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A Aliança

Chamavam-se Arnaldo e Luísa, tinham um pouco mais de 40 anos e eram casados há 15. 15 também eram os kilos que ele havia perdido nesse tempo, a mesma medida que ela engordara. Apesar do rosto bonito, sentia-se feia e se aborrecia, mas a verdade é que não precisava daquilo para ter o humor alterado. Desgostoso de sua aparência, ele também compartilhava daquele mau-humor, porém debaixo de uma personalidade calma e de um espírito bondoso. Viviam um casamento desgastante com esporádicos momentos alegres.Tinham um filho a que chamavam, com razão, qualquer um diria, "perfeito"; por um patrimônio e reputação ótimos, e por momentos felizes, visíveis a todos na mesa onde ficava o telefone, na geladeira junto aos ímãs, nas cômodas dos quartos e na maior parede da sala.

Desde que se mudou há alguns meses, o casal passou a ter uma vida social mais ativa. Tiveram a sorte de ir morar em um prédio onde as pessoas se conheciam e nutriam boas relações, através de festas e encontros constantes. Relações verdadeiramente ótimas, com toda a inveja, a fofoca, o preconceito, etc., guardados zelosamente nos bastidores, sem sequer arranhar as aparências. Dentre as novas amizades, uma era Ana, engenheira como Arnaldo. Foi em conversas agradáveis com ela que Arnaldo se descobriu um amante da engenharia e um bom profissional, coisas que estavam submersas nos seus vinte anos de profissão, e assim permaneceriam se não fosse Ana. Luísa foi rápida e severa ao reprovar os sorrisos e a animação nas conversas daqueles dois. Chegou o dia mesmo em que o proibiu de ter com Ana. Que o contato dos dois não passasse de cumprimentos. Fazia aquilo, dizia ela, porque o amava e estava zelando pelo que era dela, seu marido. Ora, nada mais normal naquele relacionamento do que a manutenção da distância mínima que deveria haver entre o conjuge e qualquer outra pessoa do sexo oposto, algo que nem precisaria estar escrito no contrato de casamento, posto que já estava escrito no fundo de suas mentes desde o tempo de namoro.

De incomum mesmo era o tom da resistência de Arnaldo, que falava irritadíssimo a sua mulher para escutar a voz do bom-senso pelo menos uma vez em sua vida. E isso pedia uma resposta mais incisiva de Luísa, a olhar para o seu marido em momento de insolência rebelde. Tudo isso, é claro, era discutido com uma voz mais baixa, não como antigamente, para que os vizinhos não ouvissem. No meio da crise, Arnaldo, como se jogasse um balde de gasolina no seu próprio corpo em chamas, ainda solta da possibilidade de uma viagem de trabalho para o mês seguinte, oportunidade que ele não podia deixar passar com das outras vezes.

Este assunto não era novo. Arnaldo fez uma viagem 2 anos atrás, debaixo de muitos protestos da esposa. Retornou 3 dias depois, e por mais 3 dias a casa esteve nublada, até que sua esposa o fez prometer que jamais viajaria de novo. Aquilo era uma crueldade com ela, dizia, pois era como abandoná-la por um motivo egoísta. Arnaldo, que havia aceitado os termos da conciliação, agora os quebrava.

A possibilidade de uma separação era muito nova para Arnaldo. Sempre teve em mente, e isso desde a dolescência, o cárater perene do seu casamento, coisa que o nascimento da criança logo cedo só fez fortalecer. Mas agora considerava o desenlace, um ato que aos seus próprios olhos era ousado. No calor daquela discussão, Arnaldo se despiu da aliança com um furor que admira-se não ter ele arrancado o próprio dedo junto. Depois arremessou-a contra o chão na direção de Luísa. Ao espatifar no chão, ficou claro que a aliança havia se lascado, e logo veio à mente de todos não só a incerteza do futuro daquele casamento bem como a da boa porcentagem de ouro que havia no anel.

