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MANDINGAS DE UM FIEL ATRIBULADO
“Se te rogo praga é por que Deus me manda”
O caso do jumento sansão que desejou quebrar os queixos dos seus inimigos com um coice ungido
Parte 3 do texto O vingador Celestial
Após meu ataque de pelancas quando o reverendo disse que seria melhor se eu não tivesse acesso aos serviços do VINGADOR CELESTIAL, quase surtei outra vez.
Como um CAVALEIRO DO EGO DE CRISTAL, eu montei no meu próprio orgulho, apertei a fivela da infantilidade, apoie-me na sela da soberba e com nariz empinado e cheio de altivez de espírito, interpelei novamente o reverendo afirmando:
— Os antigos reis, profetas, sacerdotes e heróis da fé dos tempos bíblicos, quando ofendidos, clamavam a Deus por justiça e Ele os escutavam. Eu também quero ter acesso a esse tipo de poder. Assim, qualquer um que zombar de mim, de minha fé ou discordar do meu ponto de vista sobre as divindades, ordenarei e fogo dos céus cairá, consumindo logo tais incircuncisos.
O experiente teólogo balançou novamente a cabeça como forma de reprovação e virou-se em silêncio, parando em frente à janela aberta, olhando contemplando o horizonte além dos muros daquela antiga construção. Ele respirava fundo como sinal de aborrecimento ou exaustão por conta de minhas criancices.
Como justificativa completei:
— Veja bem, meu caro ministro: se condenas o que almejo, como exemplo clássico e em minha própria defesa, afirmo que meses atrás, até um parlamentar brasileiro manifestou em rede nacional e sem pudor algum, a intenção de conjurar os serviços do vingador celestial.
O reverendo apenas fez um som gutural inaudível.
Continuei:
— Junto a eles estava aquele pastor barbudo e tatuado, qual não lembro o nome. Eles invocaram ao vivo e a cores, em um “podcast cristão”, esse atributo do antigo do Deus de Israel. Ambos chegaram a uma conclusão de que ao povo santo deveria apelar para esse lado da divindade com mais frequência, já que esse poder ainda estava acessível.
Enquanto argumentava, eu permanecia sentando ao lado oposto da escrivaninha, tendo pastor de costas para mim.
A fim de enfatizar minha fala, batendo com punho na mesa, falei com emoção:
— É justamente disto que estou falando! De orar e pedir a Deus publicamente, sem receio algum de expor nossas intenções. De exigir que Ele quebre os queixos dos nossos inimigos diante dos nossos olhos. Que esmague os seus crânios. Que os ponham como estribo de nossos pés. Para que por meio destes, possamos ir mais alto, mostrando a todos Quem nos escolheu e que nossa igreja é a única e verdadeira, bem como deixar claro que intentamos impor ao mundo a nossa fé e costumes como o apoio do altíssimo, queiram eles ou não!
Ao ouvir tal colocação associada ao nome do parlamentar, o pároco virou-se rapidamente e ainda olhando por cima do ombro, perguntou:
— Por que ele? Porque entre tantos cristãos, quase 3,5 bilhões deles no mundo inteiro, você cita justamente o nome desta figura? Ele é sua “cara-metade”? Não poderia escolher modelos mais pacíficos, inteligentes, comedidos e altruísta, entre tantos outros? Por que se espelhar justamente nas escórias que a igreja-estado tem produzido ultimamente?
Em tom raivoso, ele completou:
— Como se não bastasse citar os piores exemplos de personagens bíblicos do passado, agora queres também introduzir como espelho o pior modelo que o “cristianismo presidencial” tem a oferecer? Você está desgostoso da vida? Por que só “ingere” o que não presta? Estás igual a uma criança cheia de vermes parasitas: só falta comer reboco de parede ou merda de gatos. Do jeito que vai, não vai demorar muito!
Pensei em revidar, mas notei que sua última fala tinha sido em tom hostil, como se a irritação que eu lhe havia provocado tivesse chegado ao ápice.
Do mesmo modo que um gatilho fora acionado ao citar Davi no início da conversa, notei que ao mencionar essa figura folclórica do “cristianismo de engajamento político de redes sociais”, o mesmo efeito havia despertado em seu semblante. Expressões de nojo e desprezo por "exemplos de santidade" que a algazarra gospel costuma construir ou venerar.
Concluir que a reputação daquele estudioso era mesmo o que dele haviam me dito.
Suas reações e falas coerentes faziam jus a sua reputação de sábio e recluso, daqueles que as pessoas só buscam no desespero, sabendo que beberão de um remédio amargo, mas ficarão curados das próprias moléstias.
Além de ser conhecido por sua cautela, inteligência, destreza com os livros, filosofia e pensamento crítico, este reverendo era também era notado por apontar, sem temor, as figuras que, ao seu modo de ver, seriam varridas da igreja pelo próprio cristo em pessoa, caso isso fosse possível de algum modo.
Percebi que as duas figuras que citei, achando ser bons exemplos de cristãos, poderiam sim fazer parte da “lista dos indesejados”, dos maus exemplos de pessoa, de político, de cristão e de representante público simultaneamente.
Como se quisesse me desculpar, dirige-lhe a palavra de modo mais suave.
De cabeça baixa, após esticar-me calmamente na cadeira, aliviando assim toda tensão e postura ofensiva, falei então:
— Estou disposto a ouvir suas sugestões, sobre como deveria agir um cristão comum em meu lugar quando ofendido, ao invés de invocar a ira descabida do altíssimo.
O pastor tonou sentar-se, pôs as mãos cruzadas por sobre a mesa, olhou-me com pena e pareceu pensar em cada palavra que ia me dizer.
