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Leonardo e Meredite (Parte 3)

Já era noite e todo inconveniente ocorrido durante o dia cedera lugar à luzes e extravagâncias boêmias e pacíficas. A vila se transformara completamente. Os bairros exibiam os românticos abóboras vindos dos candelabros das mesas dos restaurantes, tecendo harmônico conjunto com as piscadelas das estrelas que pareciam balançar no firmamento. Desde os pequenos até os maiores museus e teatros estavam com as portas abertas e acesso livre à todos, ostentando suas salas repletas de relíquias e oferecendo outras à novas demonstrações de maestria e doação. Era a inauguração de duas semanas em que tal fraternidade não dormiria.
     As pessoas chegavam à vila, mas não partiam... O engenho da fábula criativa era tal, que todos, ou pelo menos a maioria dos que acompanharam as tramas daqueles tempos concordaria que o lugar parecia um ninho crescente, capaz de receber confortavelmente todas as pessoas do mundo se elas decidissem ir até lá.
     As ruas eram então o maior dos palcos... Um ambiente perfumado deliciosamente por iguarias produzidas por artífices do sabor que aproveitavam a ocasião para também conquistar e surpreender distintos paladares. Um pleno lar musical, seguido por falas eloquentes, cativantes. Panfletos dos mais diferentes formatos e tamanhos eram distribuídos. E por todos os lados, interiores e exteriores se serviam da inocência e desafio de telas e esculturas.
     Leonardo havia chegado à vila na madrugada do dia anterior. Tinha visto a polvorosa que se fazia instalada. E, agora, essa noite, para ele, nada tinha de paraíso, ainda era um inferno. Metade dos seus preparados para tinta, haviam se quebrado no transporte, apesar de todos os seus cuidados. Então passara grande parte de seu tempo livre procurando formas de recuperar as nuances desperdiçadas. Luta perdida. Nenhum pigmento útil o interessara. Então ele entrou em uma floresta próxima e recolheu matéria para ele mesmo criar as colorações. O esforço deu resultado. Ele pintou duas telas, ambas de paisagem. Para ele estavam muito mais do que perfeitas. Uma mostrava uma floresta, a outra, um grande lago cercado por imensos volumes de gelo... Acreditou que refletiam bem os contornos do seu espírito desde aquela tarde a onze anos atrás. Estava sentado em sua cama, com as telas secando bem à sua frente, quando bateram à porta. Não precisava perguntar de quem se tratava, pois acabava de reconhecer a senha combinada e em um pulo já tinha concedido passagem aos visitantes. Se cumprimentaram sem formalidade e servindo-se da comida e bebida que Leonardo tinha previamente solicitado, se sentaram e logo sua atenção encontrou as telas do pintor. Leonardo estava destruído pela correria para realizar seus intentos, de maneira que a decepção revelada pelos olhares e comentários francos e indignados vindos de seus melhores, para não dizer únicos, três amigos: Marco, Will e Alesandro, o irritou ferozmente.
     - Leonardo, você não vai voltar ao mundo das exposições, precisamente nesse lugar e acontecimento, fazendo uso dessas duas pinturas, né?! - disse Alesandro.
     - Ele tem razão, Léo! Entenda... São obras lindas, impecáveis, típicas de Mestres... Mas não são você! Não vejo nem um toque seu nelas. - Marco tentou amenizar o clima.
     Will buscou completar o raciocínio dos amigos:
     - Pensamos que chegando aqui você sentiria a emoção da arte e esse gelo que você tem no coração desapareceria e sua alma voltaria a falar. Ainda temos duas semanas, você não precisa disponibilizá-las ao público todos os dias.
     Marco entendeu a intenção:
     - É óbvio! Guarde essas telas. Apegue-se a elas se desejar, mas pinte outras, ou, apenas uma... Que seja! Terão tempo de secar. Talvez um castelo ou até mesmo um retrato!
     - Boa ideia! Uma face! Desde que chegou você está cego por seus problemas! Imagino que ainda não ergueu os olhos o suficiente para venerar os belos semblantes que estão apinhando essa vila. - disse Will.
     Leonardo, que até essa conclusão atrevida de Will, se mantinha em um clamor silencioso, se levantou, foi até as janelas e fechou as cortinas como se tal ato pudesse abafar a conversa. Mas a conversa pereceu dando lugar a gritos do artista, que mais pareciam rugidos, altos, porém roucos e abafados pela aflição:
     - Me respondam todos, de uma só vez e sinceramente. O quanto estão bêbados? Porque é evidente que não estão normais. Ou então tiveram a aura sugada por um dragão medieval e esqueceram quem são e quem sou.
     Os três ficaram estupefatos aguardando a sequência do desabafo, que realmente chegou:
     - Você acha que meu coração tem gelo, Will? Está bem iludido, meu amigo. Meu coração era cristal e foi quebrado. O que tenho nessa caixa torácica é vazio. Vai, Alesandro! Você é escultor... Crie um novo para mim! Te desafio em nome e honra aos deuses!
     Então, Marco acudiu:
     - Tente se controlar, Léo! Somos fracos também! Não quisemos ofender! Nosso pecado maior talvez tenha sido ter esperança demais. Dê outra definição, se quiser... Expectativa, sei lá!
     Alesandro se levantou, procurando ofertar um sorriso além de uma palavra mais esclarecida:
     - Você percebeu mesmo, amigo pintor! Chegamos aqui já enlevados pelas boas safras da região. Tal excesso não devia contaminar artes e interpretações! Te pedimos perdão, humildemente!
     Como se tal dizer configurasse uma súplica solene, ao final deste, Alesandro, Marco e Will se ajoelharam diante de Leonardo, aguardando a palavra do parceiro de tantas labutas, alegrias e dores.
     Leonardo simplesmente se ajoelhou também ao lado deles e em seguida se sentou sobre o tapete do cômodo, abraçando os próprios joelhos e se mantendo de olhos fechados e em silêncio. Os outros copiaram o gesto. Sabiam que o perdão estava concedido... Que nem mesmo precisava ter sido solicitado. Se mantiveram assim por vários minutos, até que Leonardo comentou singelamente:
     - Amigos, são essas e somente essas as telas que vou apresentar nesse festival.
     Will respondeu por todos:
     - E nós estaremos com você!
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Atualizado em: Qui 7 Jan 2021

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