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MINHA EGO TRIP

Acabo de completar quarenta e oito anos. Fizemos uma celebraçãozinha em família numa pizzaria. Somente eu, a esposa e os dois filhos.
É, daqui a dois anos chego à casa dos cinquenta. Tem sido uma vida boa e acho que tenho cumprido meu papel para com a sociedade. Ao longo destes quarenta e oito anos já plantei algumas árvores;  tive dois filhos maravilhosos; conquistei bons amigos, escrevi um livro e estou na metade de outro. Acho que meu saldo é positivo visto que já fiz mais do que muita gente e menos, muito menos do que desejei. Porém, ( sempre há um porém), sinto um certo vazio no peito. Alguma coisa me falta, alguma coisa que eu tinha mas perdi há muito tempo.
São quatro da manhã. Não dormi a noite toda rolando na cama. Irresistivelmente levanto-me.
—Aconteceu alguma coisa, Beto, ainda é muito cedo.— Falou Patrícia, minha esposa, sonadissima enquanto eu me vestia.
—Nada não. A pizza de ontem não me caiu bem. Vou caminhar um pouco. Não se preocupe e volte a dormir.— Ela não ouviu, pois já estava dormindo.
Saí e a brisa fresca da madrugada refrigerou-me o rosto. Sem rumo, fui  caminhar pelas ruas de Brotas e, sem saber o porquê, me vi a caminho da praça central que dá frente para a Avenida Rodolpho Guimarães. Quando era jovem, eu adorava ver o nascer do sol naquela praça, mas, alguma coisa estava diferente no ar quando lá cheguei... Alguma coisa de passado a qual eu não sabia distinguir muito bem.
A praça estava deserta. Caminhei lentamente. Alguma coisa estava diferente... Um vento gelado de mês de junho arrepiou-me a espinha em pleno novembro. Eu já começava a praguejar contra o frio quando, com surpresa, vi no banco em que me sentava para apreciar o nascer do sol , um garoto de, mais ou menos dezessete anos acenando pra mim. Aproximei-me devagar e, com espanto, pude reconhecer aquela figura. Aqueles cabelos castanhos e compridos ; a calça jeans desbotada ; o tênis all star azul de cano longo e a jaqueta, também jeans desbotada me eram familiares.
— Não pode ser...Eu só posso estar sonhando ou ficando louco...— Falei estacando meus passos, assustadisssimo.
Neste instante, ele  que até então permanecera sentado, levantou-se calmamente, cruzou os braços e ficou me encarando por alguns segundos
— Como é que é ,cara! Vai ficar aí a madrugada toda me olhando com essa cara de babaca, ou vai sentar pra apreciar o nascer do sol? — Disse isto e voltou a se sentar com ar enfado.
Ainda atônito, caminhei até ele , parei em sua frente e o fitei embasbacado.
— Não é possível...Esse cabelo...Esse rosto... Essa jaqueta com bótons do AC/DC  e do RAUL SEIXAS...—Falei ainda bobo.
—É ,bicho, eu sei, nós dois somos um, agora, cala a boca e senta aí.— Ordenou-me o moleque. Eu obedeci.
Sei que parece absurdo, mas aquele garoto era eu com dezessete anos.
—Cê tá velho, bicho... Quantos anos?— Perguntou ele enquanto enchia um enorme copo descartável com uma mistura de cachaça com coca cola bebida muito comum em minha juventude.
—Quarenta e oito. —Ele pareceu não ouvir, ou se ouviu não deu atenção.
—Bebe aí, cara. — Disse ele estendendo-me o copo em sua destra.
—Obrigado, mas eu não bebo mais.
—Não bebe! Desde quando?— Falou ele demonstrando espanto.
—Desde noventa e quatro. — Respondi.
—Bom, então tenho que aproveitar, afinal tenho só mais sete anos pra beber, não é verdade?— Falou ele, rindo ao tomar uma golada caprichada e limpando a boca com a manga da jaqueta.
—Então nós chegamos aos quarenta e oito anos. E nossos sonhos... ?Se realizaram?— Pergunta ele me encarando.
—Alguns sim, alguns não...
