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Cartas de Sofia: cap.1/ A partida
Talvez você não saiba, mas essa é uma estória verídica que ocorreu na região Oeste, no sul do Brasil. O que aconteceu no passado desse lugar mudou completamente o futuro desse homem que acabou se tornando um grande amigo meu. Quando relatei que colocaria tudo aquilo num livro, ele me pediu que não revelasse seu verdadeiro nome. Foi ele quem me deus todos os detalhes até o retorno para casa. Não se engane. Mesmo as partes mais impossíveis e inacreditáveis dessa estória, realmente aconteceram. Eu posso garantir. Muito aconteceu quando eu também estava lá.
“O sino! Nunca deixe de tocar o sino antes de entrar”
Acorda! Jônatas ouviu seu reflexo no espelho lhe dizer sem nem mesmo mexer os lábios, "Acorda!" Ele repetiu com mais ira. Claramente era isso. Essa era a única explicação para tudo o que estava acontecendo... só podia ser um grande e terrível sonho. De fato, só pareceu acordar quando as batidas sobre a porta retornaram tão opacas e distantes quando a voz que repetia a mesma pergunta incessantemente do outro lado da madeira, "Jô! Você está bem? Amor!" O corpo dele estremeceu por alguns segundos por conta da repulsa que o gosto amargo causou ao brotar de sua garganta e ser expelido com o vômito, Urgh. Sentindo sua cabeça um tanto zonza, respirou fundo buscando fôlego e o próprio reflexo no espelho embaçado pelo vapor do banho que havia recém tomado. Droga de cansaço! Assim como sua falta de apetite, estava se tornando quase uma rotina a presença daquela exaustão. Jogou contra o teto um sopro longo o suficiente para se desfazer de todo aquele ar preso dentro do seu pulmão adoentado. "Amor?" A voz persistiu lá fora.
Os murros na porta continuaram, frequentes, preocupados. Jônatas deduziu que provavelmente foram seus rugidos alados quem dedurara sua péssima condição matinal. Formando uma concha ao juntar as mãos, jogou uma dose de água sobre rosto e para dentro da boca. Gargarejou dando uma última cuspida para se desfazer do restante de escarro. Secando o rosto, mirou pela pequena janela os raios de sol que transpassavam a neblina que se desfazia sobre o bairro, as montanhas ali perto. Fleches de luz que cruzavam entre o vão entre aberto e também chegavam exatamente ali, escaneando parte de seu semblante como se fosse um presságio angelical, avisando que tudo já estava traçado e que o mais sensato era aceita-lo como tinha de ser. E de fato ele já aceitara. Estendeu a toalha sobre o ombro direito e abriu a porta. Imediatamente se deparou com o olhar tenso e impaciente de sua esposa.
Estava ficando cansado daquilo. Cunhado, sogro, mãe e todos que estavam a par de seu diagnóstico pareciam a espera de uma repentina fatalidade. Ainda que não os condenasse por isso, incomodava vê-los determinados a fitá-lo abertamente com imensa piedade. Não se preocupe, querida! Vou escolher um lugar melhor para morrer. Disse dentro de si inspirando outra dose de ar. Pensando bem, sabia que essa seria uma ótima oportunidade. Passar um tempo longe desses conhecidos olhares o ajudaria a sentir-se menos vigiado.
Estava ficando cansado daquilo. Cunhado, sogro, mãe e todos que estavam a par de seu diagnóstico pareciam a espera de uma repentina fatalidade. Ainda que não os condenasse por isso, incomodava vê-los determinados a fitá-lo abertamente com imensa piedade. Não se preocupe, querida! Vou escolher um lugar melhor para morrer. Disse dentro de si inspirando outra dose de ar. Pensando bem, sabia que essa seria uma ótima oportunidade. Passar um tempo longe desses conhecidos olhares o ajudaria a sentir-se menos vigiado.
— Foi só um enjoo. — Mentiu tentando descredibilizar a situação. Cruzou por ela e
seguiu em direção ao quarto enrolado no roupão.
seguiu em direção ao quarto enrolado no roupão.
Helena o acompanhou de olhar atento antes de segui-lo de fato.
— Jônatas. — Em poucos passos alcançara o cômodo onde ele estava. — Você sabe que eu não gosto nada dessa ideia.
Ele, melhor do que ninguém, sabia que se existisse alguém no mundo com tamanha facilidade para ficar extremamente preocupada essa pessoa era sua esposa. Desfez-se do roupão bege-escuro e ficou nu.
— Essa é a única ideia que temos à disposição. — Respondeu tranquilamente enquanto pendurava a vestimenta no cabide junto a imensa veneziana. Afastou os vidros da janela que mais pareciam duas portas transparentes.
Boa parte do quarto já era tomado pela luz da manhã e se havia alguma dúvida, o vendo úmido que vinha das montanhas e planícies da serra gaúcha batendo levemente em seu corpo deixara claro que o inverno havia chegado. Estranho. Ainda que tivesse nascido naquela região, Jônatas não enxergava coisa que mais detestava. Maldita estação do ano! Ainda assim, pelo visto, faria um belo dia. Ante a janela, permitiu que o calor do sol banhasse seu corpo por alguns segundos.
