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lição de amor

Seu Feliciano e dona Marta eram um exemplo de durabilidade matrimonial. Tiveram filhos, e já há um bom tempo haviam se tornado avós. Começaram a namorar ainda muito jovens, sem que antes houvessem conhecido o calor de mais ninguém. Muito católicos, presidiam os encontros de casais e o curso de noivos. Ajudavam a organizar os festejos e eram presença certa nas missas de domingo. Orgulhavam-se da casa cheia, das crianças correndo e do falatório em torno de temas amenos, que marcavam os almoços de família.
Apesar da rotina, talvez até por causa dela, o casamento deles permanecia inabalável, inspirador. Padrinhos de uma dezena de noivos, sempre tinham um bom conselho e uma palavra reconfortante; eram verdadeiros consultores do coração.
Um dia, porém, algo aconteceu, e uma nuvem escura pairou sobre o semblante de Feliciano. O homem falador e brincalhão havia dado lugar a uma figura taciturna, o que surpreendeu e preocupou a todos. Muitos parentes e amigos o procuravam a fim de descobrir o que estava acontecendo, mas era inútil. Poucas palavras escapavam de sua boca, nenhuma apta a qualquer esclarecimento. Mesmo o padre, amigo de longa data, a quem ele confessara seus maiores segredos, não conseguiu encontrar a fonte de seu desalento.
A melancolia do marido só tornava Marta uma esposa ainda mais atenciosa, o que, estranhamente, parecia debilitá-lo ainda mais. Ele sempre havia sido alegre e disposto, e a mudança repentina fez com que ela desconfiasse de seu estado de saúde. Estaria ele, para não preocupá-la, escondendo alguma doença muito grave? A intuição de Marta indicou a direção correta, embora, a patologia em questão vitimasse não o corpo, mas a alma.
Assim como acontece com um tecido muito branco, em que a menor das manchas é evidenciada, também a pureza do caráter turva-se com uma pequena nódoa. Sem razão aparente ou aviso, aquela mancha havia surgido como um dedo acusador, um chamado inquisitorial.
Chegou a pensar em subterfúgios morais. Confessar-se, cumprir sua penitência e esquecer tudo. Mas sua consciência, sua maldita consciência, não se daria por satisfeita.
Havia ofendido a Deus, mas não somente a ele. Devia uma confissão a ela também. Pensar nisso era aterrador e ele se sentia nauseado.
Lembrava de como era dedicada, vivendo apenas para ele e a família. Sentia-se um lixo por ter feito aquilo. Como foi tolo ao imaginar que poderia esquecer. Que ignoraria o passado, mesmo que a visão daquele rosto amoroso cobrasse a verdade todos os dias. _ Tolo! Tolo! _ Um completo idiota.
Por fim, decidiu que contaria a verdade, mas não faria isso de qualquer jeito, a qualquer hora, em qualquer lugar. Precisaria de condições apropriadas. Usou isso como desculpa para protelar. Mais dias se passaram, o que só piorou sua agonia. Constatou com amargura o óbvio: estava se enganando, mas o acaso costuma pregar peças.
Coisa rara era a casa estar vazia, mas, naquele dia de céu cinzento, estava. Feliciano não suportaria nem mais um segundo. Suas mãos suavam e o estômago embrulhava. Partiu para a cozinha, onde encontrou a mulher atrás de uma mesa, descascando legumes. Pediu sua atenção, dando ênfase para a gravidade do assunto. Puxou uma cadeira e sentou-se diante da esposa.
Gaguejou, sem conseguir articular as ideias. Percebendo que ele estava nervoso, agarrou com força suas mãos trêmulas.
_ Calma, querido! _ Estou aqui para ouvi-lo.
Depois de tantos dias de silêncio, ficou aflita por não conseguir ajudá-lo, mas ele finalmente se abriria, então, voltariam a ser o casal feliz de sempre.
_ Diga, meu amor! _ O que está acontecendo?
Feliciano respirou fundo.
_ Marta! Você sabe do meu amor. Sabe que durante todos esses anos me dediquei a você e a nossa família. Acontece que... _ não conseguiu prosseguir, a voz embargada.
_ Calma, meu querido! _ Seja o que for, eu vou entender.
_ Acontece que quando somos jovens, somos impulsivos. Facilmente levados por curiosidades e desejos passageiros. _ Pois bem! Uma única vez, em minha juventude, traí você!
Marta colocou as mãos sobre o rosto, sobrancelhas erguidas em um espasmo de susto.
_ Eu era imaturo. Nunca havia conhecido outra mulher além de você. Fiquei curioso. Por uma vez, uma única vez...
Ela começou a chorar, e ele a tomou nos braços.
_ Perdão, meu amor! _ Perdão!
Marta retribuiu o abraço, os soluços misturando-se ao que parecia um sorriso. Feliciano foi arrebatado por uma onda de perplexidade.
_ Meu amor! _ disse ela. _ Que peso você me tirou da consciência! _ É claro que eu o perdoo! _ Como poderia eu não perdoá-lo, se fui vítima dos mesmos impulsos juvenis? _ Não compreendê-lo, se também, por uma única vez, entreguei-me à mesma curiosidade passageira?
O semblante de Feliciano se transfigurou! No dia seguinte, família e amigos lamentavam a tragédia estampada nas páginas policiais, onde se lia: Idosa é morta a facadas pelo marido.
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Atualizado em: Qua 18 Out 2023

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