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O CAVALEIRO DO EGO DE CRISTAL
Quando o argumento faltar, use Deus para devastar!
Continuação do texto: O VINGADOR CELESTIAL
Ao citar meu desejo de vingança baseado no Deus dos patriarcas da fé, o pastor levantou uma das sobrancelhas e me encarou longamente. Quem sabe, julgou que minha sanidade havia me deixado.
Ele era crente, cristão, pastor e “conhecedor da palavra”. Não sei por que o motivo de espanto.
Essa não era a primeira vez que alguém era preenchido com a “síndrome do Deus irado” e nem seria a última.
Eu era apenas mais um entre os milhares de cristãos no mundo inteiro que tentam usar diariamente o patrono máximo de sua fé como arma letal contra seus oponentes por questões de simples desentendimentos.
O VINGADOR CELESTIAL era a invocação de nível hard, o maior tipo de loucura que um cristão comum poderia atingir nos tempos modernos.
Na verdade, ao invocar tal magnitude maligna, o título de cristão deveria ser imediatamente subtraído daquele que fizera tal enunciado.
De modo algum alguém poderia ser considerado cristão, quando em benefício próprio apelasse ao “lado podre” da divindade mesopotâmica, posteriormente renomeada de Jeová (Javé, Iavé) pelos hebreus e que séculos mais tarde fora outra vez (pobremente) rotulada pelos cristãos com um simples título de poder (deus), ao invés de atribuir-Lhe um nome próprio como em divindades de outros povos.
O pastor ali presente sabia que esse tipo de solicitação só poderia vir de 3 tipos de crentes: do abilolado; do infantil; ou daquele que nunca entendera de fato do que se trata o mandamento básico daquele qual dizem ser o Cristo.
Gente descente jamais invocaria esse tipo de favor de ninguém, muito menos daquele qual dizem ser a fonte de todo amor, compaixão e bondade.
É de conhecimento da maioria, que os cristãos costumam demonizar certos ritos de religiões africanas como sendo este um sinal chamamento à desgraça alheia.
No entanto, pior que fazer macumba nas encruzilhadas, despacho com bode preto, sangue de galinha ou simpatia com sapo de boca costurada a fim de desejar a desgraça de alguém, era clamar pelos favores horrendos do suposto Deus de Israel, que de tão nojenta a intensão, além de doentia, chegava a ser profana conforme o novo testamento.
Os tempos são outros e esse lado obscuro das divindades precisa ser deixado para trás se quisermos realmente a harmonia nas relações pessoais.
Quase 6 mil anos se passaram desde que alguns daqueles episódios supostamente aconteceram nos tempos bíblicos.
Eram situações em que as sociedades ainda ensaiavam seus primeiros passos rumo à civilidade.
A barbárie humana justificada pela fé deveria ser um fardo do passado, guardado na caixinha da vergonha e do esquecimento dos que buscam o caminho da paz.
Eu, porém, sentado ali à frente do reverendo, com o coração cheio de ódio por uma simples “derrota virtual”, estava suplicando à falta bom senso desse deus, como faziam os antigos profetas, reis e heróis da fé descritos no antigo testamento.
A razoabilidade parece ter sido algo que nunca passou por perto do Deus bíblico.
No devaneio das descrições embebidas de delírio à cerca dessa divindade, os teólogos cristãos enfeitaram-no com atributos que, de tão surreais, chegam a ser auto anulatórios, impossíveis, improváveis, indeterminados.
No momento em que plagiaram a estória dessa criatura de outras culturas e trouxeram-na ao seu próprio contexto, por não conseguirem ocultar suas principais características do passado, tiveram de inventar a trindade, cujo foco principal seria o filho, um ser mais adocicado, gentil e menos agressivo.
Melhor assim. Novos deuses, novos tempos, nova era... Pelo menos deveria ser!
Devia ser a hora de virarmos a chave da nossa bestialidade e permitir que “humanos falhos e pecadores” resolvam seus conflitos por meio de leis, tratados e da diplomacia.
