- Crônicas
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De segunda a sexta.
Despertou.
Tateou o criado mudo, encontrou primeiro os óculos e depois o celular. Com os óculos no rosto verificou as horas. Estava atrasado, sabia... E, pessoalmente, não se incomodava com isso.
Tateou o criado mudo, encontrou primeiro os óculos e depois o celular. Com os óculos no rosto verificou as horas. Estava atrasado, sabia... E, pessoalmente, não se incomodava com isso.
Levantou, vestiu a cueca e foi ao banheiro.
Sentou, esperou, levantou e acionou a descarga... Teve de acioná-la uma segunda vez para eliminar qualquer vestígio da sua digestão.
Lavou as mãos, lavou o rosto, esfregou os olhos até ter certeza do fim das remelas.
Lavou os óculos, escovou os dentes... Encarou o cara no espelho, mostrou os dentes, sempre fazia essa verificação. Aplicou o desodorante e saiu
Encontrou a muda de roupa que havia vestido ontem, e antes de ontem... Exceto pelas cuecas, não via problemas em vestir a mesma roupa nos cinco dias úteis da semana.
Na cozinha, se deteve diante do fogão enquanto esperava o leite cru ferver. Fervido, serviu o leite na xícara, separando a nata. Ao leite adicionou café solúvel e açúcar... Abriu o congelador e deixou seu café lá por um momento, não gostava da ideia de queimar a boca enquanto fazia o desjejum.
Buscou as chaves do carro pelas superfícies da casa, gostava da ideia de organização, mas, definitivamente, não era organizado.
Buscou as chaves do carro pelas superfícies da casa, gostava da ideia de organização, mas, definitivamente, não era organizado.
Encontrou e seguiu até a entrada da casa, passou por mais um espelho, não olhou mais uma vez, não havia motivo para.
Dentro do velho sedan francês, acionou a partida e vestiu o cinto de segurança. Gostava do seu carro, sem firulas, espartano e confiável (isso é controverso, admito), mas não simpatizava com a França, não tinha vontade de conhecê-la e menos ainda a considerava digna de confiança.
Saiu pela garagem, sentindo o ar-condicionado lhe salvando do ar quente e úmido daquela manhã de verão.
Ligou o som do carro, queria ouvir as velhas músicas. Gostava muito de música. De várias épocas, gêneros, artistas, bandas e idiomas, se orgulhava, em segredo, da miscelânea cultural no seu pen drive. Sim, gostava de ter suas músicas num pen drive, a conexão era mais simples – e funcional, na sua opinião – do que a exigida por um sistema bluetooth.
Cantava junto com o rádio, música lhe tocava, lhe estremecia a alma. Das suas sensibilidades, talvez apreciasse apenas essa. Mas o trajeto da casa até o escritório era curto e o número de canções ouvidas durante ele sempre era insuficiente para que algo dentro dele mudasse para bom e se firmasse como tal.
Chegou ao escritório, passou pelos funcionários, sem receber ou desejar “bom dia”. Simpatia não era sua característica mais destacada. O tempo mostrava a ele que essa também não era uma característica presente na maioria deles.
Sentou e ligou o seu PC, de mesa, como gostava. A foto do filho apareceu como plano de fundo da área de trabalho. Era lindo e amava ele, e de novo se deu conta que essa era a primeira vez que via o filho hoje, mesmo morando sob o mesmo teto. Seu automatismo começou a ceder espaço para uma consciência a partir desse momento.
E consciente, sabia que não havia muito o que esperar do dia. Seria como todos os outros, e todos os outros foram, em sua maioria, muito ruins.
Pessoas falando, pessoas pedindo, pessoas se outorgando o direito de mandar porque estão pagando. Pagando pouco. Mixaria.
O tédio, a tensão, o medo e a raiva intoxicavam o ambiente. Trabalhar na empresa da família era como se sujeitar, dia após dia, a uma câmara de gás. E ele morria, de segunda à sexta, em horário comercial.
O tédio, a tensão, o medo e a raiva intoxicavam o ambiente. Trabalhar na empresa da família era como se sujeitar, dia após dia, a uma câmara de gás. E ele morria, de segunda à sexta, em horário comercial.
Na volta pra casa não encontra o ânimo para ligar o rádio, não vê motivo. Concentra o que restou de lucidez no trânsito, não por segurança, mas sim com o intuito de evitar problemas. Não quer sentir mais raiva e nem atender as ligações de alguém lhe cobrando o valor gasto no funileiro pelo concerto da batida cuja culpa nenhum deles soube explicar, mas que ele, para não prolongar a discussão, admitiu ser sua.
Em casa, brinca com o filho, mas não muito, porque a conexão com ele ainda é falha, delicada demais... E ter de segurá-lo, à força, para que a esposa possa dar a ele medicamento, não colabora para fortalecer os sentimentos do filho para com ele.
Com custo, toma banho... Sem fome, aguarda o jantar.
Se deita, consciente de que amanhã ainda não é sábado... Nada será diferente, como a roupa que insiste em vestir.
Demora muito, mas adormece.
Se deita, consciente de que amanhã ainda não é sábado... Nada será diferente, como a roupa que insiste em vestir.
Demora muito, mas adormece.
Atualizado em: Sex 20 Jan 2023