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A descida

E na densa geada, na alva imensidão iluminada pela aurora; incumbida de soprar o nevoeiro azul claro da noite, a locomoção se tornara um desafio à parte. Os passos, gélidos e lentos, se enterravam na rancorosa neve – sem dó. Era tão ofegante quanto o apito de um trem. A fumaça saía e zunia feito as pedras voadoras do Vesúvio – ainda estava um tanto quanto confuso, o piloto.
Depois de virar seu corpo, devagar, para trás, viu as chamas raivosas e inflamadas se fartarem do aço da máquina. Não havia para onde fugir, não tinha para onde voltar. Apenas uma outra luz – uma luz, dócil, do outro lado, era a  única esperança.
Os passos lentos e dolorosos não eram por acaso: uma parte das ferragens do avião cravou em sua perna. Pelo menos a ferida estancou rápido. O ferro mais parecera um monumento, bem fincado, em sua coxa direita. A caminhada até a luzinha parecia impossível, mas não podia parar.
Os sussurros da noite também se aproveitaram da deprimente situação do homem, ferido e sozinho. Adiante, os lobos cinzentos uivavam em comemoração ao doce cheiro do sangue. A matilha, faminta, cercava – por longe – o ferido piloto. Coitado, calouro, nem notou a penosa vigília dos monstros de gelo assobiar ao longe. O frio, amigo, doía de tanta fidelidade – não o abandonou um minuto sequer após a queda.
De braços cruzados e lábios quase azuis, o piloto se arrastou até um indiscreto salix, envergonhado, separado das outras plantas. Sentou-se. Suspirou. Ainda ofegante, chorou de dor e desespero pelo terrível acidente. Ninguém além dele havia escapado.
Viu ao norte, a estrela. Um sinal de que ainda havia fôlego. Levantou-se. Partiu em direção à luzinha. O cinza, a neve, o vento, os monstros, o fogo, os uivos, as pegadas, os lobos, as dores, o avião, o ferro – todos o acompanhavam. Estavam torcendo para que o piloto chegasse até a luz. Eram seus novos aliados nessa terrível competição pela vida.
Caminhou, caminhou, caminhou. Quanto mais se aproximava, mais longe a luz tinia de abuso ao ouvido do homem. Aquilo parecera frustrante. Ele não queria mais continuar, queria parar lá mesmo e deixar seus novos amigos devorarem sua carne. Eles não queriam, pelo contrário, estavam o encorajando a continuar a caminhada. Decidiu ouvir, através do sonoro uivo do alfa, o som da liberdade. Liberdade essa que o afastaria, de uma vez por todas, do frio, dos lobos, do fogo: seus novos amigos. Ele não mais queria, mas os lobos insistiam em guia-lo.
Em algum momento, a dor já não o deixara mais caminhar. O ferro, preso, serrava sua carne a cada passo que dava. A dor, o frio e o sofrimento não eram mais amigos do homem. A dor agora puxava o piloto para o fogo do avião. Caiu de agonia, desfaleceu.
Em outro tempo depois, abriu os olhos, devagar, enquanto a aurora dançava sobre suas pálpebras. Aquela cena era uma recompensa pela perseverança que tivera durante a jornada. Algo o puxava para perto da luz. Era um milagre! Os lobos, amigos, cheios de atitude, abocanharam o colarinho do piloto e desenhavam uma nova oportunidade ao desfalecido homem do gelo. Arrastavam-no, grosseiramente, pela neve – faminta por sua carne. Mas outra vez, abruptamente, tudo se apagou. Desfaleceu, outra vez.
Quando se viu, de novo, inimigo da dor, percebera, ao levantar um pouco a cabeça, uma faixa sobre a perna – agora sem o imponente monumento de ferro. Ele, flutuando sobreo mar de gelo, agora numa velocidade alta, percebera que seus amigos lobos não mais existiam, não mais uivavam, não mais assobiavam. O destino quis trocá-los pelos grossos latidos dos brancos cães de gelo. Eram seis, ele contou. E acima, sentado no trenó que o levara, um anjo, com apenas uma asa, estava levando-o para a luzinha. E a aurora, de cima, sorriu para o piloto, ingênuo e frágil.
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Atualizado em: Seg 15 Jul 2024

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