Chega de deuses sanguinários, que se embriagam no sangue de seus próprios súditos e que ainda assim, agem como se fossem juízes, guardiões e mentores da humanidade.
Eles não servem como exemplo de honra, honestidade, coragem ou alguma outra virtude louvável.
Enquanto vagueava nos meus próprios pensamentos, ao estudar a face do pároco ali presente, tomei a atitude e completei minha fala:
— Elias, com uma simples sentença, fez descer fogo dos céus e assassinou 3 grupos de 50 soldados, que em missão de paz, traziam ordens do rei pedindo que tivesse com ele uma reunião solene.
Prossegui:
— Eliseu amaldiçoou 42 adolescentes que o chamavam de “careca” e por isso Deus ordenou e duas ursas saíram do mato e estraçalharam os pequeninos por conta de um simples apelido.
Continuei:
— Sansão, com uma queixada de jumento e “com Deus no couro”, matou de uma só vez, 1 mil filisteus com as próprias mãos. Sem falar de todas as outras vezes, inclusive na ocasião de seu próprio suicídio, ato que o fez derrubar as colunas principais do templo sobre si, ceifando junto a vida de outras 3 mil pessoas em um ato de “suicídio santo”.
— Davi, homem segundo o coração de Deus, Matou…
Antes que eu começasse a descrever as barbáries, as vigarices, covardias e traições desse personagem, o ministro irrompeu em tom firme dizendo:
— Para, para, para… Chega. Já deu! Pare de falar de tanta morte, violência e gente sanguinária para justificar sua infantilidade.
Olhei para o reverendo ali em presente e ele parecia tremer de raiva.
O que eu disse de tão grave?
Notei que o gatilho fora a palavra Davi.
Lembrei-me então das “estórias de seminário” que eram contadas por padres, pastores e estudantes de teologia em seus dias de “caserna”.
Dizem que certa vez esse reverendo, quando estudante, em uma apresentação, quase fora expulso do curso ao defender publicamente que não entendia o motivo de escolherem “uma personalidade lixo” como a de Davi, para servir de tripé na base que sustenta a fé cristã e judaica.
Abraão, Moisés e Davi. Essa é a base da fé judaica. Aos cristãos, acrescenta-se a este, o próprio Cristo.
Por que personagens violentos, trapaceiros, sanguinários, covardes, adúlteros ou fazedores de escravos tinha de servir de espelho aos de boa índole, só por que seus nomes estão escritos num livro antigo?
Por fazer argumentos desse tipo, o teólogo em minha frente quase fora excomungado, não apenas do curso, mas também como membro da igreja e do corpo de obreiros.
Citar aquele nome em sua presença lhe fez sangrar por feridas antigas.
Após bater na mesa, se levantar e andar em círculos, o ministro parou em frente à janela, olhou fixamente para o horizonte, passou a mão na cabeça algumas vezes e depois no queixo. Se recompôs e veio sentar-se onde anteriormente estava.
Sua voz ainda estava embargada. Se por conta da ira ou de remorso, não sei.
Ele encarou-me e calmamente me disse:
— Meu filho, você tem ideia do que você está dizendo? Você teria coragem de pedir a Deus a morte de alguém por conta de uma boba desavença na internet? Isso é cabível a um cristão? Pense e responda!
Interrompi-o antes que ele iniciasse outra fala:
— Não estou dizendo se este é ou não um desejo razoável. Não quero saber desse tipo de assunto, até porque o próprio Deus não é razoável em suas medidas. Como servo dele, só estou dizendo que tenho o direito de ser como foram os antigos profetas e heróis da fé. Como ainda não aprendi a ter acesso esse tipo de poder, vim pedir o vosso auxílio, já que tu também foste eleito e ungido, não é mesmo? Não tenho esse direito?