—Como assim alguns, o quê cê fez com a nossa vida, cara?— Fala ele com olhar decepcionado e algo irritado.
—Ah, cara... A vida é tão cheia de surpresas... Quanto ao que fiz com nossa vida, bem, eu criei juízo meu caro, talvez por isto tenhamos chegado aos quarenta e oito.
—Juízo...? HÁ, HÁ, HÁ... Cê parece o pai falando. — Falou ele rindo e tirando um maço de Marlboro do bolso da jaqueta e me oferecendo. — Pega um aí...
—Obrigado, eu não fumo mais desde dois mil. — Disse eu simplesmente sem conseguir tirar os olhos dele... Ou de mim.
—Puta merda, não bebe nem fuma mais... Um baseado então nem pensar...?
—Nem pensar — Falei rindo
—E transar? Nós ainda transamos certo, ou... Não?— Fala ele meio assustado. Eu solto uma gargalhada como há muito não fazia.
—Não com a mesma intensidade de antes, mas sim, ainda transamos. — Falei enxugando os olhos que lacrimejaram com a gargalhada.
—Ufa! Pelo menos isso né, cara. — Diz ele aliviado tendo a mão esquerda sobre o coração.
—Bom, vamos ao que interessa, os nossos sonhos. Nós tocamos guitarra em uma banda de rock famosa? — Pergunta ele... Ou eu... Sei lá.
—Não profissionalmente, apenas por distração e não guitarra, mas baixo.
—Que merda, cara... Depois de todas aquelas aulas de violão eu não me tornei um guitarrista famoso afinal. — Diz ele desanimado olhando para o chão por um breve momento para, logo em seguida levantar o olhar para mim novamente, já recuperado da decepção de não ser um guitarrista famoso.
—Bem, já que não ficamos ricos nem famosos com a música, como é que chegamos aos quarenta e oito? O quê nós nos tornamos?  
—Bom, até chegar aqui onde estou nós tivemos algumas alegrias e desilusões e...
—Mais alegrias que desilusões ou mais desilusões que alegrias? — Pergunta ele ansioso cortando-me as palavras.
—Eu diria que na mesma proporção...
—Sim... Continue. — Diz ele fitando-me, curioso.
—Na verdade nós fizemos de tudo um pouco, a vida não foi fácil, mas, o mais importante é que voltamos a estudar e nos formamos em contabilidade e hoje somos funcionários públicos. — Falei orgulhoso.
—Contabilidade, cara! Nós sempre detestamos números. — Falou ele espantado tomando mais uma golada da bebida. Confesso que fiquei surpreso ao ver como eu, tão jovem podia beber daquela maneira.
—Pois é. Era o que tinha e nos agarramos com unhas e dentes. Não foi fácil. — Falei baixando o olhar para esconder uma lágrima que já me turvava o olho que enxuguei rapidamente com a mão.
—E namoradas? Nós tivemos muitas?
—Algumas
—Bonitas...?
—Sim
—Nós nos casamos com alguma delas?
—Com a mais bonita de todas de todas, se é o que você quer saber e tivemos dois filhos com ela.
Ele me abraçou efusivamente numa explosão de alegria, pois eu me lembro  bem de que meu maior medo nessa idade era o de ficar velho e sozinho. Percebi que estava chorando.
— Qual o nome deles, cara?— Falou enxugando os olhos com a manga da jaqueta.
—O mais velho se chama Betinho e tem vinte anos e o mais novo se chama Artur e tem dezessete anos como você. —Falei também enxugando as lágrimas com um lenço.
—Como eles são?— Seus olhos brilham e o sorriso enfeita seu rosto.
—São filhos maravilhosos.
—A mãe deve tá orgulhosa e feliz, né?
Não respondi e me tornei sério
—A mãe ainda tá viva não tá...?— Perguntou desconfiado.
—Tá... Tá sim.— Menti. (Que absurdo, eu menti pra mim mesmo, mas eu não podia dizer aquilo pro garoto.... O nosso problema com a bebida se agravaria. Já pensou viver sabendo a data da morte da mãe...?)
Nesse instante ele fitou o horizonte. O sol começava a nascer. Tentei dizer-lhe mais alguma coisa, mas ele silenciou-me pousando o indicador sobre meus lábios.
