 seth 01-12-2009 14:55
pois é todos somos escravos do tempo, e o pior é que cada dia nos tornamos mais paranóicos,parece até que os dias estão ficando mais curtos não é?.excelente texto para se ler e meditar.parabéns.

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