Diante do extremo ato, Arnaldo recuou. Foi abraçar a esposa. Ela chorava e se mostrava uma grande vítima, uma mulher carente que não era bem amada pelo marido, homem capaz de magoá-la apenas para ter bate-papos com a vizinha. Já há algum tempo Arnaldo se desfizera da ilusão de que as coisas pudessem melhorar, de que a esposa se tornasse mais razoável, de que sua liberdade fosse maior. Foram tantas as concessões que fizera ao longo dos anos, tantos os ajustamentos à ordem da esposa, que modificar aquilo seria modificar tudo, ele e ela por inteiro, uma nova vida e um novo casal. Agora, estava claro para ele que, ou era o divórcio, isto é, desmoronar um mundo inteiro para reconstruí-lo, ou a manutenção das coisas como estavam.

Nesse momento, Arnaldo estava escolhendo a segunda opção. Recolheu a aliança pediu desculpas à esposa, até porque aquele não tinha sido o seu primeiro ato rude com ela. Saiu naquele mesmo momento de casa para restaurá-la, o que seria o grande símbolo da reconciliação dos dois. O preço pelo conserto foi enorme e o seu intímo desejo de separação o fez sentir ainda mais aquela facada. Ainda na loja, Arnaldo pensava profundamente se não era mesmo tempo de acabar com aquilo tudo, aquele absurdo que era sua relação com ela e, assim, poder viver a vida plena com que vinha sonhando cada vez mais. Pensou em Ana, e em como a vida seria mais bela ao seu lado. De fato, havia tido sonhos com Ana em que eles se beijavam. Nesse exato momento, pensava que fosse realmente possível aos dois terem um caso, que ele poderia abandonar Luísa e declarar o amor à vizinha, que poderia aceitá-lo, já que possuíam grande afinidade.

Pôs-se no caminho de volta para casa. Tinha a aliança em uma das mãos e a fitava quando um desânimo suplantou a esperança. Só de pensar na explosão que haveria quando contasse de sua decisão para a esposa, ele recuava. Além disso, havia o filho que ficaria desapontado com a separação. E o que dizer dos seus pais, dos pais dela, dos seus colegas de trabalho? Que surpresa não seria para todos aquilo! Que explicações daria ele para aquele fim tão súbito? Pensou Arnaldo em uma vida inteira que construiu junto com a esposa e relembrou os bons momentos em que vivera com ela. De fato, em alguns aspectos os dois tinham uma boa sintonia, que se manifestava sobre aquilo que tinham de comum. Arnaldo notava agora que só costumava olhar para o lado ruim das coisas e que havia um lado bom naquela relação que poderia ser mais trabalhado. E assim ia ele no caminho de casa, olhando a aliança e cavando a memória para ali achar sua felicidade. E, de fato, encontrando algumas coisas.

E foi bem nessa hora que ela cai de sua mão, quica no chão, passa pela grade e entra no quintal de uma casa de aspecto abandonado. A peça não foi muito longe, estava ao alcance da mão. Pensou em chamar o dono da casa para recuperá-la até que se decidiu por enfiar o braço na fresta debaixo da grade e pegar ele mesmo a aliança. Receou por um segundo que alguém imaginasse que ele fosse um ladrão e saísse atirando tão logo o visse ali. Mas se desfez desse pensamento e se agachou. Para que o braço pudesse chegar até onde estava o objeto, Arnaldo virou o corpo e o rosto para o lado, não podendo assim ver o pit bull que se aproximava súbita e velozmente. O animal estava há dias sem comer, dado que seus donos viajaram e displicentemente o deixaram sem comida. Foi vorazmente na mão de Arnaldo, deixando logo os ossos expostos. Tentou sair dali, mas o braço estava preso. Antes de conseguir gritar, o animal o atacou de novo, e não o fez só por fome, se não também por insanidade e puro instinto de violência. Não tendo desmaiado diante das várias investidas do cachorro que rasgavam sua pele e inundavam o chão de sangue, Arnaldo assistiu aquela refeição por mais de meia hora antes de morrer. Nesse tempo, via também a aliança enquanto encarava o fim trágico do seu casamento.

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Atualizado em: Sex 6 Fev 2009

Comentários  

#2 Abreu 09-08-2010 00:31
Azarento!
#1 Abreu 09-08-2010 00:31
Azarento!

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