—Ssssshhhhiii! Fica quieto e curte que este momento é mágico, cara.
Naquele momento vi como os olhos dele brilhavam encantados fitando o espetáculo do nascer do sol e percebi que o que eu tinha perdido era esse encantamento com as coisas simples do mundo. Aquele garoto de dezessete anos se sentava naquele banco de praça e assistia, emocionado ao nascer do sol como quem assiste ao poeta declamar sua poesia. Lembrei-me então que muitas vezes estaquei a marcha para ouvir o canto de um sabiá ou canário, não me importando o quão atrasado eu estivesse. Nada era mais importante do que isso. Eu tinha perdido a sensibilidade. Tinha perdido a capacidade de me emocionar com coisas simples. Tinha me tornado frio e percebi naquele momento, olhando para mim mesmo o que eu tinha que resgatar: O real motivo pelo qual escrevo; o poder de apreciar uma poesia ou uma música, acorde por acorde; o poder de se encantar com o por e o nascer do sol.  Minha paz interior enfim.
O sol já se mostrava todo no fim do horizonte quando o garoto se voltou para mim novamente. Lágrimas escorriam abundantes pelo seu rosto jovem.
—Não sei por que cê tá aqui, cara, mas é muito bom que esteja. —Falou entre soluços abraçando-me apertado. Chorei também e não sei dizer ao certo por quanto tempo ficamos assim, apenas ficamos.
Uma forte atração chamava-me de volta.  Senti que a hora da despedida chegara.
—Tenho que ir... —Falei enxugando o rosto vermelho.
—Também tenho que voltar, a mãe não dorme enquanto eu não chego, cê sabe né. — Falou ele meio rindo meio chorando
—Sim eu sei...Te cuida ...— Falei acariciando lhe os cabelos longos.
Nos viramos e começamos a caminhar por caminhos opostos. Lembrei-me de um detalhe que valia a pena dizer pra ele e me  virei
—Ei...!—Gritei. Ele se virou
—Tome conta dessa jaqueta. Ela vai ser roubada do banco de trás do carro no batizado da nossa sobrinha porque eu deixei a janela aberta. Não deixa tá.
Ele fez sinal de joia.
Acordei em minha cama com o sol no rosto e vi que tudo foi um sonho,muito real pra mim, mas um sonho. A Patricia já tinha levantado. Comecei a me vestir sabendo o que tinha que mudar em minha vida, mas, um pouco decepcionado ao ver que foi um sonho. Porém, quando abri o guarda roupas quase caí de costas. A jaqueta estava lá, lavada e passada com todos os bótons  pendurada no cabide. Agarrei-a e senti seu cheiro de roupa limpa. Corri até a cozinha, minha mulher estava lá.
—Patrícia... O quê é isto? — Falei segurando a jaqueta espantado.
—Gostou da surpresa, amor. Eu tava fuçando umas coisas velhas suas e a encontrei. Você disse que ela tinha sido roubada, mas acho que você se enganou. Então eu a lavei, passei e deixei no guarda roupas pra você.
Eu a abracei sorrindo com a certeza, que, de alguma forma, foi real.
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Atualizado em: Seg 4 Jun 2018

Comentários  

#2 Renata_Prado 13-01-2019 18:22
E quem não amaria reencontrar-se consigo mesmo(a)? Um eu do passado pra uma prosa boa com o eu de agora...
Adorei o texto. Parabéns pela forma dinâmica como você escreve. ;)
Abraços.
#1 Alecryna 31-12-2018 14:06
oi laaaaaa
Pois tu sabe que o nome disto é doppelganger em alemão - uma duplicidade da gente, como se a gente fosse dividido em dois.
dizem que se a gente ver ele vai embarcar...é o que dizem, mas como foi em uma idade diferente não vai dar nada.
Gelou né??? kkkkkkkkk
Este seu escrito é uma verdade, a juventude passa e muitos dos sonhos somem, viram em pesadelos e se perdem...
Ces'la vie!
Mas tem os que se realizam.
Obrigado pela excelente distração de ler seu artigo.

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