— Não é verdade. — Helena escorada ao marco da porta. — Você sempre teve tanto serviço quanto precisa aqui na cidade. — Observando seu marido ainda imóvel, de braços estendidos revelando sua intimidade ao vale que se estendia distante, reparou o quanto ele emagrecera. Os músculos que ainda se moldavam, mas não expressavam o mesmo vigor, agora, também eram cobertos por uma pele mais esbranquiçada, combinando com a leve palidez de seu rosto quadrado. Tudo ficou ainda mais evidente depois que ele resolvera manter um corte de cabelo raspado. — Não tem que fazer isso.
Rapidamente seu queixo parou próximo ao ombro quando buscou fitá-la.
— Não tenho? — Respondeu de uma forma que a fizesse reavaliar o que tinha dito. — Sabe que precisamos desse dinheiro. — Deixando seu breve banho de sol aproximou-se da cama. Catou a cueca junto as outras peças de roupa que sua esposa estendera sobre o colchão.
— Posso falar com meu pai. Você sabe que ele…
— Chega, Helena! — A interrompeu irritado. — Esse é o meu trabalho! Essa é a minha casa e é assim que mantenho a nossa vida. Não tenho que pedir nada ao seu pai! — Deu de mãos nas calças e depois de vesti-las sentou-se para calçar as botas. — Tem algum inválido nessa casa?
Permaneceram em silêncio. Jônatas vestiu a camiseta e depois de encobri-la com uma camisa flanelada jogou por cima um colete negro de gola alta. Prendeu o velho relógio prateado em seu pulso.
— Você ficar tão longe que me incomoda. A gente não sabe se… — Freou-se. Sabia que aquelas ideias não reverteriam a decisão que ele tomara e muito menos lhe pareceu sensato relembrá-lo da própria condição.
Sem tirara os olhos de sua esposa Jônatas catou seu boné, mas não o colocou. Tossiu apertado. Puxou fôlego e soltou lentamente. Não era hora para um conflito. No fundo, sabia que ela tinha medo, não que ele não tivesse, mas haviam coisas mais importantes em jogo e pretendia dar cabo de suas obrigações antes que o inevitável acontecesse. Seguiu em direção a porta.
— Esse maldito câncer não acabar comigo. — Ainda não, refletiu. Fingindo acreditar na própria mentira soltou uma risada que teve forças para ficar apenas junto aos dois. — Sabe porquê? — Colheu as mãos dela e fez com que envolvesse seu pescoço. Cobriu os lábios dela com um beijo ressecado. — Tem alguém que quero ver nascer… — tocou a barriga de sua esposa. — … crescer… ver se formar e, Deus do céu que demore ainda mais tempo, me tornar avô. É por causa de tudo isso que tenho que ir. Algumas semanas longe não é nada perto da ajuda que vamos ter com toda as nossas despesas. — Abraçou Helena. Teve certeza. Ali estava algo que jamais se cansaria de apreciar. Inspirou o perfume leve e adocicado que exalava dos cabelos loiros dela. — Nunca vou receber uma oferta como essa aqui na cidade.
Percebendo o quanto aquilo significava para o seu marido, Helena decidiu não ser um estorvo.
— Ainda acho que você não deve ir, mas se quer fazer dessa forma...
— É. Quero fazer dessa forma. — Buscou os olhos verdes dela. — Vai dar tudo certo.
— Foi exatamente o que me disse quando decidimos morar juntos. — Ela relembrou.
— E como tenho me saído?
— Fazendo dar certo.
— E vai continuar sendo assim. — A libertou de seu abraço e calçou o boné. — Ainda me pergunto quando foi que me apaixone por você. — Adiantou-se e depois de atravessar o corredor a esquerda chegou à cozinha.
— Bom… Eu sei perfeitamente quando isso me aconteceu. Foi quando conversamos pela quarta vez e percebi que era só com você que eu conseguia sorrir.
— … Sempre me achei um cara emburrado. — Serviu-se uma dose pequena de café.
— E você é. E até certo ponto tinha receio de você. Sempre estava nos cantos, nunca no meio como a maioria dos rapazes. — Pôs sobre a mesa um prato com sanduíche em fatias.
— Descrição sempre foi meu ponto forte. — Abocanhou um pedaço do desjejum e desistiu do resto.
— Responsável. — O corrigiu. — Esse é o seu ponto forte. Apesar de ser um pouco esquecido. Então, pelo amor de Deus! Vê se lembra de tomar os remédios.
— Todos eles. — Terminando o restante do café deixou a xícara na pia. Em seguida, deu de mãos na maleta com suas ferramentas junto ao sofá.
Helena o acompanhou até a saída.
— Que horas você chega?
Ele buscou as horas no pulso. Quase oito.
— Final do dia, talvez antes. — Acomodou suas coisas na caminhonete. — Te ligo. — Recebeu um beijo de despedida antes de embarcar.
— Descansa e se alimenta direito. — Ela ainda ordenou da porta.
Antes de dar a partida, em resposta, Jônatas bateu continência. Engatando a marcha ré amparou sobre a manga de sua camisa uma tosse seca que arranhou sua garganta. Abanou para Helena e alcançou o asfalto ignorando as gotículas de sangue que expelira sobre a flanela. Eu vou conseguir! Eu tenho que conseguir! Seguiu em direção a saída da cidade.
Atualizado em: Seg 22 Jan 2024