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Irmãs

Próximo à margem do lago Siena, Margot acompanhou confusa a dança de uma folha seca de macieira que se desprendeu do pé ela cair no lago e formar uma onda que se estendeu por um longo raio. Ela ficou observando até ela desaparecer pó completo. Ela era fascinada por esses pequenos detalhes da natureza. Um inseto que voa. Uma planta que nasce uma flor que desabrocha. A cor do amanhecer. O dia que morre mancinho no horizonte. A serração que se forma no alto morro das antenas. Essas bobagens.
Helena estava mais afastada da margem sentada sob o lençol do piquenique. Não gostava desse tipo de coisa. Mordeu um pedaço do sanduíche. Ficar parada e contemplando o nada. Sempre há coisas mais interessantes por fazer. Não é falta de sentimentos. Ela preferia coisas mais concretas. Coisas das quais pudesse tocar. Ou pensar que podia. Então ficar parada e olhando folhas mortas, insetos nojentos e ficar contemplando o fim do dia quando no fundo deseja que ele se estenda por mais tempo, estava fora de cogitação. Ela preferia se concentrar no que estava fazendo: ler uma boa revista de artistas e se imaginar como naquelas grandes historias de aventura. A vida é muita curta para ficar na espera de algo naquele lugar esquecido por deus.
Margot e Helena eram consideradas as mulheres mais bonitas da pequena Guatamo na fronteira com o Uruguai. Por isso eram as mais cobiçadas em silêncio pelos rapazes da cidade. Ambas tinham uma diferença de apenas um ano e meio. Sua mãe havia morrido quando Margot tinha quatro anos e desde então seu pai, Olívio, cultivara a viúves com solidez. A desculpa que ele dava era que tinha de cuidar de suas pedras preciosas e que elas não serviam para qualquer um.
Margot saiu da margem e foi sentar-se próxima à irmã. Helena estava tão entretida naquela revista e não a percebeu.
- O que você esta lendo?
- Não amola. Será que não tem alguma colméia de formiga por aí pra você cutucar?
Margot riu.
- Colméia?
- Colônia? - perguntou Margot.
Helena deu outra risada.
- Colônia é pra cupim. Colméia é pra abelha. Você quis dizer formigueiro?
- Ah... isso. Formigueiro.
Helena mudou uma página. Margot ficou esperando.
- E então?
- O quê?
- O que você esta lendo?
- Uma reportagem sobre Pedro Gabardine.
- Quem é?
- Como assim "quem é"?
- Quem é?
Helena deu um longo suspiro. Sua irmã, na maioria das vezes a aborrecia. Ela Não parecia se interessar por nada além dos limites das quatro paredes do seu quarto. Ás vezes, os limites do portão de sua casa. Era tão provinciana, tão simplória, tão qualquer coisa mínima que às vezes ela tinha a impressão de que não eram irmãs.
- Esse. O sujeito mais bonito do mundo.
Ela virou a revista para a Margot. Seu rosto ficou tão próximo à revista que ela podia sentir o cheirinho papel impresso. Margot quase não pode identificar o sujeito usando um calção de banho que surgia da água do mar como um herói grego.
- O que acha dele? - perguntou Margot.
- Bonito - mentiu Helena.
- Bonito, nada. Lindo. Um dia caso com ele.
Margot riu. Ela achava que às vezes sua irmã não batia bem da cachola. Fantasiava demais. Pensava em coisas que não poderia ter. De repente Margot puxou a revista das mãos de Helena e saiu correndo para o meio do campo. Helena saiu atrás dela e quando a alcançou puxou-a pela saia e ambas caíram no chão. Riram muito. Mesmo com as grandes diferenças as duas irmãs sabiam o quanto se amavam.