Percebi naquele instante que ele já poderia ter encerrado a conversa nos primeiros dois minutos de diálogo e ter me mandado a um psiquiatra, procurar a minha turma ou coisa assim. Porém, lá estava ele: um homem letrado, com fama de conselheiro de sábios, gastando seu tempo a ouvir as lamúrias de um jovem que, apesar de recém-graduado em teologia, fora infantilizado por sua própria igreja.
Com visão de mundo forjada ao longo de anos por essa entidade que se dizia representante de Deus na terra, notei que meu senso crítico seria inferior ao de uma buzina de bicicleta, que só faz barulho quando acionada por algum mecanismo, inclusive o toque humano.
Percebi que como crente e "cheio de Deus", eu fazia alarido demais para uma só pessoa.
Refleti e cheguei à conclusão de que isso não era apenas culpa minha, já que eu vivera sempre guiado pelos outros, preso a um “guidão” do meu grupo, de minhas crenças e de minha bolha, daquela que me fez acreditar que entre tantos deuses, religiões e verdades no mundo, eu tinha tido a sorte de acertar na igreja perfeita, na fé correta e na doutrina inerrante entre as demais.
Com jeitinho paternal, ao mesmo tempo, dando-se a entender que havia escolhido o “livro errado” para mostrar o caminho certo, o pastor perguntou-me:
— A fim de aliviar sua própria frustração e crise existencial, por que você não faz o que todo crente extremista faz quando ofendido?
Fiquei curioso e disse:
— E o que é?
O pároco abriu o sorriso sarcástico, pôs os cotovelos na escrivaninha e gesticulando com as mãos disse:
— Rogue pragas, uai? Existe um "bicho" mais agoureiro neste mundo que um cristão fiel enfurecido? Se for pentecostal ou guardião de dias santos e usos de costumes sagrados...Vixi! Aí, nem o diabo aguenta!
Com um ar sarcástico, o reverendo complementou:
— É da boca dos santos que as piores mandingas, maldições e conjurações malignas são interpeladas! Engana-se quem pensa que são os satanistas e umbandistas os que mais conjuram males a terceiros. Nem os praticantes de vodu emanam tantas emoções e intenções malignas quanto uma "pessoa santa", "cheia de Deus", quando ofendida. Estes são mestres nas artes das trevas. E a quem vocês acham que estes invocam em suas horas de insanidade?
O silêncio foi ensurdecedor.
A pergunta já tinha em si a resposta contida.
Resposta que, perguntada daquele modo, fazia embrulhar de vergonha o estômago de quem ainda não tinha ainda entrado nessa "vida bandida", de alguém que, como eu, ainda não havia sido sugado por essa vida marginal, em que as pessoas costumam encobrir suas piores intenções usando a igreja, a fé, usos e costumes (inúteis), dias ou objetos santificados, bem como o nome do altíssimo, para justificarem ou darem vazões aos seus piores instintos.
Me lembrei de uma citação que tinha visto em livro, não lembro qual o nome que dizia: "se a simples contatação do mal ainda te fazes ruborizar, tu ainda não és um caso perdido"!
Lembrei de uma aula remota sobre humanismo ministrada por aquele instrutor ali em minha frente, ocasião em que ele dizia que do mesmo modo que um vício pequeno leva a outro maior até o ponto do viciado perder o controle da própria vida, o hábito de rogar pragas em nome de Deus e a mania de usar o seu nome ou sua ideia como porrete na cabeça dos outros, levaria o fiel a um estado degenerativo, semelhante a um "câncer de alma", situação irreversível, em que a vida social do indivíduo bem como outros aspectos de sua personalidade estariam condenadas.
A busca pelos serviços do VINGADOR CELESTIAL seria o divisor de águas nessa faze.
Cruzando aquela linha, a pessoa não mais poderia voltar a ser quem era, pois parte de sua própria humanidade cedida aos instintos das trevas, tornando-se a extensão da própria malignidade da divindade suméria, hoje tida como "deus dos crentes" e rebatizada de Jeová, Javé e tantos outros perfis psicodélicos.
Vendo que a provocação do rubor havia surtido efeito em mim, como se quisesse que eu regurgitasse toda aquela porcaria ingerida, o reverendo continuou com seu método de "lavagem estomacal" em mentes afetadas pelas balelas da "Eugenia dos Santos".
Meu "arianismo divino", aquela praga me fazia enxergar-me como o "mais alto", "o mais claro", "o mais santo" e "o mais puro" entre os demais humanos, estava sendo confrontado.
Em tom jocoso, ele seguiu:
— Já desejou hoje, a morte dessas pessoas que supostamente te ofendeu? Já rogou que Deus lhes ponha um câncer ou outra doença terminal? Por acaso você ainda não pediu que Deus lhes traga uma tragédia familiar, desemprego ou acidentes fatais, a exemplos de mortes cabulosas, inclusive dos parentes destes que nada tem a ver com essa bobagem?
Morri de vergonha.
Me retraí na cadeira, quase afundando.
Queria que o assento não tivesse fundo para que eu caísse infinitamente ao ponto de encobrir a minha cara para que ele não a visse.
Seu olhar era penetrante, parecia ler minhas intenções assim como tudo o que eu havia dito ou pensado anteriormente.
CONTINUA...
Texto escrito em 24/3/24.
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.
Obs.: Esta é a terceira parte de um texto-conto que tenho publicado nas últimas 3 semanas. A parte 1 chama-se: O VINGADOR CELESTIAL e a dois tem como título: O CAVALEIRO DO EGO DE CRISTAL.
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Atualizado em: Seg 25 Mar 2024