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Jogo de tabuleiro
Uma das sensações mais sutis que a vida pode nos brindar é nos fazer embarcar, limitadamente, no tempo do passado a fim de revivermos com entusiasmos situações gostosas que outrora criamos. É curioso pensar, na verdade, que essas sensações da vida vêm tão espontaneamente assim como também foram criadas. Recentemente tive a oportunidade de jogar, depois de longo tempo, um jogo de tabuleiro com amigos meus. A proposta foi extremamente inusitada, sem o saber o amigo que propôs, o fez com a intenção de comemorarmos seu aniversário próximo (que, admito, fiquei extremamente envergonhado por não saber que se aproximava a festividade), eu estava receoso de aceitar o convite, pois tinha ainda que voltar para casa e arrumar, fazer faxina e a volta é de uma caminhada extremamente longa - aceitei. Findada a arte marcial que praticávamos juntos, ajeitamos a mesa metálica, colocamos ao seu redor quatro cadeiras de material homônimo e ele nos interrogou (eu e mais três amigos) se sabíamos jogar o jogo que ele nos propunha, comentamos que desconhecíamos o mesmo, em breve explicação estabeleceu as regras e finalmente dispomo-nos a jogar. O jogo consiste em perguntas e respostas em que, a cada pergunta direcionada a você sobre algum tema em específico, você aposta uma quantidade de fichas antes de respondê-la, caso a resposta esteja correta, você avança o número de casas apostadas ou fica parado até a próxima rodada. Ainda tem outro fator, caso você acerte as perguntas e tenha esquecido de apostar as fichas você também permanece parado na posição em que se encontrava.
Ao iniciarmos a primeira partida em que podíamos escolher um tema dentre os cinco ou seis temas disponíveis avançávamos conforme apostávamos e respondêssemos corretamente as perguntas, nas próximas rodadas, caso tivéssemos avançado, nossas novas posições já traziam consigo os respectivos temas, o que nos cessava a liberdade da escolha dos mesmos nestas ocasiões. Portanto, em termos de aposta você podia escolher o número certo de fichas que te ajudaria a evitar de cair em uma casa de algum tema que você não dominasse tanto ( eu o tempo todo contava evitando que caísse qualquer pergunta sobre esportes, não que eu domine os outros temas ou não gosto de esportes, pelo contrário amo esportes como quem pratica, mas não necessariamente como quem acompanha). Enquanto jogávamos tive uma sensação de infância, porém era diferente das que eu me lembrava, não sei se a saudade vem misturada com a imaginação, mas traz um gosto especial pelo menos nesse caso.
O jogo seguiu entre brincadeiras, risadas, comentários, perguntas bem específicas e outras bem fáceis, que fizeram os quatro concordarem com os diferentes níveis que essas questões estavam distribuídas. Eu olhava para aquelas pessoas e sentia uma sensação de “”lar””, como se por um breve instante eu estivesse novamente com 7 ou 8 anos e tudo fosse tão simples quanto reunir com meus amigos novamente para jogar o jogo que eu quisesse ou me preocupar apenas com qual brinquedo ou qual brincadeira que escolheríamos em sequência. Talvez um fato que tenha reforçado esse sentimento seja da mãe de dois amigos (são irmãos, inclusive) ter ido buscá-los e a brincadeira ter acabado para eles, só ficando o amigo a aniversariar e eu. O jogo já estava próximo do fim e terminou comigo vencendo (respondendo por fim uma pergunta de esportes, inclusive), arrumamos as mesas e cadeiras, ajeitamos o espaço e voltei andando para casa, na longa estrada que eu teria ainda de percorrer.
Caminhos longos são extremamente ambíguos, são o céu para os pensadores, mas inferno para os apressados. Felizmente, nesse contexto eu fiz parte da primeira turma. Enquanto andava pus-me a divagar, fiquei com uma sensação estranha (desculpa, essa é a única palavra que consigo encontrar, sei que ela é cheia de significados, mas a situação também o é para mim) não fiquei feliz por ter ganhado, não como ficava quando era criança. É engraçado ... não sei se a nossa percepção muda com o tempo ou se é o próprio tempo que muda nossa percepção, eu sei que enxerguei de maneira tão diferente aquilo tudo e, em centésimos, eu recordei como era jogar jogo de tabuleiro quando criança, quando jogávamos ou em dias frios e chuvosos ou em dias que estávamos cansados de jogar videogames e com preguiça de bolar algo novo; quando éramos adolescentes os jogos de tabuleiro suprimiam o ócio ou eram acompanhados de empolgantes debates sobre baladas, festas ou nossos romances (frustrados ou não), porém quando adultos o jogo de tabuleiro representa muito mais. A pergunta é: quanto tempo é necessário ficarmos sem jogar para nos motivarmos a jogarmos novamente? E a resposta eu, infelizmente (ou felizmente) não sei. Reconheço que o jogo uniu, descontraiu, permitiu ainda mais nos aproximarmos e reconhecermos uns nos outros, os outros dos outros e os outros de nós. Dessa vez, foi esquisito, no melhor sentido (esquisito não tem bom ou mal sentido, eu sei, esquisito não tem sentido por isso é o que é), porque não tive vontade de ganhar (sou uma pessoa competitiva em termos de conhecimento, reconheço isso), pelo contrário queria que não acabasse. Mas, acabei ganhando, porém só depois percebi que ganhei muito mais do que simplesmente a partida, todos nós que jogamos ganhamos, na verdade, ganhamos talvez a percepção de como vale a pena voltar um pouco para seguir além. Crescer nunca foi esquecer afinal, mas pelo visto a gente teima em parecer que quer esquecer, mas no fundo a sempre uma criança esperando (im)paciente dentro de nós pela próxima partida. Não sei quando será a próxima, espero que não tão breve ( a fim de que a criança não enjoe e o adulto reclame de falta de tempo), mas também espero que não demore muito (não sei quantas eternidades o adulto aguenta sem a criança para lhe relembrar). Talvez a única coisa que reste seja isso: esperar pela próxima aleatoriedade que a vida trará. Podemos marcar o momento do próximo jogo, é verdade, isso não impede que haja diversão, mas ainda sim, nenhum momento combinado será tão prazeroso quanto o aleatório, é como a diferença entre escutar a música que você gosta entrando em um aplicativo e a procurando e escutando ela no aleatório da rádio ou em qualquer outro lugar que você não tenha feito a escolha, no aleatório é sempre melhor. No fundo, talvez a vida seja isso: esperar pela aleatoriedade, se animar quando ela aparece, apreciar os detalhes, saborear o gosto que ela traz e agradecer pela sua visita, se assim o é, que seja então. Que apostemos as fichas e até joguemos os dados, mas não recusemos os jogos de tabuleiros.