- Contos
- Postado em
Café Amargo
O café da manhã estava frio e sem açúcar. Pela janela, olhei para baixo e vi que a movimentação nos becos onde a droga é distribuída estava amenizando, indicativo de que essa era a hora de sair. Cumprimentei o Jô, dono da mercearia, e fui para o ponto de ônibus. Demorado, como sempre, ainda olhei para a janela do quarto onde eu moro para ver se não havia ninguém lá, apesar de morar sozinho. É uma dessas paranoias de quem mora na periferia violenta. Mas o bairro está crescendo, e com ele a bandidagem, não há porque não ter paranóia.
Depois de três terminais cheguei ao trabalho na agência (de emprego, não de publicidade), e lá deparei-me com as filas imensas de gente para “fazer ficha”. Às vezes tenho vontade de dizer: “Quer fazer uma ficha vá à delegacia mais próxima, quem sabe até eles já não tenham uma sua lá?”. O bom senso predomina e eu fico quieto. Especificamente neste dia fiquei quieto porque cheguei atrasado, e com isso a fila já estava bastante avançada. A crise aumentou o nosso trabalho, sem perspectiva de aumentar o nosso faturamento. Fato que, por consequência, não me dava esperança de aumento de salário.
Eram onze horas quando chegou um candidato diferente, bem vestido, óculos escuros, currículo digitado, nem precisou fazer a ficha. “Quero trabalhar de gerente, tem alguma vaga?”. Após ler o seu currículo, percebi que ele era, na verdade, auxiliar de escritório. Queria trabalhar de gerente porque estava de terno e gravata? Procurei ser direto: só tinha vaga para auxiliar de escritório, nem precisaria do terno. Ele retrucou num tom de superioridade, mas com aquela gentileza que suprime o ódio: “Creio que não tenha observado, estou fazendo faculdade, olha só, está bem aqui”, disse, mostrando com o indicador no papel que me entregara, e que naquele instante eu tive vontade de amassar e jogar naquela cestinha de basquete que eu tenho atrás da porta da minha sala. É para lá que eu mando aqueles currículos que não tem jeito, ou que eu não gosto por algum motivo, preciso desenhar um garrafão no chão, nunca sei quando minhas cestas valem três pontos. Fui tomado pela ironia naquele momento: “Senhor... Luis Carlos, muitos auxiliares de escritórios que encaminhamos para as empresas estão fazendo faculdade, principalmente de administração, como o senhor. Não há cargos de gerente para pessoas que não sejam formadas e não tenham experiência com supervisão”. Ele tirou os óculos, meio desacreditado, levantou, tirou o currículo da minha mão, saiu e não falou mais nada. O pior é que ele levou o currículo, perdi dois pontos na cestinha.
No dia seguinte, o café estava do mesmo jeito, frio e sem açúcar. Acordei mais cedo para dar uma olhada de graça nas matérias do jornal, que ficam expostas na banca, ao lado da mercearia do Jô. Tinha bastante gente, estava difícil de ler, quando a voz amiga do Jô me chamou: “Veja isso, aconteceu ontem numa faculdade no centro”. Um homem de terno e gravata invadiu a secretaria da faculdade e matou três funcionários, feriu o diretor e dois professores. Foram seis tiros ao todo, calibre 38. Pelo menos o cara conseguiu fugir, vivo torcendo pelos bandidos nestas histórias, talvez pela minha proximidade e convivência com muitos deles. Não havia fotos na matéria, logo me desinteressei, agradeci o Jô pela olhadela no jornal e corri pegar o desgraçado do ônibus lotado. Na agência (de emprego) a fila já começava a dobrar o quarteirão, crise terrível, só aumenta o trabalho. O homem bem vestido do dia anterior era o primeiro da fila. Irritei-me ao vê-lo, logo cedo. Enquanto eu abria minha sala, já ia adivinhando o que o safado ia me dizer: “Pensei melhor e quero a vaga de auxiliar de escritório”. Luis Carlos entrou na minha sala, fechou a porta, sentou calmamente e me falou, em tom sereno: “Pensei melhor, e quero a vaga de auxiliar de escritório”, deixou o currículo sobre a minha mesa. Estava com uma cara horrível, parece que não tinha dormido à noite, a roupa estava amassada, a cara amassada, o currículo também estava amassado, e eu não podia encaminhar um candidato naquelas condições. Desta vez fui mais duro com ele: “Sr. Luis Carlos, o senhor precisa ir para casa descansar, dormir um pouco e trocar essa roupa, está suado, não tomou banho, não deve ir assim a uma entrevista, não o atenderei hoje, volte amanhã e se ainda houver a vaga lhe encaminho à empresa”. Silêncio.
Ele se levantou, enfiou a mão no paletó, tirou então os óculos do bolso e pegou novamente seu currículo, mais uma vez a cestinha ia ficar na saudade, saiu e bateu a porta.
Depois deste atendimento fiquei pensando: porque não adocei mais o meu café?
Atualizado em: Seg 2 Set 2019