Havia uma feira de artesanato que acontecia quinzenalmente no parque central da cidade. Turistas vinham de varias partes dos pais e da fronteira para gastar um pouco de seu dinheiro. e para ganhar um pouco dele, as meninas faziam e vendiam colares e bijuterias. Numa dessas feiras ele apareceu. Elegante. Dentro de uma calça jeans, camiseta e tênis velho. Seu nome era Cláudio Terozzo. Vivia na ponte aérea Rio - São Paulo.Nesse dia ele estava de folga. Trabalhava como dentista. E quando os seus olhos cruzaram com os de Helena, algo do qual ela não podia compreender bem, aconteceu.
O Dr. Cláudio lhe pareceu meio estranho num primeiro momento. Não lembrava em nada os rapazes da cidade. Falava bem. Cheirava bem. Tinha gestos que pareciam ser medidos. Era fino. Dócil. Um belo homem no lugar certo e na hora certa. Quanto a ele, conseguiu ver em Helena algo mais do que uma garota perdida no lugar mais esquecido do mundo. Ela contrastava com o jeito das outras mulheres da cidade. e por isso Cláudio se apoiou nesse pequeno detalhe para abrir um novo consultório naquela região afastava do mundo.
De repente as coisas começaram a mudar entre as irmãs. Margot via de longe e calada a transformação da qual Helena estava passando. Consequentemente ela também estava sentido essa diferença mudar o relacionamento entre as duas. Já fazia dois meses que os dois não se desgrudavam e só falava no tal casamento sem passar primeiro pelo noivado. O pai era contra assim como Margot. Numa noite, quando ainda dividiam o mesmo quarto ela resolveu se abrir com a irmã.
- Você deveria esperar um pouco.
- Por quê? Esperei a vida toda por alguém como Cláudio.
- Você mal o conhece.
- Conheço o suficiente para saber o quanto ele me quer.
- E como pode ter tanta certeza?
- Não sei. Eu tenho. Quando chegar a sua vez, você saberá também e aí tudo o que dizem contra aquilo que está sentindo, não terá a menor importância.
Helena ficou com aquela frase na cabeça quando a viu partir no ônibus para Porto Alegre e dali encontrar o Dr. Cláudio. Iriam se casar e mudar para Itália. O Dr. Cláudio iria fazer Mestrado por lá e não queria deixar sua futura esposa para trás.
Helena passou dias e noites pensando na frase da irmã. Ela havia assumido todas as responsabilidades que dividia com a irmã. Seu pai, com medo de perdê-la para um outro forasteiro, passou a proibi-la de sair sozinha. Margot mandava, fotos e cartas para os dois dizendo que estava tudo sempre bem, mas que não pretendia voltar mais para o Brasil por que a vida na Europa era tudo que sempre sonhou. Helena ficou triste por saber disso, mas entendia. Helena também mandava dinheiro para que os dois pudessem comprar uma nova casa.
Nas fotos que recebia os dois pareciam realmente felizes. E aquela frase de sua irmã parecia o refrão de uma antiga cantiga que elas cantavam uma para outra. Sempre martelando em sua cabeça. Sempre. E havia a solidão. E a companhia opressora do pai. As obrigações que pareciam multiplicar. Aquele pensamento estranho. A lógica perturbadora.
Existia uma angustia que insistia em ficar. Seu pai, depois de um tempo, também parecia sentir o mesmo, mas não dizia. Apenas a sufocava com seu jeito absurdo de proteção concentrando nela a dor de ter perdido uma de suas jóias. Era muito peso para Margot. Sua alma parecia estar embutida em lago onde havia um turbilhão de emoções. Uma tormenta da qual não podia suportar.
Quando iria completar cinco anos fora do Brasil, Helena recebeu uma carta de sua irmã que dizia que seu pai estava muito doente e que pedia para vê-la antes que morresse. Helena não pensou duas vezes, mesmo contra a vontade, percebeu que havia ficado longe demais e tinha que voltar. Tomou um vôo direto para Porto Alegre e de lá tomou um ônibus para sua antiga cidade.