O pastor meneou a cabeça. Coçou a testa e outra vez falou em tom áspero, quase xingando:
— Claro que não poxa! Isso não dá! Ou você é um cristão, ou você serve ao Deus do antigo testamento. Os dois não dá! Não são as mesmas divindades. Um se contrapõem ao outro em princípio, virtudes e propósitos. Um vive a procura de uma mínima desculpa para destruir os seus próprios servos, as nações vizinhas e até o mundo inteiro com sua ira descomunal. O outro (Cristo), por sua vez, sugeriu que as pessoas resolvessem suas desavenças por meio do diálogo, do perdão e da reciprocidade e era possível viver em paz, até com os que pensam diferente da gente. Você não percebe? Pai e filho são como a antítese um do outro.
Dito isto, o pastor pausou sua fala, segurou em meu braço, olhou profundamente nos meus olhos e disse:
— Você tem certeza que deseja invocar esse poder tão maligno? Acha mesmo que esse ser é realmente algum tipo de Deus? Estaria disposto a entregar a sua alma, sua honra e sua paz de espírito para ter poder a esse poder das trevas? Você não sabe com o que está mexendo. Sua alma se tornará tão escura quanto a de todos os homens que usaram ou usam a Deus, sua ira, seu nome ou seu suposto poder como escudo ou bandeira. Deixa disso meu rapaz...
Ao ouvir tal discurso, minha ira aumentou ainda mais.
Julguei que os livros estavam fazendo mal aquele homem, que ele estava se mesmo corrompendo, abandonando a própria fé e se voltando ao humanismo.
Então era verdade o que diziam a cerca dele. Que ele era um pastor de fachada, que não mais acreditava na bíblia e que estava ali para "desconverter" os próprios fieis.
Logo seria um comunista, um socialista ou quem sabe até um ateísta no futuro usando esse tipo de defesa!
Longe de mim tal coisa. Eu queria a vingança de Deus sobre meus inimigos a qualquer custo, nem que para isso eu tivesse de tão trapaceiro, covarde, mentiroso ou arrogante como foram os ungidos de Deus do passado.
Em um impulso argumentei:
— Meu pastor, veja bem: ou você usa a lógica, ou você usa a fé. Os dois não dá! Ou você é um crente obediente, que não questiona os métodos que Deus usou no passado e acredita em toda a bíblia, ou você é um pensador, um filósofo ou um humanista... Os dois não dá!
Continuei meu discurso:
— O que os livros te fizeram? Te deixaram fraco por acaso? Não se dar conta do poder que tem em mãos? Com tanto conhecimento sobre Deus, o mundo, a mente e o comportamento humano... Por que não usa o que tens para esmagar esses idólatras, pecadores, traidores da fé e esses profanadores dos dias e costumes santos estabelecidos por nosso Deus? Acho que me enganei ao procurar a sua ajuda. Bem disseram que a letra mata, mas o espírito vivifica. Por isso não estudo tanto, não leio tanto. Apenas busco o direcionamento de Deus e ele me diz o que fazer sempre. E nessa hora ele me manda invocar a sua ira sobre meus inimigos!
Com aquela frase impulsiva, o pastor quase afundou o rosto entre os cotovelos. Meneou outra vez cabeça e seu corpo começou a tremer.
Como ele cobria própria face com as costas do braço, não sabia se estava rindo de minhas parvoíces ou chorando por minha teimosia.
Quando ele se ergueu, tive a leve a impressão que vi uma lágrima rolar em seu rosto.
Ele poderia me mandar embora naquele instante, mas não o fez.
Deu-se a entender que eu era um caso perdido, mas mesmo assim prosseguiu dizendo:
— Pois bem, se é isso que você quer, vamos começar pelo básico. Vamos fazer o que qualquer cristão medíocre faria se estivesse em seu lugar. Se mesmo assim você não mudar e ideia, você poderá invocar a ira do VINGADOR CELESTIAL como tanto almeja.
CONTINUA...
Texto escrito em 10/3/24.
Atualizado em: Seg 11 Mar 2024