Encontrou sua irmã na rodoviária. Parecia muito abatida, mas quando a viu Margot deixou escapar seu velho e radiante sorriso. Foram de encontro uma da outra e deram um delicioso abraço. Cláudio ficou esperando. Margot lhe cumprimentou e seguiram direto para casa.
Nos dias antes da morte do pai, Margot parecia ligeiramente feliz. Feliz demais para Helena. Até seu semblante havia melhorado. Depois que enterraram o pai, o semblante não havia piorado. Margot parecia tenra. Deveria ficar, pois sabia que não havia mais jeito do pai melhorar. Então ela não quis mais pensar naquilo e pensou nos próximos passos que faria. Deveria levar a irmã com ela para fora do país. Precisaria de alguns dias para tomar algumas decisões.
Haviam vendido a casa dos pais no Brasil e cruzavam o Atlântico quando Margot foi interrompida pela irmã. Ela fechou o que parecia ser um livro.
- O que você está lendo?
- Ah... nada.
- É um livro?
- Não, uma história que estou escrevendo.
- História?
- É.
- Posso ler?
- Só depois que eu terminar.
- Certo. Você tá legal? Precisa de alguma coisa?
- Não.
- Tá. Então vou voltar pra minha poltrona.
Helena deu um beijo na testa de sua irmã e voltou para sua poltrona. Margot esperou sua irmã se sentar e voltou a abrir a agenda que utilizava como diário. Leu minuciosamente, como sempre lia todos os dias depois que aprendeu a utilizar aquelas palavras como alimento para saciar sua fome. Estava escrito:
"4 de Março, não importa o ano.
Hoje resolvi colocar em prática tudo aquilo que andei pensando desde o dia em que Helena nos deixou. Ela sempre foi a melhor. A mais corajosa. A mais bonita. E toda sorte do mundo sempre estava ao seu lado. Sempre. Quando coloquei meus olhos em Cláudio, vi nele tudo aquilo que eu considerava importante em um homem. Eu o vira meses antes em Cristal em uma loja de conveniência e desde então eu não esqueci seu rosto. Mas como helena sempre dizia, eu não sabia o que fazer numa situação como aquela, por isso deixei escapar a chance de tê-lo para mim. Meses depois me surpreendi quando o vi diante de meus olhos na feira quinzenal de Guatamo e pela segunda vez eu não soube o que fazer, mas Helena soube. Eu deveria era ser como ela. Ter na futilidade o caminho para o conhecimento das coisas e não fantasiar como faço sempre. Ela foi mais rápida, sabia mesmo o que fazer e quando vi. Cláudio estava partindo com ela naquele carro para a Itália. Eu sabia que ela não voltaria mais para o Brasil. Ela não gostava daqui. Não gostava da gente da cidade. Queria ser do mundo e conseguiu. Então um dia essa idéia surgiu forte. Um insight soturno. Matar papai seria a solução. Só assim para ela voltar e eu poder rever Cláudio e quem sabe ser levada com eles. Consegui. Matei papai aos poucos seguindo ao contrário as recomendações do Dr. Klaus. Ninguém desconfiou."
Margot leu mais duas vezes o que havia escrito antes de arrancar aquela folha e jogá-la no lixo. Pensou outra vez a frase de que sua irmã havia lhe dito: "Quando chegar a sua vez, você saberá também e aí tudo o que dizem contra aquilo que está sentindo, não terá a menor importância."
Sim ela sabia disso, mas preferiu não arriscar.
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Atualizado em: Qua 25 Nov 2009

Comentários  

#6 anne10 07-04-2010 17:03
Muito bom!!! :-)
+1 #5 anne10 07-04-2010 17:03
Muito bom!!! :-)
#4 tania_martins 01-03-2010 23:18
Parabéns!
#3 tania_martins 01-03-2010 23:18
Parabéns!
#2 Cilas_Medi 27-12-2009 11:34
E são irmãs. Cascavel é pouco. Cuidado, Helena.
Parabéns. Abraços.
#1 Cilas_Medi 27-12-2009 11:34
E são irmãs. Cascavel é pouco. Cuidado, Helena.
Parabéns. Abraços.

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